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16 de abril de 2018

Trabalho não pago

A pobreza não cai do céu.    Jorge Cordeiro
O tema da pobreza e das desigualdades, com as condoídas comiserações e recorrentes incursões reflexivas que suscita, está de regresso por cá e lá fora. Os estudos oriundos de diversos quadrantes e geografias confirmam-no. Como o divulgado esta semana com origem no parlamento britânico: em 2030, 1% da população terá nas mãos 2/3 da riqueza mundial. Com as conhecidas considerações que não vão, umas para lá do patamar da ética, outras de um prometido reforço altruístico. Outras, ainda, soando como alertas não tanto por razão da pobreza, mas por temor com as consequências para o sistema que a reproduz.
Não estranha assim que se volte a ver afirmado o que se conhece. Sempre sem sair do convívio das tergiversões que o assunto recomenda para se tornear o fundo do problema. Visto como um fenómeno para uns, uma fatalidade para outros, objecto de infindáveis estudos por filantrópicas fundações da auto-proclamada “sociedade civil” para outros ainda, a pobreza permanece no seio de uma cândida resignação e de um útil motivo para cíclicos votos piedosos. Seríamos levados a concluir que o que escasseia em vergonha abunda em indiferença. Errado! O que há é uma inusitada abundância justificativa para a deliberada escassez de reconhecimento da raiz do problema. Infindáveis estatísticas, esforçadas reflexões sobre mecanismos de pré-distribuição, juízos sobre combate à pobreza mas sempre fugindo ao essencial como se presume que o Diabo fuja de cruz posta diante de si.
Em jeito de teimoso questionamento, consciente das maçadas que provocará ao sereno embalo das abordagens dominantes, preparado para indignados arremessos, mesmo assim não nos quedaremos pelo que se vê sem interrogar o que está para lá do que a vista alcança. Afirmar que a raiz da pobreza e dos factores que concorrem para ela encontra explicação nos baixos salários, em pensões de reforma que não dão para viver ou no desemprego já encontra escassa margem de contestação. A faixa de concordância começa a reduzir-se quando se invoca a relação desses factores com o da desigual distribuição de rendimento, a injustiça fiscal ou as opções de política macro-económica. Mas o que “entorna o caldo” na abordagem do tema é quando se põe o pé no terreno firme da raiz que lhe subjaz, quando se transporta para o domínio da propriedade, das relações de produção e da exploração do trabalho o que verdadeiramente explica as desigualdades e a pobreza. Aos que embrenhados em buscas de solução de “pré-distribuição” se eriçarão face à invocação de Karl Marx que «as relações de distribuição são apenas as relações de produção sob uma outra espécie», poderíamos trazer à memória (a pensar nas almas generosas apresentadas como “sociedade civil”) o que se pode ler em Rousseau no “Discurso sobre a origem das desigualdades entre os homens” «O primeiro que tendo cercado um terreno se atreveu a dizer, isto é meu!, e encontrou gente suficientemente simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil». Pelo que antevendo reacção idêntica, malgrado a distinção ideológica dos autores citados, se invocará, prevendo que o sentido nacional de alguns conduza perante autor português a reacções menos alérgicas, o que Almeida Garrett escreveu em “Viagens na minha terra”: «aos economistas políticos, aos moralistas pergunto se já calcularam o número de indivíduos que é preciso condenar à miséria (…) para produzir um rico». 

Por mais que o recusem a questão está na crescente desigualdade da repartição da riqueza criada entre Capital e Trabalho. Dados do INE revelam que em média nacional as remunerações do trabalho representam metade do valor da produção nacional. Em sectores como o petrolífero o Valor Acrescentado Bruto (em linguagem menos económica mas mais entendível, a riqueza criada) por hora de trabalho é de 198,4 euros, enquanto o valor da remuneração por hora de trabalho é de 40,1 euros, o que significa que o trabalhador em oito horas de trabalho por dia trabalha para pagar o seu salário em 1,6 horas sendo as restantes 6,4 horas trabalho não pago, logo mais-valia da GALP. Ou se se olhar para o sector energético, onde a EDP e a REN, acumulam lucros obscenos, a remuneração por hora de trabalho é de apenas 9,2% do valor produzido, o que significa que ao fim de 44 minutos o trabalhador tem o seu salário retribuído, dando mais de sete horas do seu trabalho em regime não-pago.

Os que se opõem ao aumento real dos salários, agitam o espantalho da competitividade em defesa de uma economia assente em baixos salários ou persistem numa legislação laboral afeiçoada aos interesses de exploração do trabalho melhor fariam, em vez de lamuriosas palavras, se guardassem recato perante as desigualdades e a pobreza. Continuar a falar de pobreza à margem da exploração, ou seja da apropriação da mais-valia produzida pelo trabalhador, é um exercício de cegueira política que só servirá aos que reproduzindo o empobrecimento vão subindo uns lugares na lista dos mais ricos da revista Forbes

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