31 de janeiro de 2025

Baldios

 Vasco Paiva

Os terrenos baldios têm donos, são as comunidades locais!

Actualmente, no país existem mais de 550 mil hectares de terrenos baldios, que são áreas comunitárias, onde estão inseridas áreas protegidas ou sítios da rede natura 2000. Há casos de concelhos em que 60 a 70% da área é baldio.

Ao longo da história, de uma ou de outra forma, têm suscitado o “apetite”, a ocupação, o roubo, ou outras formas de usurpação.

Sem pretender fazer uma resenha histórica, recordo que no século XIX foram alvo de privatização, tendo muitos passados a latifúndios privados a Sul do Tejo, embora a Norte a resistência das populações tenha sido maior e sobreviveram.

Na primeira metade do Século XX foi a arborização forçada, a ocupação pelos Serviços Florestais, a destruição das bases da Economia de Montanha que assentava na carne dos seus gados, no leite, no queijo, nas peles, nas lenhas para a lareira ou fogão, nos matos para a cama e alimento dos seus animais. Os povos deixaram de poder apascentar os seus gados nos baldios, foram proibidos de retirar lenhas, matos e outros. Houve resistência inicial, algum trabalho nas plantações, depois foi a emigração para o litoral ou o estrangeiro.

No final dos anos 60 do século passado, despertou a luta, a revolta nas Montanhas do Vouga. Conjugou-se a prepotência de Administrações Florestais que humilhavam os povos, com alterações na economia devido à produção de ovos, frangos e leite que ajudaram a estancar a emigração e um conjunto de líderes locais que retomaram a luta com sucesso, com apoio da estrutura clandestina do Partido Comunista Português.

Recordo apenas um episódio:

No ano de 1970, uma delegação do povo de Talhadas dirigiu-se a Oliveira de Frades a casa de um advogado, – António Bica que era então Presidente da Cooperativa Agrícola de Lafões, onde também ajudava os avicultores a organizarem-se para terem melhores condições de vida. A delegação era composta por quatro pessoas, o Presidente da Junta, António Afonso de Pinho, o pároco da freguesia, Celestino Correia Amaral, o taxista, também dono do café das Talhadas, António Pinto e Silvestre Vilar, funcionário dos Serviços de Geologia e Minas.

Queriam intentar uma acção contra os Serviços Florestais e o Governo, reclamar contra a opressão a que estavam sujeitos e solicitar a devolução do baldio e para isso nada melhor que um advogado que não se atemorizasse.

O António Bica, arguto, advogado lutador antifascista, comunista, aceitou o desafio com duas condições: teriam de ser factos comprovados e com testemunhas e todos os da freguesia com mais de 14 anos teriam de assinar a exposição ao Governo. Transformou uma “simples” exposição na luta de todo um povo.

A revolta espalhou-se pelas freguesias vizinhas que passaram também a procurar o mesmo advogado.

Até ao 25 de Abril foi em crescendo, culminando com uma vitória de devolução de parte do baldio, nas Talhadas, no início de 1974.

Muito da história destas lutas pode ser lida na obra Ocupação Sem Limites de Armando Pereira da Silva (1972)[1] e na minha publicação O Despertar das Montanhas (2020)[2].

Já depois do 25 de Abril, e depois de várias tentativas sempre adiadas pela queda dos IV e V Governos Provisórios, a Lei dos Baldios 39/76 veio consagrar finalmente a devolução dos baldios aos povos.

Mas a resistência à efectiva devolução às comunidades locais foi grande.

Começou logo com a inércia e a resistência à aplicação da Lei, não sendo realizados, em muitos lugares, os cadernos de recenseamento dos compartes pelas Juntas de Freguesia.

A Lei previa duas modalidades, designadas por A e B, sendo respectivamente a modalidade de gestão autónoma pelos compartes e a mista entre os Compartes e os Serviços Florestais. Estes últimos incentivaram a que a opção das comunidades fosse pela modalidade mista, para poderem continuar a “mandar” nos baldios.

A modalidade mista, B, previa a participação dos representantes dos baldios nos Conselhos Directivos, mas de facto, os Serviços Florestais limitavam-se a transferir a parte da receita para os compartes, não os envolvendo nas decisões, na gestão efectiva.

