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17 de agosto de 2018

Uma entrevista esclarecedora


Entrevista
Lurdes Ferreira
e Nuno Ribeiro
Agostinho Lopes, engenheiro
químico de formação, deputado
durante 24 anos e membro
do comité central do Partido
Comunista Português (PCP),
previne que o acordo de Portugal,
Espanha e França para o aumento
da capacidade das ligações
eléctricas entre a Península Ibérica
e o resto da Europa vai servir os
interesses gauleses.
Disse recentemente que não
devemos dizer simplesmente
não ao nuclear. Que quer dizer?
Não há alteração nenhuma em
relação à posição do PCP, foi uma
frase retirada do contexto. Somos
contra a introdução da energia
nuclear para resolver os problemas
energéticos portugueses. Não
é uma posição de hoje, é de há
muito tempo, desde 1977.
Qual era o contexto?
Perguntaram-me e disse que não
somos favoráveis à introdução
da energia nuclear, julgamos
que o mix energético de Portugal
hoje não precisa do nuclear,
tem renováveis e outras fontes
não renováveis que devem ser
geridas num processo de transição
energética com bom senso, tendo
em conta a situação e estrutura
económica do país, os seus níveis
de produtividade e os custos para
o próprio Estado. É necessário que
o país continue a ter o aparelho
técnico e científi co em matéria
de conhecimento nuclear porque
continua a haver evoluções das
tecnologias nucleares. Se um
dia destes dermos um salto —
provavelmente ainda estaremos
muito longe — dos processos de
fi ssão actuais para os de fusão
nuclear, o problema poder-se-á
pôr de outra forma. Para isso,
é preciso que o Estado tenha o
aparelho científi co e técnico que
foi desmantelando ao longo dos

anos, de tal forma que hoje temos
difi culdades em saber o que está a
acontecer em Almaraz.
Também disse que era uma
opção a avaliar.
É uma questão que continuará
a ser avaliada em função da
evolução tecnológica.
Na comissão parlamentar às
rendas excessivas da energia,
o PCP e o Bloco não têm
feito reparos às alternativas
energéticas, não fechando a
porta ao nuclear?
Acho que nenhum deles disse isso.
Há quem esteja a tentar fazer da
comissão de inquérito um duelo
entre os lobbies do nuclear e das
renováveis.
Falando em evolução
tecnológica, no concurso
público das eólicas, em 2006,
as regras obrigaram o vencedor
a criar um fundo de 70 milhões
de euros para desenvolver a
investigação das renováveis
em Portugal. Sabe o que
aconteceu?
Sei, voltou aos mesmos que
o tinham pago — a EDP, por
exemplo. Denunciámos isso
na comissão de inquérito. Os
níveis de apoio às estruturas
públicas são manifestamente
insufi cientes em relação a muitas
tecnologias. Por exemplo, o
aproveitamento de produção de
biocombustíveis das microalgas,
um processo iniciado no Algarve.
O problema do armazenamento
de energia continua a ser uma
questão central, no dia em que
esse problema for resolvido, há
uma mudança de paradigma
energético, pois a questão
da intermitência [da energia
renovável] vai-se.

De um lado temos a
intermitência das renováveis,
do outro, o nuclear, cujas
centrais não podem parar.
E parece que o Governo está
muito interessado em criar essa
facilidade a França com a criação
da rede [de interconexões]. Vai ser

