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14 de maio de 2011

O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO - 18 – VISÃO E VISÕES (acerca das próximas eleições)

“Visões sem visão” escrevia Tolstoi em “Guerra e Paz” a propósito de uma reunião entre Napoleão e Alexandre da Rússia. Visões sem visão era a forma de cada um tentar enganar o interlocutor acerca das suas verdadeiras intenções.
Visões sem visão é a especiaria com que diariamente se disfarça a má qualidade dos conteúdos servidos pelos próceres do sistema neoliberal. As boas intenções são aqui muito úteis para enfeitar a oferta. Desde que não questionem o “como“ e o “porquê” das políticas futuras, terão antena aberta à discrição.
As “visões” actuam como um entorpecente, refúgio de desilusões e sofrimento para os paraísos artificiais das boas intenções. Pode sinceramente falar-se em “coesão social”, em “ajudar as famílias”, na necessidade de “crescimento”, de “criar riqueza” – para quem? – lamentar-se o desemprego e apelar-se à solidariedade (!), sem nunca apresentar uma ideia sequer para o conseguir, exepto talvez prosseguir ou aprofundar o que levou à situação que lamentam ou criticam. Como se continuando com as mesmas politicas isso fosse possível.
Coesão social, implica redução das desigualdades, e portanto tributação da riqueza improdutiva, das rendas monopolistas, etc. Ajudar as famílias implica recompensar o esforço, dar segurança e direitos sociais – que incluem a garantia de estabilidade no emprego. Tudo o contrário do que o neoliberalismo promove e que os bem-intencionados úteis se coibirão de questionar.
Neste âmbito das visões é recorrente que a discussão acabe por girar à volta de pessoas. O que estão a fazer, o que alegadamente irão fazer, o que não fizeram por este ou aquele alegado motivo. É outra forma de distrair do essencial – tentando copiar os comentadores futebolísticos…
Há, pois, “visões” e há “visão”. Parecendo uma o plural da outra são contraditórias.
A definição de uma política tem de se basear numa visão consistente correctamente formulada – e nisto se distingue da utopia. Em termos políticos a visão diz-nos o que pretendemos ser como sociedade dentro de 5, 7 ou 10 anos. Trata-se de uma ideia condutora exprimido correctamente os grandes objectivos nacionais. Um rumo, os propósitos comuns que deverão integrar os esforços colectivos. A “visão” não sendo um conjunto de “visões” deve traduzir-se em “missões” concretas para os diversos agentes políticos e sociais, para todos os cidadãos intervenientes. Cada ministério, cada secretaria, cada direcção-geral, cada agente económico ou puramente social (fora da esfera mercantil) deverá definir como se efectua a sua actividade para concretizar no seu âmbito a “visão” comum.
A Constituição, à volta da qual se reuniu um dos maiores, se não o maior consenso nacional da história moderna do nosso país, deveria constituir, sendo posta em prática, a visão para o futuro do país.
  
E esta “missão” traduz-se por sua vez em políticas, ou sejam, as orientações, as formas, os meios, para realizar a missão no curto prazo, e em estratégias: o que fazer, como, quando e quem para a missão ser desempenhada com eficiência.
Por exemplo, a missão do ministro da agricultura, ou do ministro da economia, seria aumentar a produção, reduzir os défices da balança comercial, tornar a produção nacional mais competitiva, mais eficiente. Quantificar estas grandezas e responder por isso. Definir as políticas e as estratégias necessárias, os objectivos para cada organismo a serem auditados regular e eficazmente – também de forma didáctica. Claro que o guia para tudo isto teria de ser um plano económico e social, como aliás a Constituição consagra.
Se assim acontecesse poderíamos dizer que a desenvolvimento económico tinha uma hipótese de se concretizar.
Mas não, tudo isto é algo proibido pelo neoliberalismo. Vive-se de visões sem visão. Debitam-se banalidades inconsequentes ou verdades de Sr De La Palisse – tivemos e temos em altos cargos personalidades exímias neste género de loquacidade. (1)
Em vez do esclarecimento dos conceitos, de objectivos concretos e da forma de os alcançar, a decadência da democracia que a rendição ao neoliberalismo trouxe, recorre à “propaganda” pura e simples. Os problemas são originados porque as “medidas” não são comunicadas ao “povo” de forma eficaz, pouco interessando os conteúdos. Quem já desistiu de enfrentar o concreto refugia-se no subjectivismo, no artificialismo. As políticas valem, então, apenas pelo que parecem ser. Servem-se de encenadores de eventos, vulgo consultores de imagem, que ensinam aos políticos do sistema a exprimir-se em “visões”.
O tema recorrente é então: carpir pelas desgraças que afligem a maioria; debitar um conjunto de generalidades com bons sentimentos e boas intenções. À volta disto lançam-se críticas sobre os concorrentes à venda do mesmo produto político: o neoliberalismo.
“Educar é distrair”, escreveu André Malraux. A subtileza da frase está na sua ambiguidade. Ensinar o quê? Distrair de quê e com quê? Com cultura e verdade ou incultura e inverdade? Distrair do facto fundamental que a realidade política do sistema é escondida com “visões”?
A realidade contudo é algo que não se expulsa da vida com visões. As drogas trazem sempre a sua ressaca, as suas crises. Dão óptimas visões, mas com muita miséria humana associada. O endividamento foi a droga com que se iludiu o abaixamento do salário real, acreditando numa mítica sociedade de consumo sem contradições.
Se algum de nós se apresentasse a eleições como candidato a primeiro-ministro (algo que formalmente não existe) e prometesse 150 000 postos de trabalho, não aumentar os impostos, etc., com o apoio de gente ligada à banca, grandes empreiteiros, etc., também ganhava. É que com estes apoios também teria do seu lado a comunicação social controlada e nenhum dos entrevistadores ou comentadores iria questionar de forma consistente o “como?”
A democracia exige participação, vigilância, exigência, rigor, verdade. Exige que haja uma visão comum que oriente a sociedade e não visões inconsistentes, fruto de sucessivas falsidades e inconsistência teóricas. A realidade só pode ser analisada com métodos científicos e não distraída com visões.
Dizia André Malraux, para o citar de novo, que “a condição humana não é uma dádiva, é uma conquista sempre precária”. A democracia também.
(1)   – Os discursos do passado 25 de Abril em Belém, são na minha opinião, um exemplo acabado da banalidade inoperante, repetindo o que do exterior já fora exigido.

A seguir: 18 – Populismo (ainda acerca das próximas eleições)

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