A propósito do declínio dos EUA
Jorge Cadima
Nos EUA avoluma-se uma crise profunda, cujos efeitos se estendem a todos os campos -
económico, financeiro, social, político, militar, sanitário e mesmo demográfico. As suas raízes
residem na crise sistémica do capitalismo, mas também no declínio relativo dos EUA face a
outras potências, na insustentabilidade da sua situação financeira e na brutalidade da sua
dominação de classe.
Os mecanismos com que a classe dirigente norte-americana tem procurado enfrentar o seu
declínio não apenas não o inverteram, como contribuíram para acentuar esse declínio. Trump
expressa essa crise. ‘Tornar de novo grande a América’ é uma ilusão que não reflecte a
realidade mundial em mudança. Mas o perigo de que tudo termine numa aventura catastrófica
é enorme.
Um país em crise
Os EUA são um caldeirão em ebulição. A ofensiva de classe das últimas décadas traduziu-se
numa baixa acentuada dos níveis de vida de grande parte da população trabalhadora. Tornou-
se frequente que, mesmo trabalhadores com duplo emprego, mal consigam sobreviver (1).
A
desindustrialização de vastas regiões gerou fenómenos de pobreza em massa. Em 2018, o
Relator Especial Philip Alston apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU um
relatório sobre pobreza extrema nos EUA, afirmando: «Os Estados Unidos [...] são uma das
sociedades mais ricas [...]. Mas a sua imensa riqueza e conhecimentos estão em flagrante
contraste com as condições em que vive grande número dos seus cidadãos. Cerca de 40
milhões vivem na pobreza, 18,5 milhões em pobreza extrema e 5,3 milhões em condições de
pobreza absoluta, do tipo Terceiro Mundo» (2). Mais de meio milhão de norte-americanos
vivem nas ruas ou em tendas e barracas (3). Cidades inteiras declaram falência, não sendo
único o caso de Detroit (2013). Os EUA continuam a ser o único país desenvolvido em que não
existe licença de parto garantida por lei (4). Nos últimos meses, assiste-se a um ressurgimento
de importantes lutas laborais, que traduzem um descontentamento generalizado.
A brutalidade da situação social e o domínio dos interesses do grande capital são inseparáveis
da diminuição verificada na esperança de vida (76,1 anos para os homens), associada a um
aumento importante na taxa de mortalidade dos grupos etários em idade laboral (25-34 anos,
+2,9% entre 2016 e 2017; e 35-44 anos, +1,6%) (5). Este aumento reflecte o surto de mortes
por consumo de drogas que, segundo a agência governamental CDC, atinge hoje mais de 70
mil pessoas por ano (mais 9,6% entre 2016 e 2017) (6). Grande parte dessas mortes resulta
da chamada crise dos opióides, os analgésicos à base de ópio cuja utilização por receita
médica (legal) se generalizou nas últimas duas décadas, com efeitos devastadores,
provocando hoje 130 mortes por dia. Segundo a revista New Yorker (23.10.17), a agência
governamental Food and Drug Administration (FDA) aprovou, em 1995, o uso do mais
conhecido desses opióides, o OxyContin, apesar de a empresa produtora, Purdue, não ter
efectuado estudos clínicos relativos aos perigos de gerar dependência, tendo mesmo a FDA,
«num passo inusual, [...] anunciado que era mais seguro do que os analgésicos concorrentes».
O responsável pelo estudo «deixou a agência [FDA] pouco tempo depois. Passados dois anos
trabalhava para a Purdue». Como sintetiza o New Yorker, foram «gerados milhares de milhões
de lucros – e milhões de viciados». O capitalismo ganha dinheiro até a anestesiar o
descontentamento social.
Este quadro dramático é inseparável da mercantilização extrema em todas as esferas de vida.
Não existe um sistema nacional de saúde, e «Os Estados Unidos têm despesas de saúde duas
vezes maiores que outros países, com resultados piores» (Reuters, 13.3.18). A conclusão é de
um estudo chefiado por uma investigadora da London School of Economics que compara os
EUA com dez outros países desenvolvidos. Conclui que apesar das despesas de saúde
representarem 17,8% do PIB nos EUA, e não mais de 12,4% nos outros países, «a esperança
de vida dos EUA é a mais baixa» e «a taxa de mortalidade infantil é a mais elevada, com 5,8
óbitos por cada mil nados-vivos, sendo em média de 3,6 para os restantes países». Os custos
do ensino superior amarram a maioria dos estudantes a dívidas enormes, ainda antes de
iniciarem a sua vida laboral. O montante global da dívida estudantil nos EUA ultrapassa hoje
uns impressionantes 1,5 biliões (1,5x10) de dólares (Guardian, 4.10.18), cerca de 7 vezes o
PIB anual de Portugal.
Se a situação dos trabalhadores e do povo dos EUA é dramática, os seus multimilionários
acumulam riquezas sem precedentes. O 1% de famílias com maiores rendimentos possuíam,
em 2016, 38,6% da riqueza do país, muito mais do que os 90% com menores rendimentos
(22,8%). Apenas dez anos antes estas percentagens eram, respectivamente, 33,7% e 28,5%
(CNN, 3.11.17). Ou seja, a crise que eclodiu em 2007-8 saldou-se por uma concentração ainda
maior da riqueza nas mãos dos mais ricos. Segundo o Pew Research Center, desde então, a
riqueza mediana dos norte-americanos com menos posses «reduziu-se para quase metade»
(!), enquanto que a riqueza mediana dos de maiores posses aumentou 25% (7).
É impossível ignorar a brutal natureza de classe da ‘democracia made in USA’.
