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6 de dezembro de 2025

Verbena Córdula mito da “Europa civilizada” | Pt. 1: a bonança construída sobre saques e extermínios

Longe de serem frutos da inventividade europeia isolada, como geralmente nos querem fazer crer, o progresso e a riqueza europeias resultam de processos sistemáticos de violência contra os povos africanos

* Esta análise compõe uma série de dois artigos de Verbena Córdula. A segunda parte será publicada em breve, aqui, na Diálogos do Sul Global.

A narrativa dominante sobre a história da Europa costuma apresentar o continente como berço da civilização, da razão, da ciência e dos direitos humanos. A Modernidade europeia é frequentemente descrita como um empreendimento moral e civilizacional, que teria irradiado luz a um mundo supostamente mergulhado na barbárie. Essa autoimagem idealizada, contudo, entra em profundo conflito com o passado colonial dos mesmos países que se orgulham de tal superioridade moral. Nada como revisitar a história para refrescarmos a nossa memória. Entre os exemplos mais chocantes estão os massacres perpetrados por alemães, belgas e britânicos em território africano — atos que destruíram sociedades, aniquilaram culturas, desviaram recursos e lançaram bases para desigualdades que persistem até hoje.


A riqueza acumulada pelos países europeus não se explica pela inventividade europeia isolada, como muitas vezes nos querem fazer crer. Foi o resultado de um processo sistemático de saque, expropriação e violência organizada contra povos africanos. Examinar criticamente esses massacres é, ademais de um exercício histórico, a desmontagem necessária de um mito que ainda sustenta relações internacionais profundamente assimétricas. E é também um convite a repensarmos a própria ideia de civilização, frequentemente apropriada pelas potências europeias como justificativa para atrocidades cometidas em nome do progresso. 

Pilar que financiou a riqueza

O genocídio dos Herero e Nama, na atual Namíbia (que citei em texto recentemente publicado aqui na Diálogos do Sul Global), é um dos capítulos mais mortíferos do colonialismo europeu. Em resposta a uma revolta contra a expropriação de terras, a imposição de trabalho forçado e o abuso sistemático, o Império Alemão iniciou uma campanha militar que tinha como objetivo explícito o extermínio dessas populações. Em 1904, o general Lothar von Trotha emitiu a “ordem de extermínio”, declarando que todo Herero encontrado dentro das fronteiras da colônia seria morto. Homens, mulheres e crianças foram perseguidos pelo deserto de Omaheke, envenenados em poços de água e aprisionados em campos de concentração. Estima-se que cerca de 80% dos Herero e 50% dos Nama tenham morrido. Esse genocídio — frequentemente esquecido nas narrativas europeias — inclusive nos livros de História — foi amplamente estruturado a partir de ideias pseudocientíficas raciais, que viam africanos como subumanos e descartáveis. Essa violência extrema fez parte do projeto colonial, motivado pela ambição alemã de tornar-se uma potência global. O território e os recursos da Namíbia foram explorados à força, e o enriquecimento resultante beneficiou diretamente empresas, militares e burocratas alemães.

A violência de Leopoldo II na Bélgica foi um pilar da riqueza que financiou edifícios, avenidas, museus e monumentos que, até hoje, enfeitam Bruxelas — a capital belga e também a cidade onde diariamente se discutem os rumos da União Europeia (e claro, novas formas de colonizar o mundo). (Imagem: IA)

Talvez nenhum episódio colonial seja tão emblemático quanto o reinado de horror imposto por Leopoldo II no Estado Livre do Congo, entre 1885 e 1908. Embora se apresentasse como filantropo e benfeitor, o referido rei europeu, mais precisamente belga, governou o território como sua propriedade privada, estabelecendo um regime de trabalho forçado que produziu um dos maiores massacres da história moderna. A obra da violência belga tinha como principal objetivo extrair borracha e marfim — commodities que alimentavam o desenvolvimento industrial da Europa. Para aumentar a produtividade, as forças coloniais adotaram práticas sistemáticas de terror, tais como mutilações, execuções, destruição de aldeias inteiras e sequestro de mulheres e crianças para forçar homens a trabalhar. Era comum que soldados tivessem de apresentar mãos amputadas como prova de que não tinham desperdiçado munição. 

As estimativas variam, mas calcula-se que entre oito e dez milhões de congoleses tenham sido assassinados como resultado direto da política colonial belga. Essa violência foi um pilar da riqueza que financiou edifícios, avenidas, museus e monumentos que, até hoje, enfeitam Bruxelas — a capital belga e também a cidade onde diariamente se discutem os rumos da União Europeia (e claro, novas formas de colonizar o mundo).

Cito um terceiro exemplo de violência extrema que tem como protagonista a Grã-Bretanha, frequentemente vista como paradigma de democracia, de legalidade e de tradição constitucional. Possuidora de um dos mais extensos históricos de violência colonial em África, o país dizimou comunidades, confiscou terras e submeteu populações inteiras à fome, à deportação e ao trabalho forçado. Um dos casos mais ilustrativos é o da organização Mau Mau, no Quênia, na década de 1950. 

A revolta Mau Mau foi uma resposta à expropriação de terras férteis pelos colonos brancos e às políticas de segregação que subordinavam os povos Kikuyu, Embu e Meru. Em resposta, o governo britânico instaurou um regime de campos de detenção, tortura e execuções sumárias. Prisioneiros eram sistematicamente espancados, queimados, castrados e submetidos a privação extrema de alimentos. Estudos recentes estimam que mais de 100 mil quenianos foram detidos em condições desumanas, e milhares morreram devido à violência estatal.

