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2 de fevereiro de 2023

Reduzir custos para opinião publica ver

Depois da condenação da opinião publica Moedas . igreja e o dito Estado Laico querem reduzir custos.

Com dignidade  dizem alguns  em tom de justificação . Com dignidade sim.  Mas não se pode receber com dignidade . sem ostentação e mais modestamente ? Receber o Papa no espírito  das encíclicas que a igreja portuguesa objectivamente silenciou . Publicamos aqui uma apreciação feita  por Fernando Sequeira aquando da sua publicação

Carta Encíclica Fratelli Tutti

Capítulo I – Introdução

A Carta Encíclica Fratelli Tutti (Todos Irmãos), de ora em diante designada por

Encíclica, elaborada sob a responsabilidade do Papa Francisco, viu a luz do dia a 3 de

Outubro de 2020 em Assis, terra Natal de S. Francisco de Assis, na véspera da

designada Memória Litúrgica deste Santo.

Muito à semelhança da via prosseguida e da estrutura da sua anterior Encíclica, a

Laudato Si (Sobre o cuidado da casa comum), dada à luz em 2015, e tratando

aparentemente de questões ambientais, o Papa Francisco, nesta sua nova Encíclica,

tendo escolhido um foco claramente cristão, mas não só, a saber, o da Fraternidade

entre os Homens, tal foco, naturalmente que não em contradição, constitui uma

espécie de pretexto para apresentar, novamente, pois que já o tinha feito na anterior

Encíclica, embora naturalmente noutros moldes, um diagnóstico demolidor do modo

de produção capitalista nas condições da atualidade.

Contudo, não se ficou pela apresentação de um diagnóstico, tendo mesmo passado à

apresentação de soluções e medidas para superar ou atenuar os gravíssimos

problemas identificados, muitas delas, obviamente, soluções claramente anti-

capitalistas.

De referir também e desde já, que a presenta Encíclica reúne e desenvolve os grandes

temas constantes de um documento comum, assinado em 4 de Fevereiro de 2019, em

Abu Dhabi, pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyb, documento sobre

a Fraternidade humana em prol da Paz mundial e da convivência comum.

Tal como na anterior Encíclica, trata-se de um documento profunda e

inequivocamente político, que só a utilização de uma linguagem diferente do que é

habitual em documentos com origem em pensadores de matriz marxista ou próximos,

para tratar de tal tema, poderá passar despercebida a observadores menos atentos e

preparados, para saber distinguir entre o essencial e o acessório.


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Assim, no que respeita às questões essenciais, esta Encíclica, não apresenta o mínimo

desvio ou hesitação em identificar e caracterizar, sem equívocos, os fenómenos de

exploração desenfreada nas suas diversas vertentes, e dos instrumentos,

designadamente os do domínio comportamental-ideológico, para prosseguir tal

exploração, indo ainda até questões limite, como a da guerra e do recurso às armas

nucleares.

E também identifica os responsáveis pelo próprio nome, tais como o brutal poder

económico das multinacionais (que designa por “o grande poder económico”), e

instrumentos como a manipulação e a instrumentalização dos povos, ou a promoção

desenfreada do individualismo e do egoísmo.

Só não usa é o termo capitalismo uma única vez que seja, talvez por estratégia, tal

como já tinha acontecido na Encíclica anterior.

Sendo produto intelectual de um Papa, naturalmente que a Encíclica apresenta

diversas, mas, contudo, não abundantes, em termos relativos, referências

exclusivamente religiosas, questões, digamos, do domínio do Catecismo.

Trata-se do indispensável, quase que o acessório, uma espécie de véu para cobrir a

essência do documento, que, como afirmámos atrás, é uma devastadora crítica do

modo de produção capitalista nas condições da atualidade.

Trata-se de um documento que, muito mais do que questões divinas e metafísicas,

incide sobre questões bem terrenas, ou seja, as condições de vida, as questões do

quotidiano dos povos, muitas delas dramáticas, nas circunstâncias históricas do século

XXI.


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Capítulo II – Questões metodológicas

Por razões metodológicas, o presente documento de apreciação, seguirá uma

estrutura, naturalmente que arbitrária e artificial, mas absolutamente necessária para

sistematização daqueles temas que entendemos como dominantes, ou críticos, ou

estratégicos, independentemente das suas naturais ligações orgânicas, dependências e

hierarquias.

Assim sendo, tal como afirmámos no título, tratam-se de notas de uma leitura e não de

notas da leitura da Encíclica.

Os temas que selecionámos como dominantes, ou que, no nosso entendimento,

merecem uma abordagem autónoma, e que vão sendo apresentados ao longo da

Encíclica, de forma dispersa ou mesmo muito dispersa, são os seguintes, a saber:

Grupo I – Temas selecionados que integram o Diagnóstico

- As políticas, mundial e nacionais, subordinadas ao poder económico das

multinacionais

- Sobre a manipulação e instrumentalização dos povos pelo grande poder económico

- A construção da linha ideológica de perda de sentido da História

- A promoção do individualismo e do egoísmo enquanto instrumentos políticos do

processo de dominação

- Sobre a exploração dos seres humanos, designadamente enquanto trabalhadores

- Acerca da imposição de um modelo cultural único

- Sobre a problemática da Guerra e da Paz

- Sobre a questões das migrações nas condições da atualidade

- Sobre as profundas contradições entre o desenvolvimento da C&T e a distribuição da

riqueza


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Grupo II – Temas pertencendo à categoria de propostas

- Sobre a necessidade da luta dos povos contra as causas estruturais da exploração,

por uma política nova

- Das pequenas às grandes lutas, todas são importantes

- Sobre as dimensões local e global das lutas e a sua complementaridade

- Sobre a questão da propriedade privada

- A questão central do Trabalho nas sociedades atuais

- Sobre o papel do Estado (dos Estados), no processo de procura de uma nova política

- Sobre o papel da política e dos políticos

- C &T e desenvolvimento

É também de realçar, que outras questões, no nosso entendimento menores, ou não

essenciais, são abordadas, e por vezes até razoavelmente desenvolvidas na Encíclica,

mas que não abordaremos nesta nossa apreciação.

