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5 de setembro de 2011

O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO –28 - PRINCÍPIO DO UTILIZADOR PAGADOR

Um bom princípio, dizem - nos, com ar inocente para nos convencerem que são boas pessoas: estão do nosso lado. Do lado de quem?
O princípio do utilizador-pagador (P U-P) é sem dúvida um bom princípio, se ignorarmos que existem serviços sociais e efeitos multiplicadores em termos económicos; se ignoráramos que existem custos e benefício sociais e que deve haver solidariedade. Na realidade, o alfa e o ómega destes princípios residem na criação de lucros, tornando mercantil o que é social para ser privatizado. Como são serviços essenciais à existência das pessoas e à economia, aí temos rendas de monopólio com protecção estatal. O P U-P é afinal gato escondido com rabo de fora ou o milagre das rosas ao invés. Vejamos porquê.
No fundamental, resume-se a: queres saúde paga-a; queres educação paga-a; queres cultura paga-a; queres transportes paga-os; queres justiça paga-a. A moral deste bom princípio não vai além disto, não reconhece justiça social, é coerente com todo o esquema liberal, fundamenta-se no egoísmo e nos preconceitos anti-sociais, que se procura promover entre os cidadãos.
A lógica será: se eu não tiver filhos na escola, se não andar de transportes públicos, se o meu médico for privado, por que tenho de pagar para os “outros”? Não se vai mais longe que isto: uma sociedade corroída de rancores e incontroláveis egoísmos de um lado, desespero, do outro. Ora o facto é que directa ou indirectamente toda a sociedade é afectada por menos educação, menos saúde, transportes encarecidos.
E pagar quanto? O preço de mercado dir-se-á, é óbvio, e o mercado não se pode contestar. Mas qual mercado? Aqui não devia haver mercado, são serviços sociais, só que pelo P U-P tornar-se-ão lucrativos permitindo a expansão do capital monopolista.
Pode então dizer-se que será necessário pagar os custos operacionais e o lucro empresarial. Mas será que as infraestruturas construídas com o dinheiro dos contribuintes vão servir para outros arrecadarem lucros? E que lucros? Vejam-se os da Brisa.
Segundo o filósofo Emmanuel Kant (suponho que com este os da “economia de mercado” não devem ter problemas) o princípio moral para ser válido deverá ter aplicação universal., de forma que para haver coerência o P U-P deve ser aplicado generalizadamente.
Assim, o P U-P começaria com justiça fiscal. O capital financeiro pagaria as mesmas taxas que os rendimentos pessoais. Não haveria livre transferência de capitais e muito menos sem pagar imposto. Ou estas entidades não utilizam serviços que estão a ser pagos pelos cidadãos comuns? Nem empresas monopolistas que se vão sediar no estrangeiro para não pagar impostos no país. E quanto a apoios estatais a empresas privadas de acordo com o P U-P? Só se fosse com participação nos lucros e empréstimos ao juro de mercado ou como accionista, para defender os interesses dos contribuintes.
Começaria também pela igualização dos lucros, através de impostos progressivos sobre os rendimentos do capital, para não haver excessivo poder de mercado de uns em relação a outros. E continuaria – dentro do sistema que se defende para o P U-P – pela revisão dos níveis salariais em função dos lucros da empresa e da produtividade, de forma que os lucros não se elevassem acima da média geral senão durante um curto período e em resultado de inovações. Tudo isto, note-se, são condições de funcionamento eficiente da economia de mercado.
Por que havemos, dentro do mesmo critério pagar as fraudes e os desmandos da especulação? Por que havemos de pagar a teia de corrupção e cumplicidades de um Estado ao serviço dos monopólios privados? Por que hão-de os consumidores pagar lucros de monopólio das grandes empresas? Por que hão-de pagar intervenções das Forças Armadas em operações para defesa de interesses imperialistas e das grandes transnacionais?
Os seráficos defensores do P U-P proclamam que os utilizadores não devem ter serviços do Estado gratuitos ou quase gratuitos, é pena o princípio não ser aplicado por exemplo aos accionistas do BPN, aos que ficaram com empresas nacionalizadas (e não pagam impostos no país), aos contratos das PPP, à venda das “golden shares”. Tudo isso gratuito ou quase!