só para a exportação da eólica que
tivermos a mais baixo preço? De lá
não pode vir nuclear como já vem
de Espanha?
Então porque é que o PCP
em Fevereiro do ano passado
se absteve na proposta, de
Os Verdes, de Portugal não
comprar energia nuclear a
Espanha?
Não consideramos que estes
problemas se resolvam assim.
O Governo criou um sistema
de mercado teoricamente
livre, uma fraude criada com as
reestruturações energéticas, e
agora a Assembleia da República
decreta que, desse mercado,
electrões nucleares não chegam
cá. Não tem sentido, não é assim
que os problemas se resolvem.
Como é?
Vamos exportar energia subsidiada
pelos portugueses e vamos
importar energia nuclear francesa
provavelmente para fazer as
cascatas do Tâmega para depois se
fazer renovável, uma falsifi cação
de energia renovável.
Acusa o Governo de criar uma
situação para importarmos
energia nuclear francesa?
Sobretudo sem nenhum estudo
feito sobre as possibilidades da
nossa exportação de renováveis.
Devem ser criadas interligações,
mas transformar isso na solução
para termos energia mais barata
é, mais uma vez, estar a vender
a fraude daquilo que levou à
privatização e segmentação dos
mercados de electricidade no
nosso país com as consequências
que hoje adivinhamos.
António Costa não disse que era
uma oportunidade de Portugal
exportar energia excedentária
para o resto da Europa?
O nosso país continua a ter
gravíssimas carências energéticas,
continuamos a ter um défi ce
energético que, apesar deste
movimento das renováveis,
teve uma ligeira redução nestes
últimos anos, e não temos grandes
perspectivas de nos transformar
em grandes exportadores de
energia. É uma ilusão e não está
feito sequer nenhum estudo.
Para os três países há um
estudo.
Sim, de possibilidades. A rede
de energia é uma das novidades
deste sistema criado nos processos
de privatização, liberalização e

desmembramento da EDP. Criou-
se esta coisa espantosa, serem

os consumidores a pagarem os
investimentos da rede. A questão
é saber se pagamos uma rede
que corresponde aos interesses
nacionais ou uma rede que
interessa à EDP e à REN. É bastante
diferente do nosso ponto de vista.
Corresponde aos interesses dos
chineses?
Interessa-me lá a quem pertence!
Pertence aos chineses, aos
americanos que lá estão
também. Pertence mal a capitais
estrangeiros, públicos ou
privados. Foi cometido um crime
e só agora se começam a ver
todos os seus resultados. Temos
energias caríssimas, o falhanço
total dos reguladores. Esta meia
dúzia de audições na Assembleia
da República dá para provar que
os reguladores falharam de cima
a baixo e não tiveram capacidade
de intervenção contrariamente
àquilo que nos foi dito ao longo
dos anos.
Nas audições aos três
reguladores também fi cou a
ideia de que fi zeram o que lhes
cabia junto do Parlamento.
Estive na Assembleia da República
bastante tempo, ouvi as audições
de dois reguladores e nunca
colocaram nenhum problema
sobre o sistema existente. Mais:
a Assembleia da República toma
conhecimento do parecer da
Entidade Reguladora [sobre o
projecto de decreto-lei 240/2004
que alterou os mecanismos de
remuneração garantida das
centrais eléctricas, dos então
CAE — Contratos de Aquisição de
Energia, criados em 1995, para os
CMEC — Contratos de Manutenção
do Equilíbrio Contratual] depois
de o PCP em 2018 requerer esse
parecer. De 2004 a 2018, esse
parecer da Entidade Reguladora
[dos Serviços Energéticos], para
a Assembleia da República, não
existia.