Antes disso, na transição do século 19 para o 20, políticas britânicas contribuíram para fomes devastadoras em diversas partes do continente, incluindo regiões da atual Zâmbia e do Malawi, por exemplo. Em muitos casos, a prioridade dada ao comércio imperial, ao transporte de mercadorias e à imposição de tributos coloniais impediu a resposta adequada a crises alimentares. O resultado foram mortes em massa (silenciosas, mas não menos brutais).

Mentalidade imperialista

Dito isso, temos que nos perguntar algumas coisas. Como conciliar tamanha crueldade com a suposta racionalidade e progresso europeus? Que espécie de civilidade legitima o extermínio de povos inteiros para abrir espaço a plantações coloniais e concessões mineradoras? 

A resposta, embora incômoda, é que a própria ideia de civilização europeia foi construída sobre violência colonial. Quando observamos esses episódios em conjunto — o genocídio alemão na Namíbia, o regime de massacre belga no Congo, os campos de tortura britânicos no Quênia — torna-se impossível sustentar a visão idealizada da Europa como continente pacífico, moral e civilizador. A riqueza desses países não pode ser separada das pilhagens coloniais, da extração de recursos por meio do terror e da destruição deliberada de sociedades africanas. A industrialização europeia só foi possível porque recursos africanos — borracha, cobre, diamantes, ouro, algodão, mão de obra escravizada — foram sistematicamente desviados para o Norte Global. A acumulação primitiva que alimentou bancos, fábricas, universidades e infraestruturas não foi um processo natural ou espontâneo.~

2 Merz 

É inegável que a arrogância europeia, refletida em discursos soberbos e minimizadores do impacto do colonialismo, ainda ecoa nas declarações de figuras públicas, mesmo em tempos modernos. Um exemplo recente foi a fala proferida pelo mandatário alemão Friedrich Merz, que, ao comentar sobre o estado do Pará, no Brasil, fez uma observação condescendente e etnocêntrica, revelando a persistente mentalidade imperialista de algumas lideranças europeias. Merz, que ocupa posição de destaque no cenário político alemão, causou polêmica ao se referir ao Brasil com um tom de superioridade, ignorando os séculos de exploração colonial europeia que contribuíram para a desigualdade que ainda marca regiões como a Amazônia. 

A crítica implícita, que minimiza as dificuldades locais, revela a continuidade da visão de que países fora da Europa estão em um estágio de desenvolvimento inferior, necessitando da orientação do Ocidente para prosperar. Esse tipo de discurso, por mais disfarçado que seja, carrega consigo resquício de uma lógica colonial que ainda associa o desenvolvimento ao projeto de dominação e de intervenção europeia. Essa  postura de minimização da brutalidade colonial faz parte de um padrão histórico. 

Em 2002, o então primeiro-ministro britânico Tony Blair, ao reconhecer o tráfico de escravizados, tentou suavizar o impacto do colonialismo, afirmando que o Império Britânico trouxe “instituições importantes” para as ex-colônias. Essa afirmação buscava justificar o legado imperial, sugerindo que as populações africanas, asiáticas e caribenhas se beneficiaram de uma civilização europeia, ignorando os massacres, as pilhagens e a destruição de culturas indígenas. Esse raciocínio reduz as atrocidades coloniais a um “preço” pela modernidade europeia, minimizando os danos causados pela imposição de modelos de governança e pela destruição de sociedades autênticas.

Em 2007, durante um discurso no Senegal, Nicolas Sarkozy afirmou que o “homem africano não entrou suficientemente na História”, uma frase racista e paternalista que afirmava, implicitamente, que os africanos não haviam contribuído para o desenvolvimento da humanidade. Essa declaração do então presidente francês ignorava os milênios de história e de civilização africanas antes da invasão dos europeus, reduzindo o continente a um estágio primitivo que só se tornaria relevante com a “intervenção civilizatória” europeia. O comentário foi amplamente criticado, pois perpetuava a narrativa eurocêntrica que coloca as potências coloniais como protagonistas da história global.

Negação dos danos

Há oito anos, em 2017, durante sua campanha presidencial, o atual presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que a colonização da Argélia teve “elementos de civilização”. Embora tenha se retratado depois, reconhecendo o colonialismo como um “crime contra a humanidade”, sua declaração inicial tentou suavizar a brutalidade da colonização, tratando-a como uma “missão civilizatória”. Essa fala, que causou repulsa e muitas  reações dentro da África, ignorou os massacres, as torturas e a destruição cultural que marcaram a ocupação da Argélia, refletindo uma tendência de revisionismo histórico ainda presente no discurso político europeu. Macron, ao minimizar os horrores do colonialismo, revelava uma visão ambígua, que reconhecia a violência, mas ainda justificava a “superioridade” cultural europeia.

Esses discursos são demonstrações explícitas de uma contínua negação do impacto devastador do colonialismo. Ao tratarem os países colonizados como eternos receptores de uma “benéfica intervenção”, esses europeus minimizam os horrores que milhões de africanos, asiáticos e latino-americanos sofreram, e também buscam perpetuar a ideia de que a história mundial deve ser escrita a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Este revisionismo histórico, que tenta suavizar a opressão e a violência dos impérios coloniais, é, sem dúvida, um obstáculo à verdadeira reconciliação e compreensão entre o Ocidente e as ex-colônias.

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