A razão que nos conduziu, foi de facto a da essencialidade dos temas em análise,

naturalmente que de acordo com o nosso entendimento, com vista a apreciação não

perder força.

No capítulo IV, iremos desenvolver, por vezes de forma algo desequilibrada, o

conteúdo de cada um destes grandes temas.


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Capítulo III – A Encíclica Fratelli Tuttti e as posições históricas

do PCP

Julgamos ser desde já de destacar, que, embora partindo de posicionamentos

diferentes ou mesmo muito diferentes, uma observação muito razoavelmente isenta e

descomprometida, partindo de um quadro sociológico de crenças e valores

historicamente associados ao Cristianismo e à Igreja Católica (do grego, universal),

múltiplos aspetos e abordagens das até agora duas Encíclicas do Papa Francisco,

chegam, muitas das vezes, e em muitos e diversificados domínios, apreciações e

propostas a identificarem-se com muitas das posições históricas do PCP.

É o que tentaremos observar ao longo das páginas seguintes.

E isto é tanto mais de realçar, porquanto se trata muitas das vezes de domínios

ideologicamente muito críticos, muito no fio da navalha, domínios mesmo de rutura,

como a questão dos limites sociais e económicos da propriedade privada, do direito à

revolta, à insubmissão e à luta contra a exploração, da manipulação e

instrumentalização dos trabalhadores e dos povos, ou mesmo sobre o insubstituível

papel do Estado.

E mais ainda, algumas das formulações, se dissecadas na sua essência, conduzem-nos a

perspetivas que andarão não muito longe, da nossa perspetiva de uma sociedade

socialista.

De facto Francisco fala-nos da necessidade de um Mundo Novo, quando afirma que

“…O debate é completamente manipulado pela prepotência dos mais fortes, que estão

contra um mundo novo…”.

Aquilo em que há uma diferença muito significativa, é no léxico utilizado por parte de

Francisco, diferente, mais comedido, mais redondo, mas que, se bem lido e apreciado,

conduz exatamente aos mesmos conceitos e fenómenos, sociais, económicos e

políticos.


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De alguma maneira, esta abordagem lexical e sintática, é, em termos comunicacionais,

muito mais útil, pois que não cria, por si só, anti-corpos a uma linguagem mais de

esquerda, com evidentes categorias de esquerda, mesmo de matriz marxista, anti-

corpos inoculados durante, pelo menos, 104 anos de anti-comunismo.

A este propósito, uma questão de enorme importância política e ideológica, seria a

divulgação muito ampla desta Encíclica (e também da anterior), tendo em atenção,

simultaneamente, a sua origem (o Papa), o seu real conteúdo. e traços sociológicos

dominantes do grosso dos potenciais recetores, que, de forma mais profunda ou mais

ténue, sofreram e sofrem influências históricas do Catolicismo, e constituem uma

parte muito significativa da população.

E tal divulgação deveria ser suportada numa forma condensada e apelativa.


Capítulo IV – Sobre as grandes questões desenvolvidas na

Encíclica

IV.1 – Na perspetiva do diagnóstico de situação

a) Acerca das políticas, mundial e nacionais, subordinadas ao poder económico

das multinacionais

De alguma maneira, poderemos afirmar que esta é a questão das questões,

indiscutivelmente a questão central das conclusões explícitas ou implícitas constantes

do diagnóstico da situação política, social, económica, financeira, cultural e ambiental

mundial, nas condições concretas da contemporaneidade (embora assumindo aspetos

objetivos e subjetivos), da qual todas as outras decorrem (mesmo aquelas que atrás

inventaríamos e que seguidamente desenvolveremos), seja enquanto instrumentos

para prosseguir tal orientação de domínio mundial, seja enquanto efeitos de tal

política.

É muito firme e muito clara a posição do Papa Francisco a este propósito, ao afirmar

que, para prosseguimento e aprofundamento de um “…modelo económico fundado no

lucro…” de que resultam “inúmeras e profundas injustiças que negam completamente


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os direitos humanos…”, o grande capital multinacional, trabalha para que a esfera mais

nobre e importante da política, esteja subordinada ao seu poder económico, ou seja,

“…a política, subordinada ao poder económico das transnacionais…”.

Ou ainda, na mesma linha de denúncia, que “…A única liberdade é a dos poderes

económicos para investir sem entraves em todos os países…”.

E sendo isto verdade no plano dos Estados que vivem sob o modo de produção

capitalista, é-o cada vez mais, de acordo com a Encíclica, num plano mais abrangente e

perigoso, isto é, no plano mundial.

Nesta perspetiva, é afirmado na Encíclica que “…a eficiência económica dos sistemas

económicos, políticos e ideológicos comandados pelas grandes empresas…”, assenta

na “…exploração dos seres humanos e dos trabalhadores…” e é claramente “…contra

os mais fracos e dependentes…”.

