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24 de julho de 2013

A Traição da Social-Democracia

Se bem me lembro da história dos últimos dois séculos, a «coisa» terá começado com o revisionismo de Kautsky e Bernstein. Este último terá ficado algo famoso pela sua tese de que «o importante mesmo era o movimento»... Entretanto não especificava bem claramente qual era a direcção do caminho a seguir, pois que aquilo que para ele parecia ser mesmo importante era «ir andando»... A este respeito, suspeito que o poeta andaluz António Machado não devia apreciar muito a proximidade verbal com as estrofes do seu famoso poema «Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais; caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar».
Durante umas décadas, a seguir à Revolução de Outubro, a social-democracia europeia parecia querer seguir uma via alternativa para se chegar ao Socialismo, meta histórica almejada por todos os progresistas. No que diz respeito ao mundo de língua inglesa, o contributo de Keynes veio dar algum fôlego ou alento às correntes social-democratas, através das suas ligações às sociedades fabianas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Sendo que as sociedades fabianas se propunham chegar ao socialismo por via de um atrito e desgaste (moral e físico) planeado, do sistema capitalista1 e foi assim que o período dos «trinta gloriosos» anos da reconstrução do pós-segunda guerra mundial, viu emergir muitas das ideias keynesianas da construção de um Estado de Bem Estar Social.
Os herdeiros políticos de Kautsky e Bernstein pareciam «dar-se por satisfeitos» e continuavam a fazer a sua «caminhada» (o «movimento», sempre o «movimento»...) sem, pelos vistos, terem uma noção exacta de para onde é que queriam caminhar. Pareciam assim limitar-se a «administrar o capitalismo» melhor – julgavam eles – do que os próprios capitalistas.
Mas muitos destes – os donos efectivos do Capital – conhecem naturalmente muito melhor do que os «sociais-democratas» qual a lógica de funcionamento do sistema capitalista. E deram-se conta de que a dinâmica histórica não iria deter-se numa «gestão humana, mais justa e racional» do sistema. A dinâmica histórica, com uma permanente evolução sistémica (mais tecnologia, menos tempo de trabalho, mais tempo livre para pensar...) poderia acabar por conduzir a uma maior consciencialização das massas trabalhadoras – entretanto cada vez mais qualificadas («teconologia «oblige»...). Tudo isso um pouco por todo o mundo mas a começar principalmente nos países «mais avançados». Ao mesmo tempo que conduziria – inevitavelmente – a uma continuada desvalorização do Capital e a um esgotamento progressivo da fonte de «valor acrescido»: menos trabalho humano vivo. 
Dir-se-ia aqui, com ironia quanto baste, que alguns dos donos do Capital poderiam ter sido leitores e estudiosos atentos do «Das Kapital» de Karl Marx...
Ainda que de uma forma algo enviesada, o primeiro dos grandes (ou melhor, o mais ilustre...) dos continuadores de Kautsky e Bernstein – enquanto «soi disant» social-democratas – terá sido J.M.Keynes. Este recuperou o problema fundamental da Economia Política clássica: o problema da procura efectiva; quem é que consome o produto excedente que não seja aplicado em novos investimentos. Foi também a altura da «criação destrutiva» de Schumpeter e da classe do lazer de Thorstein Veblen. Na realidade nem esta classe do lazer, nem a tal «criação destrutiva» foram suficientes para absorver (ou eliminar...) os excedentes das crises de sobreprodução. Para isso, e para resolver o problema do desemprego sistémico daí resultante foram necessárias duas guerras mundiais. Há quem lhes chame a «guerra dos trinta anos do século XX».
Ao longo das décadas de meados do século XX – entre os anos Trinta e os anos Setenta, mais coisa menos coisa – apareceram alguns contributos interessantes tentando «salvar o que pudesse ser salvo» de alguns desvios e devaneios da social-democracia. Desde o «conformismo» de Schumpeter perante aquilo que ele considerava a inevitabilidade do socialismo por via do crescimento das grandes corporações empresariais e respectivas burocracias planificadoras do desenvolvimento capitalista, até ao «Novo Estado Industrial» (com a sua tecnoestrutura) de J.K. Galbraith, passando pelas múltiplas revisões e revisitações da obra de Marx (procurando «ajustá-la às "novas realidades"»...) houve de tudo um pouco.
E no meio da confusão social-democrata e reformista das «terceira vias», Hayek e a Sociedade do Monte Pélérin foram lenta e paulatinamente lançando as bases sólidas de um ataque coeso e firme a tudo quanto «cheirasse» a socialismo. Mesmo que se tratasse apenas de vagos odores «socialo-democratas». Nasceu assim o famigerado neoliberalismo e a sua consolidação como sistema único de pensar a economia.
A chamada «social-democracia» e os seus partidos representativos «adormeceram na forma», «meteram o socialismo na gaveta, cederam alegremente ao canto da sereia de um «capitalismo para todos» e os resultados dessa experiência social numa espécie de laboratório planetário, longa já de mais de três décadas, estão hoje bem à vista de quem tenha olhos para ver...
Nunca foi tão urgente estudar (e compreender mesmo) a lógica detalhada em «Das Kapital».
1Lembro que o nome «Sociedade Fabiana» fora escolhido em honra ao general romano Quinto Fábio Maximo que tinha contribuído para a derrota final do general cartaginês Hanibal, justamente pelo uso sistemático da estratégia do desgaste e de guerrilha permanente, em vez de batalhas de confrontação directa. Por outro lado, alguns dos fabianos mais conhecidos – Bernard Shaw é o caso mais saliente – não deixaram de admirar o «socialismo» de Mussolini e de Hitler... É o que pode acontecer – e acontece naturalmente - quando às «boas intenções» de «justiça social anti-capitalista» não se junta uma sólida base teórica sobre os fundamentos do sistema capitalista.

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