Nos últimos anos, os Conselhos Directivos, numa parceria com o Estado, deram um passo em frente muito significativo, com a constituição de 10 Agrupamentos, com capacidade financeira, contratando técnicos, elaborando Planos de Gestão Florestal e com trabalho efectivo no terreno. Esta aquisição de escala, com a dimensão de cada agrupamento e com a contratação de jovens técnicos competentes para a Federação Nacional dos Baldios (BALADI) e para os Agrupamentos, abriu uma nova vida para os baldios.

Pedro Gomes, Engenheiro Florestal e director da BALADI, na VII Conferência dos Baldios, em 2022, resumia assim o trabalho dos Agrupamentos dos Baldios: “constituíram-se 10 Agrupamentos de Baldios de 55 baldios, com uma área total de 56.242ha, da qual 40% já está como Área de Gestão Certificada, 22.440ha (pelo FSC – Forest Stewardship Council e PEFC – Program for the Endorsement of Forest Certification) e mais de 4.000ha com Certificação de Serviços de Ecossistemas”.

Uma breve síntese, e muito fica por dizer:

Em todos esses 55 baldios, realizaram: 36 Planos de Gestão Florestal individuais; o inventário florestal em 51; o cadastro simplificado em 29; 10 parcerias com Câmaras e Juntas de Freguesia; mais de 3.500ha de Gestão de combustível, em parcelas de 100ha, com técnicos especializados em fogo controlado; e a actualização do Regulamento de Uso e Fruição em 46 baldios.

Os Conselhos Directivos dos Baldios (CDBs) promovem uma gestão activa dos terrenos, investem as receitas na melhoria da ocupação florestal, na protecção contra incêndios, criando Brigadas de Sapadores que durante o Outono/Inverno promovem a limpeza dos terrenos e no Verão são os primeiros a combater os fogos com conhecimento único sobre o terreno.

Comissões de Compartes recuperam métodos tradicionais como Fornos Comunitários, realizam obras de carácter social, como Centros Sociais e Lares para os idosos, pagam medicamentos, ambulâncias e prestam um conjunto de serviços sociais à comunidade que muitas vezes as Juntas de Freguesia e as Câmaras Municipais não têm capacidade de fazer.

QUAIS SÃO OS NOVOS RISCOS?

O Governo afastou os Conselhos Directivos de Baldios de acesso a apoios em medidas comunitárias, nomeadamente de os pastores inscreverem esses espaços nas ajudas ao pastoreio. O Governo tarda em renovar os contratos com a BALADI e os Agrupamentos dos Baldios e pagar o que estava previsto para a sua aplicação.

Os terrenos baldios estão na mira de investimentos imobiliários.

Grandes empresas cobiçam as áreas dos baldios para proveito próprio, atribuindo uma renda, mas afastando as comunidades locais da utilização do espaço para pastoreio ou outro, afastando-as da gestão efectiva do baldio. Este é o perigo de eliminação da sua natureza comunitária.

São empresas que procuram grandes áreas e que, na fragilidade dos baldios, encontram uma oportunidade para explorar minerais, nomeadamente lítio, instalar eólicas e placas fotovoltaicas e aproveitar outros recursos nesses terrenos.

Aquilo que pode parecer um grande negócio, se os Conselhos Directivos não estiverem atentos e com apoio jurídico para “lerem as entrelinhas”, pode ser de facto uma nova usurpação.

Outros usam os baldios para actividades turísticas, sem remunerar as comunidades, ou utilizam o espaço para provas desportivas sem sequer ter autorização das comunidades para o fazer.

Os baldios não são terrenos abandonados, são pertença das comunidades locais, essenciais para o combate à desertificação, e para promover o desenvolvimento rural.

 

Vasco Paiva

Engenheiro Florestal


[1] Silva, Armando P., (1972). OCUPAÇÃO SEM LIMITES, Talhadas do Vouga, um caso exemplar. Lisboa: Prelo Editora S.A.R.L.

[2] Paiva, Vasco (2020). O DESPERTAR DAS MONTANHAS, as lutas dos agricultores e povos da Montanha antes do 25 de Abril. Coimbra: Lápis de Memórias

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