E isto no que concerne à exploração dos seres humanos, mas, noutro domínio, existe a

exploração, num só sentido, e num só interesse, dos recursos naturais.

E a propósito, a Encíclica afirma, por outro lado, que as grandes multinacionais, de

forma crescente, “…apropriam-se dos recursos naturais de outros países (que não o do

país de origem da multinacional), por vezes de países inteiros…”.

Também no mesmo domínio destaca “…as pressões exercidas pelas dívidas externas,

que estrangulam o desenvolvimento dos países mais pobres…”.

Também se afirma na Encíclica “…que o mercado não resolve tudo (bem ao contrário),

embora o dogma (é muito interessante o uso desta palavra pelo Papa) da fé neoliberal

nos queira fazer crer o contrário…”.

O Papa, dando um exemplo muito concreto e muito atual, o “…das circunstâncias

concretas em que se desenvolveu a pandemia do COVID-19, provou inequivocamente

que o mercado não resolve os verdadeiros problemas das sociedades…”.

Por outro lado, também afirma que “…Neste século XXI, os Estados nacionais, vêm

perdendo cada vez mais poder, face à dimensão económico-financeira das


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multinacionais e ao seu poder económico e político, pelo que, perante isto, torna-se

urgente e necessário

- uma nova arquitetura económica e financeira;

- um reforço e uma reforma da ONU, com vista à promoção e ao fortalecimento do

direito internacional;

- reforçar a força do Direito, em vez do direito da Força;

- estabelecer acordos multilaterais entre os Estados, acordos para proteger os mais

fracos, em vez de acordos bilaterais…” que claramente os desprotegem.

Também é afirmado na Encíclica que “…a política não deve submeter-se à economia

(assim como determina a Constituição da República Portuguesa) e aos seus

paradigmas eficientistas…”, base de todos os processos de exploração.

Não são todos, mas são alguns dos importantes exemplos da intervenção do grande

capital transnacional, na sua perspetiva de conquista e exploração mundial, elencados

nesta Encíclica.


b) A manipulação e a instrumentalização dos povos pelo grande poder

económico

Ao evidenciar a importância dos processos profundos, crescentes e cada vez mais

diversificados e sofisticados de manipulação dos povos pelo imperialismo, o Papa

Francisco está a pôr a nú, talvez o principal instrumento para obtenção do poder

absoluto e geral por parte do grande capital transnacional sobre os Estados e os povos,

nas condições do capitalismo neoliberal globalizado do século XXI.

Para prosseguir e aprofundar tal processo planetário de manipulação, o grande capital

utiliza em seu proveito as brutais potencialidades contidas e decorrentes dos

progressos da C&T, designadamente no domínio das centrais de produção e difusão

ideológica e dos modernos meios de comunicação de massas.

A Encíclica analisa e inventaria tais usos. Vejamos pois.


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Assim, destaca que “…a comunicação e os meios de comunicação, designadamente as

redes sociais e o seu total controlo pelos grandes interesses económicos, seja na

perspetiva económico-financeira, seja sobretudo na perspetiva da instrumentalização

das massas…”, portanto dos trabalhadores e dos povos.

Também refere a sistemática “… instrumentalização de palavras e conceitos, tais como

liberdade, democracia e fraternidade…”, ou “…a utilização completamente abusiva e

permanente do conceito de direitos humanos…” […..] “…que não são iguais para

todos…”.

Nesta mesma linha, também é afirmado na Encíclica que “…a consciência do que

realmente se passa, em cada país e no Mundo, poderá ser bem pouca por parte dos

Povos, face à propaganda política criada e orientada pelos meios e os criadores de

opinião pública, que tudo fazem para fomentar uma cultura individualista, face aos

desenfreados interesses económicos dos poderosos…”.

No quadro desta muito bem focada crítica, o Papa Francisco também alerta para o

facto de “…as redes sociais apresentarem um caráter perverso e manipulatório, pois

que os pseudo-debates realizados no seu seio, são manipulados pelos interesses

daqueles que detêm o poder e conseguem inclinar a opinião pública a seu favor…”, e

afirma ainda que “…os meios de comunicação digital expõem ao risco de dependência,

independência e perda progressiva de contacto com a realidade…”, e ainda que “…as

relações digitais impedem o cultivo da amizade e retiram tudo aquilo que faz parte da

comunicação humana…”.

E porque está perfeitamente implícito, nem é preciso citar os nomes de Google, Face

Book e quejandos.

Por outro lado, também afirma que “…a “internet”, que encerra em si mesma,

enormes potencialidades, também potencia enormes contradições e está a ser

utilizada não só para manipular, mas também para explorar as nossas fraquezas e

potenciar o pior de nós…”.

No quadro dos processos manipulatórios, a Encíclica coloca-nos a questão da verdade

nestes termos, “…temos que desmascarar as várias modalidades de manipulação,

deformação e ocultação da verdade, nas esferas pública e privada; caso contrário, os


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direitos fundamentais acabam negados pelos poderosos, que impõem as “… verdades

que lhes interessam…”.

E insiste no facto de “…Os grandes interesses económicos, interesses gigantescos, que

operam no mundo digital, usam-no para operar formas de controlo subtil, criando

mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático…”.

De facto, é muito difícil ser-se mais claro e certeiro.