Duas objecções podem ser feitas ao que acima se diz. Primeiro, tudo foi decidido por governos livremente eleitos pelos cidadãos. Quanto a isto, diga-se que foram eleitos com base em mentiras e em promessas logo negadas assim que assumem o poder. A camuflagem da propaganda do sistema, tenta depois justifica-las. Democracia não pode ser mentira e abstenção dos cidadãos.
A segunda objecção é que se trata – em alguns casos – de colmatar prejuízos de empresas ou serviços públicos - caso dos transportes, por exemplo. Seria justificado talvez ignorando todos os aspectos sociais e efeitos multiplicadores na economia, como já referimos. Porém, como se sabe que os prejuízos devem-se no essencial á má gestão do Estado, em benefício de entidades privadas, obrigando as empresas a endividar-se junto da banca privada para realizar investimentos.
O P U-P é sem dúvida um princípio da “economia de mercado”, mas a economia de mercado só a contragosto convive com o social que considera fonte de distorções e ineficiência. Contesta as responsabilidades adquiridas no passado, manipulando a informação e procura destrui-las meticulosamente. As prestações sociais são parte do salário e na medida em que se caminha para a sua eliminação aumentam-se os níveis de pobreza e do salário de subsistência. Aumentando o preço dos serviços sociais o salário teria de aumentar ou então é espoliação em benefício do capital privado, pois os impostos que terão de pagar as infraestruturas entregues praticamente a custo zero a privados são retirados aos salários.
Afinal, cumpre perguntar: o que é que a sociedade valoriza? Os benefícios sociais e a solidariedade ou o lucro? Na realidade, despreza e reprime a pobreza. Dizem que os “mais desfavorecidos serão compensados”. Isto é, torna-se uma maioria pobre, aumenta-se a miséria e depois dá-se esmolas. A segunda parte é cristã. A primeira nem tanto. Porém, sem a primeira não há a segunda e portanto não se ganha o reino dos céus - cá na Terra...
A ideia que o P-U-P traz mais racionalidade económica, pois os consumidores tendo uma ideia do preço passam a consumir mais moderadamente, é também curiosa, assimila-se serviços públicos a bens de consumo mercantis. É certo que os cérebros deste país se debatem com o magno problema de saber o que sejam “serviços públicos (ver “Os comentadores no seu labirinto”).
Temos então para ter “racionalidade económica” e que consumir moderadamente, vejamos:
- Transportes públicos – Vá a pé! Será que as empresas de transportes com menos utentes podem serão mais rentáveis?!
- Hospitais – Não esteja doente. Adoeça moderadamente. Pague ou tenha uma morte feliz!
- Educação – Que os jovens a consumam moderadamente. Eis a maior descoberta da “racionalidade económica” para a tão cantada sociedade do conhecimento e a maior competitividade!
Mas há talvez uma “racionalidade” que não estejamos a compreender: utilizando “moderadamente” aqueles serviços, encontra-se o argumento decisivo para fechar escolas, serviços de saúde, carreiras de transportes, pois terão menos utentes! Sobram as que podem ser rentáveis e portanto entregues ao capital privado!
No fundamental, o P U P procura justificar o programa da “troika”, cuja fórmula de “racionalidade” para consumir moderadamente é: tirar o dinheiro dos bolsos do cidadão comum para o entregar a monopólios e transnacionais, de forma que as pessoas tenham “uma ideia” de que podem ficar sem dinheiro para comer e pagar os custos de habitação, tornando-se assim “consumidores racionais”.
Eis, pois, o fundamento da moral contida na política de direita, que os srs. comentadores justificam e propagandeiam.
O gato escondido com rabo de fora, aparece agora nitidamente! Com o P U-P os impostos deixam de ser um elemento essencial da redistribuição de riqueza, tendem a ser o “preço” do aparelho repressivo do Estado ao serviço do grande capital. A isto podemos designar de neofascismo.

1 comentário:

Anónimo disse...

O problema é que estes srs. que nos governam há muito têm sempre argumento alternativo na questão dos serviços públicos - é conforme lhes convém. Poderão sempre dizer que nos transportes, hospitais e educação o que estão também a fazer é a limpar gorduras, contribuindo para uma melhoria na gestão (precisamente a justificação que afirmou aqui como a causa essencial dos prejuízos). P U-P versus boa gestão do dinheiro de "todos".