lurdes.ferreira@publico.pt
nribeiro@publico.pt

Por que só pediram agora?
Nem sequer sabíamos. Sabíamos
que havia um parecer que constava
dos relatórios [anuais] em que
diziam que havia impactos, mas
não os classifi cavam, sobretudo
perante o questionamento feito ao
longo destes anos. Se forem feitas
as transcrições das audições na
Assembleia da República, como
esperamos, algumas dessas coisas
fi carão mais claras.
Pelo que foi dito na comissão de
inquérito, há dois momentos,
um antes da decisão do
Governo e outro depois, e
dois documentos, o primeiro
entregue ao Governo, o
segundo ao Conselho Tarifário
[onde estão municípios e defesa
do consumidor] que sobre ele
se pronunciou e que estava
disponível. Os deputados, na
altura, consideraram que era
um assunto técnico?
Não, não consideraram. Os
deputados não estão no Conselho
Tarifário e aquele parecer nem
sequer foi enviado ao Conselho
Tarifário. Tenho a documentação
que a ERSE nos mandou agora no
âmbito da comissão de inquérito
e não está lá nenhum parecer.
A gravidade maior é do poder
político, que faz o Parlamento
discutir uma autorização legislativa
sem esse documento fundamental,
quando os deputados da oposição,
que votaram contra a autorização
legislativa como o PCP, disseram
que aquilo ia provocar custos
para os consumidores. Os
estatutos da ERSE no seu artigo
19o, número um, tinham o título
de competências comuns, e não
competências consultivas como
o engenheiro Jorge Vasconcelos
[primeiro presidente da ERSE]
tentou dizer na sua audição,
que permitia que a entidade
reguladora, a ERSE, tomasse
a iniciativa legislativa junto do
Governo e da AR, mas nunca
o fi zeram. Pior: o [segundo]
presidente da entidade de
regulação Vítor Santos, que
acompanhou e deu pareceres
sobre alterações do decreto-lei
240/2004, fez de conta que os
problemas do primeiro parecer
não existiam, fez pareceres
absolutamente inócuos.
O problema não eram os
documentos, mas o quedepois
vinha associado, como ele
disse?
Eram os documentos e o pecado
original que são os CAE. O
problema não é apenas os CMEC
nem a sobrecompensação dos
CMEC. O problema é se devia
haver CAE ou CMEC — se se criou
um sistema como os CAE que
depois são substituídos pelos
CMEC, em que 95% da produção
de energia eléctrica em Portugal
fi cou sujeita a actividades de
quase ou nenhum risco. Essa
empresa espantosa em mercado
capitalista que é a REN tem os seus
investimentos pagos pelos seus
clientes e os seus lucros fi xados
administrativamente. Eu pergunto:
qual é o risco desta empresa?
Para o Parlamento, não há uma
lição a tirar? Não lhe caberá
mais iniciativa na sua relação
com o regulador?
Há muitas lições que vão ser
tiradas, pelo menos nós estamos
a procurar tirá-las, mas este é
um problema que vai continuar
muito dependente do Governo.
O grande problema não é apenas
o regulador. Assisti a muitas
mais autorizações legislativas
que chegaram à Assembleia
da República, algumas das
quais questionámos, sem o
devido parecer das entidades
directamente envolvidas.
Defende preços mais baixos
para a electricidade e para os
combustíveis fósseis. Incentivar
mais consumo de fósseis não
leva a mais poluição?
Não. Há um problema dos custos
que a economia portuguesa
paga, e os portugueses em geral
pagam, pelos combustíveis
fósseis que é manifestamente
exagerado. Quando falo de gestão
e de transição carbónica com
bom senso é que não devemos
querer ser os campeões da
transição carbónica, não temos
condições da economia para
sermos campeões nessa matéria.
Temos de ir acompanhando os
outros porque é muito difícil
para a economia portuguesa, por
exemplo na zona euro, preços
dos combustíveis no máximo
semelhantes à média da zona
euro. Os custos energéticos são em
muitos casos e muitas empresas
muito superiores, por exemplo,

aos custos laborais. Aprovou-
se um projecto de resolução do

PCP em Dezembro de 2016 sobre
combustíveis fósseis com medidas
de solução para os problemas
do estabelecimento de preços
máximos, de desenvolvimento de
redes de gás natural comprimido e
gás natural líquido que seriam uma
boa alternativa e desenvolveriam
o mercado concorrencial destes
combustíveis. Ou respostas aos
problemas dos transportes,
porque não resolvemos os
problemas da energia em Portugal
sem resolver o problema do
sistema dos transportes, que é
um cancro a corroer o sistema
energético nacional.
Acredita nas alterações
climáticas?
Acredito. Mesmo que não
acreditasse, acho que há um
princípio fundamental de
precaução.
Para o mundo socialista, há um
antes e depois de Thernobil
para a energia nuclear?
Certamente que há. Em todo o
mundo, os desastres anteriores
vinham naturalmente alertando e
há o problema insolúvel até hoje
dos resíduos. A França tem 78%
da sua energia eléctrica de origem
nuclear e eu gostava de saber o
que eles fazem aos resíduos dessas centrais

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