E é espantoso que, quando milhões e milhões de pessoas no Mundo, exatamente

porque completamente manipuladas, não percebem estas situações, isto é, passe a

redundância, a verdadeira verdade, situações que estão na base da mais completa

negação das liberdades individuais, sobretudo em termos dos processos decisórios

livres e autónomos, seja preciso um chefe da Igreja Católica, para dizer que o rei vai

nu, afirmando de forma clara e crua.

E, no pressuposto da aplicação da regra de ouro dos processos manipulatórios, que é,

como bem sabemos, a de quem está a ser manipulado não poder saber que o está a

ser, e continuar portanto a julgar que pensa exclusivamente pela sua própria cabeça,

podendo até vir a suceder que muitas das pessoas manipuladas possam vir a rejeitar o

próprio diagnóstico de Francisco.


c) Sobre a perda do sentido da história

Ao também fazer incidir a sua atenção sobre a questão História da Humanidade, e ao

realçar a enorme importância do seu conhecimento, pretérito, nomeadamente em

termos das dinâmicas e leis que lhe subjazem, para o entendimento do Presente e do

Futuro, a Encíclica faz uma abordagem absolutamente progressista, particularmente

quando acuso os teóricos e os propagandistas do neoliberalismo de “…perda do

sentido da História: Não há passado, só futuro …”, ou seja, de que as suas análises não

têm em consideração o devir histórico e que portanto são análises inconsistentes e

falsas.

É pois mesmo muito importante a afirmação de Francisco, de que, “…contrariamente

às teses da teoria económica imperante…” [……..] “…não há fim da História…”.


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Não é engano, ele escreveu mesmo isto.

Em completa linha com esta visão, e, relativamente à memória histórica, a Encíclica

afirma “…que os crimes contra a Humanidade podem ser perdoados, mas nunca

devem ser esquecidos; por exemplo, os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki

não podem nem devem ser esquecidos…”, assim como, “…também não devemos

esquecer outros factos históricos que nos envergonham, como as perseguições, o

comércio de escravos, os massacres étnicos, etc….”.

E continua afirmando que, “perante os crimes há que fazer justiça, mas não vingança,

mas também não impunidade…”

Reforçando o que atrás vimos observando, devemos sobretudo valorizar a destruição,

completamente demolidora sob o ponto de vista ideológico, por parte da Encíclica, de

que, “…contrariamente às teses da teoria económica imperante…”, isto é, as teses

neoliberais do império, “…não há fim da História…”.

Mais não fora, a Carta Encíclica Fratelli Tutti já valeria somente por esta afirmação.


d) Sobre a exploração dos seres humanos, nomeadamente enquanto

trabalhadores

A abordagem da questão da exploração das pessoas nas suas múltiplas vertentes e

circunstâncias, designadamente enquanto trabalhadores, e da sua veemente denúncia,

constitui uma constante ao longo de toda a Encíclica, independentemente dos

capítulos e dos temas mais especializados em apreço.

De uma outra maneira, a defesa constante e quase obsessiva do respeito pela pessoa

humana, em contraposição aos fenómenos de exploração, nomeadamente quando

destaca que “…cada sociedade necessita de garantir geracionalmente a transmissão de

valores de respeito pela pessoa humana, nas suas diversas vertentes, pois, caso

contrário, o que imperará é o egoísmo, a violência, a corrupção e a indiferença…”.

No que respeita mais diretamente à pobreza, Francisco evidencia um aspeto de

enorme importância política e social, que é o facto de “…Os atuais graus de pobreza


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não podem ser avaliados com os critérios do passado, porque o contexto histórico é

outro, e as necessidades humanas sempre têm evoluído historicamente…”, chegando

ao ponto de referir a “…pobreza energética…”.

De facto, de vez em quando é preciso recordar que há setenta anos quase nenhuma

família em Portugal possuía frigorífico ou há sessenta anos televisão.

Hoje é insuportável que o não tenha.

E noutro domínio, destaca também “…A obsessiva redução de custos, no quadro do

descarte (dos trabalhadores), gerando desemprego, assim como formas diversas de

racismo e pobreza…”.

No quadro da questão tipo de linguagem utilizada na Encíclica, o Papa Francisco,

raramente, ou mesmo nunca, utiliza as palavras trabalhador ou explorado, ou

proletário, antes preferindo, de forma recorrente, os termos pobre e pobres,

desfavorecidos, os mais vulneráveis, os descartáveis.

Contudo, ao contrário, como observámos e observaremos, utiliza e enfatiza a palavra

Povo.

A questão do Homem, do trabalhador, do reformado, enquanto coisa que se usa e se

deita fora, como algo completamente descartável por parte de um sistema económico

e social que a Encíclica condena, de forma clara e inequívoca, é uma das pedras de

toque de Francisco ao longo de todo o documento.

Por exemplo, quando afirma que “…o desprezo pelos mais vulneráveis, esconde-se

muitas vezes sob a capa do populismo e ou do neoliberalismo, ambos ao serviço dos

interesses dos poderosos…”.

E, numa outra linha, contudo complementar da anterior, afirma que “…A tentativa de

fazer desaparecer da linguagem a palavra Povo, pode conduzir à eliminação da própria

categoria democracia…”, pois que, “… o liberalismo não tem em consideração a

categoria Povo…” e que “…os populistas deformam permanentemente a palavra

Povo…”.


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Numa espécie de contra-ponto, a Encíclica considera que “…A superação das

desigualdades requer desenvolvimento económico…”.

Uma consequência limite dos processos de exploração é a fome.

Para Francisco, “…A alimentação é um direito fundamental e inalienável e portanto a

fome é criminosa, pelo que a política mundial tem de colocar entre os seus objetivos

principais e irrenunciáveis o eliminar completamente a fome…”.

E mais, vai mais longe na denúncia das responsabilidades daquilo que designa por

“…grande poder económico…” (o grande capital transnacional), ao afirmar que “…A

especulação financeira do grande poder económico (tal como está a acontecer de

forma alargada e violenta nos dias de hoje), está a condicionar o preço dos alimentos,

como se estes fossem uma qualquer mercadoria, promovendo a fome e a morte…”

É muito difícil encontrar quem, fora da área das forças políticas e sociais mais

progressistas, faça uma análise tão vigorosa e certeira quanto esta, do que é a

exploração dos trabalhadores e dos povos pelo capitalismo.


e) Acerca da imposição de um modelo cultural único

Como já anteriormente abordámos, a Encíclica destaca de forma muito clara, o

objetivo estratégico de domínio universal pelo grande capital e o imperialismo (que,

recordamos de novo, o Papa Francisco designa por países poderosos e empresas

poderosas) de imposição de um modelo cultural, e naturalmente ideológico, único,

enquanto vertente daquilo que de há muito designamos por pensamento único, e de

novas e diversificadas formas de colonização cultural.

Começa por afirmar na Encíclica que a “… dependência cultural constitui uma maneira

fácil de domínio…”.

Também novamente, e de forma inequívoca, declara que “…Há que respeitar as

diferentes culturas, enquanto fator de enriquecimento das sociedades e do Mundo…”,

ao mesmo tempo que afirma que “…Uma cultura (nacional) sem valores universais,

não é uma verdadeira cultura…”, mas tal caráter universal “…não significa, bem ao


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contrário, aceitação de uma cultura única, como pretendem os países poderosos e as

empresas poderosas…”.

E continua nesta linha de pensamento, ao afirmar que “… A sã abertura nunca ameaça

a identidade, porque ao enriquecer-se com elementos de outros lugares, nasce uma

nova síntese, que a todos beneficia, pois que o Mundo cresce e enche-se de uma nova

beleza, graças a sucessivas sínteses que a produzem entre culturas abertas, fora de

qualquer imposição cultural…”.

É bom recordar aqui, que a cultura portuguesa é um excelente exemplo de tais

criativas e enriquecedoras sínteses, formadas ao longo da História.

Esta singularidade de cada cultura decorre do facto de “…A cultura é algo que

penetrou profundamente no Povo, nas suas convicções mais profundas e no seu estilo

de vida, o que caracteriza verdadeiramente aquele grupo humano…”.

Por isso, “…A promoção dos países economicamente mais desenvolvidos, enquanto

modelo cultural, para os países pouco desenvolvidos é inaceitável, porque destrói as

culturas nacionais e gera uma baixa auto-estima por aquilo que lhe é próprio,

desprezando as culturas nacionais…”.

De alguma forma, a questão das culturas nacionais (e mesmo regionais) e da

necessidade da sua preservação, tem imensos pontos de contacto com o binómio

patriotismo-internacionalismo.

De facto, de acordo com Francisco, “…temos que atender permanentemente às

dimensões global e local, que não são contraditórias, bem pelo contrário…”, ou ainda

que “…Não há abertura entre os povos (vertente internacionalista), senão a partir do

amor à terra, ao Povo, aos próprios traços culturais (a vertente patriotismo), pois que é

o próprio bem do Mundo que requer que cada um de nós proteja e ame a sua própria

terra…”.

E ainda afirma que “…Um país cresce quando dialogam de forma construtiva as suas

diversas riquezas culturais: a cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a

cultura artística, a cultura tecnológica, a cultura económica, a cultura da família e a

cultura dos meios de comunicação…”.


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Ainda no correto entendimento de que o “…o patriotismo é sadio e o nacionalismo é

perigoso…”, afirma que “… As outras culturas não são inimigas, mas antes reflexos

distintos da riqueza inexaurível da vida humana e a abertura a estas nunca ameaça a

nossa própria identidade cultural, ao contrário, enriquece-a…”, como também “… o

relacionamento entre o Oriente e o Ocidente corresponde a uma necessidade mútua

indiscutível, em que ambas as partes se enriquecem mutuamente…”.

O mesmo pensamento de um respeito pelas diferentes culturas, particularmente

aquelas representadas simbolicamente pelo Oriente e o Ocidente, é destacado por

Francisco, sobre a viagem e a visita, muito difícil à época (século XI, em pleno período

de Cruzadas), que São Francisco fez ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito.


f) A promoção do individualismo e do egoísmo, enquanto instrumento de

dominação política

A Encíclica é muito clara a este respeito, quando afirma que, com vista à construção do

novo poder internacional e da nova ordem internacional pelo imperialismo “…As

estratégias mundiais dominantes, têm-se desenvolvido na base de um maior

individualismo e particularmente de uma total liberdade para os poderosos…”. Ao

invés, destaca “…A importância do coletivo e da luta coletiva em contrapartida ao

egoísmo e ao individualismo…”.

Complementarmente, também refere que “… Fazer um povo cair no desânimo é o

epílogo de um perfeito círculo vicioso: assim procede a ditadura invisível dos

verdadeiros interesses ocultos, interesses que se apoderam dos recursos e da

capacidade de ter opinião e pensamento próprios…”.

Num enquadramento diferente, ao tratar da necessidade de recuperar uma postura de

amabilidade para com os outros, a Encíclica afirma que “…O exercício da amabilidade

não é um detalhe insignificante, uma atitude superficial e burguesa, pois que o ser

amável para com os outros é necessário e importante…”, e, “ao contrário, , o

individualismo consumista provoca abusos, tornando-se os outros meros obstáculos,

particularmente em situações de crise…”.


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g) Sobre a problemática da Guerra e da Paz

Contrariamente à prática de muitos movimentos orgânicos e inorgânicos, sejam de

caráter social, sejam de caráter político, normalmente crismados como sendo de

esquerda, ou ecologistas e ambientalistas de vários matizes, ou sejam o que sejam,

para o Papa Francisco, a questão da Guerra e da Paz é uma questão central dos dias de

hoje, questão em que objetivamente não existem meios termos.

De facto, este começa por afirmar, relativamente a este tema e de forma

absolutamente definitiva “… Não à guerra, sim à Paz…”, ou, de outra forma “… Nunca

mais à guerra…”.

É muito evidente a sua perceção acerca de quem, nas condições da atualidade,

promove a guerra, quando afirma “…A guerra não é um fantasma do passado, mas

tornou-se uma ameaça constante, devido à criação constante e crescente das

condições para que ela ecloda…”.

Convirá aqui recordar, que aquando do início da guerra imperialista contra a Síria, os

EUA, alegando uma ficcionada existência de armas químicas por parte do governo

sírio, ameaçavam então com bombardeamentos (ainda que depois de votação

desfavorável do Conselho de Segurança da ONU), o Papa Francisco, numa entrevista

transmitida então pelos principais meios de comunicação, afirmava, a este propósito,

que “…Tenho as maiores dúvidas de que a Síria tenha armas químicas, pois que tal não

é do seu interesse, mas, bem ao contrário, é do interesse daqueles que querem

desestabilizar o país…” (citação de memória), ou sejam os EUA.

E é por razões deste tipo, que a Encíclica afirma que “…As falsas desculpas para

justificar a guerra, como razões humanitárias, defensivas e preventivas e o recurso

(sistemático) à manipulação da informação, designadamente através do uso do medo,

através da ameaça da existência de armas nucleares, químicas e biológicas…”, contra

os países não alinhados com o sistema mundial imperialista, que é importante

diabolizar (é muito interessante que Francisco utilize com alguma frequência este


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termo, para caracterizar situações de mentira e calúnia sistemática, tal como nós, num

quadro inequivocamente político), para justificar ulteriores intervenções militares.

A Encíclica também apresenta “…a guerra enquanto negação de todos os direitos…”.

E nesta vertente, é mais uma vez absolutamente obrigatório cotejar o pensamento do

Papa (espantosamente ou não, enquanto figura máxima de uma organização

historicamente conservadora, não democrática e mesmo com um longo passado de

crimes contra a Humanidade), com os modernos “ambientalistas” e quejandos.

Enquanto para estes a Guerra é tão simplesmente uma não existência, especialmente

a guerra e guerras diariamente desencadeadas, prosseguidas ou apoiadas pelo

imperialismo, para o Papa Francisco a “…A guerra deve ser (também) entendida

enquanto agressão violenta e dramática ao meio ambiente e aos bens culturais da

Humanidade…”.

Isto é, enquanto o Papa é completamente coerente na abordagem das questões

ambientais (e também climáticas), seja nesta, seja na anterior encíclica, para os

“ambientalistas”/”ecologistas”, só algumas agressões é que contam, e mesmo essas

nem sempre.

Outra não preocupação dos ambientalistas é a existência e proliferação de armas

nucleares e sobretudo de quem as detém.

Contrariamente, a Encíclica, entende que “…deveremos colocar como objetivo a

eliminação total das armas nucleares…”.

Por outro lado, refere também que a “…Violência a partir das estruturas e do poder do

Estado – violência de Estado e terrorismo de Estado – não está, de forma alguma, ao

nível da violência promovida por pessoas singulares e pelos grupos, mas sim a um nível

incomensuravelmente maior…”.

Finalmente, em termos de propostas, declara que “… o dinheiro utilizado em despesas

militares, deveria ser utilizado num fundo para acabar de vez com a fome e o

subdesenvolvimento…”, assim como, deverá ser colocada “…A exigência do respeito

pela Carta da Nações Unidas, enquanto veículo de suporta para a Paz…”, ou seja,

“exatamente” como procede o imperialismo.


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h) Sobre a questão das migrações nas condições da atualidade

Trata-se, como é conhecido, de uma das mais prementes e dolorosas questões da

atualidade, filha do subdesenvolvimento e das guerras imperialistas, nas circunstâncias

em que está a ter lugar o processo de globalização.

As posições apresentadas na Encíclica sobre este tema, são muito claras a este

respeito: desde logo no que respeita à críticas às causas que originam tão desumanos

e dolorosos processos migratórios, mas também, ao constatar a sua existência

objetiva, pelo menos conjunturalmente, à crítica às formas e conteúdos concretos do

acolhimento.

Desde logo, denunciando e atacando as causas do subdesenvolvimento, afirmando

que ”…as migrações deveriam ser desnecessários, através da criação de condições

locais de viver e crescer com dignidade nos países de origem…”, mas também, através

da existência, nos países de acolhimento, de “…Garantias e direitos para emigrantes e

refugiados…”.

Críticas também para a visão utilitarista no acolhimento de migrantes, pois que na

Encíclica se afirma que “…há países que só lhes interessa acolher cientistas e

investidores, e não trabalhadores comuns…”.


i) Sobre o desenvolvimento em C&T e a repartição da riqueza

A Encíclica alerta para as profundas contradições existentes entre o continuado e

impetuoso nível de desenvolvimento da C&T, com evidentes e inevitáveis reflexos ao

nível da produção de bens e de serviços, seja em termos do alargamento e

diversificação de valores de uso, seja em termos do crescimento das produtividades

alcançadas e de uma cada vez mais injusta repartição da riqueza entre trabalho e

capital, bem como das formas predadoras a que está a ter lugar a exploração dos

recursos naturais.


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De facto, afirma que “…o papel insubstituível do desenvolvimento científico para o

progresso e o desenvolvimento, assim como o aproveitamento socialmente inteligente

dos recursos…”, ou “… Como seria bom se , ao aumento das inovações científicas e

técnicas, correspondesse também uma equidade e uma inclusão social cada vez

maior…”.

IV.2 – Algumas das propostas para uma nova política

Embora ocupando um muito menor espaço da Encíclica do que os temas integrando o

Diagnóstico, a nova política proposta por Francisco, conforma observámos no Capítulo

I, apresenta diversas propostas para melhorar, atenuar ou mesmo eliminar os graves

problemas inventariados, resultantes da globalização nas condições do imperialismo.


a) Por uma Política Nova

É muito clara na Encíclica a tese fundamental sobre a necessidade da luta dos povos

contra as causas estruturais da exploração, por uma política nova.

Assim é, porque “…A comunidade mundial necessita de uma política colocada ao

serviço do bem comum…”, dado que “…A dignidade humana deve estar no centro de

tudo e é sobre tal pilar que deve ser construída a sociedade alternativa de que

precisamos…”.

Estes são alguns dos princípios avocados pelo Papa Francisco para suportarem uma

nova política, que substitua aquela que é atualmente dominante no Mundo, e que os

poderosos, de acordo com a sua linguagem, desejam que seja eterna.

Ou ainda, por outras palavras, a importante assunção de que “…A sociedade mundial

tem grandes carências estruturais, que não se resolvem com remendos, e que exigem

transformações profundas que integrem um novo projeto político, social, cultural e

que vise o bem comum…”, isto é, de alguma maneira, o interesse de todas as classes e

camadas não monopolistas e anti-monopolistas.

Isto é, estamos perante proposta de cariz estratégico, não de “remendos” com afirma

Francisco, propostas que exigem uma Política Nova, suporte de uma Sociedade Nova.


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Ou, invertendo a abordagem dominante, afirma que “…é urgente encontrar soluções

que eliminem tudo o que atente contra os direitos humanos fundamentais…”.

A Encíclica, afirma também que “…é preciso lutar permanentemente contra as causas

estruturais da pobreza, da desigualdade, da falta de trabalho, de terra, de casa e a

negação dos direitos laborais e sociais…”.

E a Encíclica também nos propõe um “…Desenvolvimento humano integral, que mude

as políticas sociais para os pobres, mas nunca com os pobres e ainda menos dos

pobres, e muito menos inserida num projeto que recusa os pobres…”.

Objetivos políticos que seguramente assustam os “muito católicos” políticos da política

de direita, pois que, tendo em atenção sobretudo as suas “praxis”, muito mais do que

o seu discurso, estas situam-se nos antípodas do que, a este propósito, é proposto

pelo Papa.

E isto, porque “…o desenvolvimento deve assegurar os direitos humanos, económicos

e políticos das nações e dos povos e não a acumulação só para alguns…”.

Num outro plano, complementar destes, e no entendimento de que “…A questão

central é o trabalho e a sua dignidade, enquanto dimensão essencial da vida social…”,

Francisco, embora com outras formulações, retoma e atualiza, alguns dos princípios

básicos do socialismo e do comunismo, designadamente no que respeita “…à

necessidade de organizar a sociedade por forma assegurar, que cada pessoa (enquanto

trabalhador) contribua com o seu esforço e as suas capacidades para a satisfação das

necessidades de todos…”.

E ainda refere, que “…É necessário uma nova organização mundial mais eficiente, com

vista a ajudar e resolver os problemas dos pobres e abandonados dos países pobres…”.

Também é importante recordar a tese de que “…É necessária uma economia que

favoreça a diversificação produtiva (em oposição aos regimes de monocultura) e a

criatividade empresarial, ampliando e não reduzindo os postos de trabalho…”.

E a Encíclica também critica muitos políticos, porque estes “…Em busca do interesse

imediato – a obtenção de votos – esquecem a promoção do desenvolvimento

estruturado e sustentável…”.


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b) Das pequenas às grandes lutas, todas são importantes

A Encíclica aborda de forma muito correta e justa a questão da necessidade objetiva e

subjetiva da luta e da sua completa justeza face às situações de exploração e opressão

da esmagadora maioria das populações e dos trabalhadores, seja no plano das nações,

seja no plano mundial.

A justeza e necessidade da luta é entendida pelo Papa sempre que “… se por vezes, os

mais pobres e descartados reagem violentamente, é porque tais reações decorrem de

uma história (por vezes muito longa história) de desprezo e de ausência de inclusão

social…”.

Mas vai ainda mais longe, ao afirmar que “…Perante a historicamente compreensível

conflitualidade social, perante conflitos de interesses entre os diferentes grupos

sociais, os cristãos devem tomar partido (em favor dos mais fracos e desprotegidos),

pois que quem sofre injustiças tem de defender energicamente os seus direitos

perante os poderosos…”.

Esta última transcrição da Encíclica, que se insere num ponto designado “As lutas

legítimas”, encerra importantes conclusões de ordem política, a saber:

- A de que as sociedades estão divididas em classes

- A de que os interesses dessas classes, são conflituais entre si, e por vezes mesmo

antagónicos

- A de que a luta de classes existe, e é, portanto, uma realidade do passado, do

presente, e ainda será durante muitos anos no futuro

- Que a luta de classes, mesmo em circunstâncias de violência, é absolutamente

legítima por parte dos grupos sociais oprimidos e explorados

- De que os cristãos devem tomar partido pelos oprimidos nessas lutas

E isto também tem a ver com a afirmação de que “…não há quaisquer contradições

entre crentes e agnósticos, relativamente a vários princípios éticos fundamentais.


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E é também por este conjunto de razões que o Papa Francisco entende que “…Há que

tirar o poder a quem o não sabe usar, isto é, a um opressor…”.


E Francisco também afirma na Encíclica, relativamente aos conflitos de interesses

entre os diferentes grupos sociais, quanto “…importante é o coletivo e a luta coletiva,

em contrapartida com as posições egoístas e individualistas…”, que, como bem

sabemos a nada conduzem.

Por outro lado, também refere um outro ensinamento, sobre o plano tático das lutas,

ao afirmar que “…das pequenas às grandes lutas todas são importantes…”, e que é

possível e desejável “…começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais concreto e

local, até ao último caso da Pátria e do Mundo…”.

Como é fácil de entender trata-se de uma perspetiva de grande importância

estratégica e mesmo histórica, a da unidade orgânica e da confluência entre as

pequenas e as grandes lutas, entre o local, o regional, o nacional e o internacional, que

muita gente de esquerda, muitas das vezes não entende a forte ligação orgânica entre

os diferentes níveis, subvalorizando artificialmente umas lutas e sobrevalorizando

outras, separando portanto aqui que é uno.


c) Sobre a questão da propriedade privada

O Papa Francisco tem enorme consciência de que, em muitas circunstâncias, a

propriedade privada constitui um forte obstáculo ao desenvolvimento e à justiça

social.

O caso da habitação é paradigmático.

Tal consciência do Papa, é desde logo traduzida na proposta de que “…Há que

repensar a função social da propriedade (privada)…”, pois que “…o direito à

propriedade é um direito natural secundário, e, como tal, a ele se devem sobrepor os

direitos prioritários e primordiais…”.

Ou, de outra forma, “… o direito à propriedade não é absoluto nem intocável…”.


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Ou, ainda um outro enfoque, afirma que “…Se alguém não tem o necessário para viver

com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido…”, assim

como “…Os pobres são pobres porque alguém lhes tirou o que lhes pertence…”.

Esta visão, naturalmente lógica, justa e de progresso, arrasta-nos e é um dos suportes

da intervenção alargada do Estado na economia e na sociedade, intervenção

absolutamente necessária em defesa dos legítimos interesses da grande maioria das

populações, ou seja, de todas as classes e camadas não monopolistas e anti-

monopolistas.

De novo, e sem irmos à esfera económica, regressemos à questão da habitação.

De facto, aqui, estamos perante, efetivamente, um direito constrangido por parte do

proprietário da habitação.

E também assim será com muitas atividades produtoras de bens e serviços assumindo

um caráter estratégico, e que, embora de forma não explícita, e de acordo com

Francisco, não devem ser propriedade privada, mas sim, com toda a lógica,

propriedade dos Estados.

Mas a Encíclica ainda reforça a importância da função social da propriedade, quando

afirma que “…mais importante que o direito à propriedade privada, sempre existiu o

princípio antecedente de subordinação de toda a propriedade privada ao destino

universal dos bens da Terra, isto é, ao direito de todos ao seu uso…”.

É evidente, que se entra claramente aqui sobretudo no domínio dos recursos

geológicos, mas também de alguns recursos vivos (uns e outros os bens da Terra), que,

desde logo, devem ser considerados bens do Estado, conforme o caso português, em

que o enquadramento constitucional os caracteriza enquanto bens do domínio público

do Estado.

Ou, de acordo com a Encíclica, e numa perspetiva social e politicamente muito

avançada, mesmo com alguns laivos de socialismo, a direção de “…Pensar e agir

permanentemente em termos do interesse da comunidade, e não em vez da

apropriação dos bens somente por parte de alguns…”.


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d) Sobre o papel do Estado

A Encíclica não passa ao lado, como já anteriormente e de forma recorrente

assinalámos, do importante papel do Estado no desenvolvimento e na soberania, pois

que é inequivocamente afirmado pelo Papa “…o insubstituível papel do Estado na

defesa dos mais fracos…”.

E com enorme atualidade é referido das “…lições a retirar da pandemia do COVD-19 e

o desmantelamento dos sistemas de saúde públicos…”.

Afinal, não é somente o PCP que denúncia a destruição do SNS em Portugal, no quadro

de uma orientação e prática política geral do neoliberalismo em quase todo o Mundo.


CAE/Fernando Sequeira – 1 de Novembro de 2021.

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