O endividamento
A riqueza ostentada pelos EUA é em boa medida fictícia, assente numa montanha de dívida
sempre pronta a ruir e que evoluções macro-económicas positivas, mas conjunturais, não
podem fazer esquecer. A situação financeira do Estado norte-americano é insustentável. A
dívida nacional (que apenas diz respeito ao governo central) atingiu o astronómico valor de 22
biliões (22x1012) de dólares, ultrapassando 100% do PIB. Há apenas 20 anos era um quarto
desse valor. Mais do que duplicou na década após 2008. Vai continuar a explodir, já que o
deficit orçamental para 2020 ultrapassa 1,1 biliões de dólares. Mas o endividamento recorde
não é apenas estatal. O endividamento das famílias atingiu 13,3 biliões de dólares, mais do que
em 2008 (Reuters, 14.8.18). A dívida das empresas ultrapassa os 6,3 biliões de dólares
(CNBC, 27.6.18), também um valor recorde. A relação entre dívida e liquidez das empresas é
maior agora do que na crise de 2008 (CNBC, 12.9.18). Desde há uma década que o país vive
com medidas de excepção. Mas o endividamento de que tanto se falou como responsável pela
explosão da crise em 2007-8 ainda se agravou mais. O que não surpreende, já que o
endividamento generalizado é a fonte de lucros do sistema financeiro que comanda o
capitalismo.
O grande capital aponta o dedo às despesas sociais como causa do endividamento. As
verdadeiras razões são outras. Incluem a evasão fiscal das grandes empresas; a pilhagem do
Estado para gerar lucros privados; as reduções de impostos (para a JP Morgan, o corte de
impostos de Trump traduziu-se num aumento de lucros de 3,7 mil milhões de dólares –
BusinessInsider, 4.4.19). A deslocalização da produção para outros países nas décadas
anteriores, se por um lado serviu para assegurar ganhos às grandes multinacionais e alterar a
correlação de forças de classe (colocando a classe operária na defensiva, facilitando a
ofensiva anti-social), por outro lado é também um factor importante de endividamento estatal,
afectando a base de tributação fiscal.
Mas é o papel de gendarme mundial do capitalismo que assume particular importância no
endividamento dos EUA. Se por um lado as guerras trazem inegáveis vantagens económicas
às grandes empresas, assegurando o controlo de mercados, contratos e matérias-primas (entre
as quais o petróleo) em larga parte do globo, por outro lado representam um pesadíssimo fardo
financeiro para o Estado norte-americano. Sendo os lucros gerados pelas despesas militares
nos EUA essencialmente privados, as despesas militares são públicas.
A tendência histórica
Os EUA emergem da II Guerra Mundial como a super-potência capitalista mundial. A sua
preponderância económica, militar e política era inquestionável no seio do mundo capitalista. O
pavor da revolução social e o desafio histórico representado pela construção do socialismo na
URSS e em países onde vivia um terço da Humanidade, bem como pelo avanço dos processos
de libertação nacional, levava as classes dominantes dos restantes países capitalistas a aceitar
a hegemonia dos EUA e a limitação da sua própria soberania. Apesar de contradições que
nunca deixaram de se manifestar (veja-se o caso da França), foi este o quadro que predominou
até à vitória das contra-revoluções no Leste da Europa, no final do Século XX.
Entretanto, por debaixo da superfície, amadureciam processos de alteração da correlação de
forças no plano económico. As duas grandes potências derrotadas na II Guerra Mundial,
Alemanha e Japão, protagonizaram no pós-guerra um crescimento económico assinalável,
beneficiando em parte de estarem impedidas de ter despesas militares de vulto. Como referia a
Resolução Política do XV Congresso do PCP (1996), «o papel dominante dos EUA à escala
mundial continua em diminuição no plano económico, o que leva a principal potência
imperialista a socorrer-se cada vez mais do seu poderio extra-económico (diplomático, militar,
ideológico, etc.) para tentar manter e impor a sua hegemonia. A luta por ‘zonas de influência’
entre as várias potências imperialistas acentua-se, assim como a luta pela tomada de posições
no interior dos países imperialistas rivais». Nas décadas mais recentes, novas potências
alcançaram um crescimento económico impetuoso, com destaque para a China que é já hoje
uma grande potência económica mundial e cujo desenvolvimento é também qualitativo, sendo
cada vez mais uma potência tecnológica (8).
Hoje, assiste-se à discussão aberta no seio dos círculos dirigentes do grande capital das velhas
potências imperialistas, sobre a forma de ‘fazer frente’ à China e outras potências ascendentes.
A real correlação de forças económica não pode ser ignorada por muito tempo, sem que se
manifestem os seus efeitos políticos. O papel do dólar como moeda de reserva internacional
está hoje em causa. Há quase duas décadas, o General Loureiro dos Santos dava voz à ideia
de que, para travar essa ascensão, os Estados Unidos iriam recorrer a uma guerra mundial
(Diário de Notícias, 13.3.00). Para os EUA em particular, confrontados com o seu declínio
relativo, quer em relação às potências imperialistas europeias, quer à China e outra potências
(re-)emergentes, o que está em causa é de importância histórica. Tanto mais quanto as
fragilidades do Estado norte-americano e o descontentamento que grassa no seio do povo
norte-americano assumem proporções explosivas. Trump protagoniza uma opção pela
dominação inquestionável dos EUA em todos os planos. A sua agressividade, mesmo em
relação a tradicionais aliados, é expressão da gravidade da situação.
Rivalidade e cooperação
A estratégia de Trump, patente na sua retórica de ‘tornar a América de novo grande’ e nos seus
ataques a aliados, não é inteiramente nova. Já o governo de Bush (filho) tentou impor a
vontade exclusiva dos EUA. Os conflitos com a França de Chirac e Villepin, e a Alemanha de
Schröder, aquando da invasão do Iraque em 2003, eram uma (então ainda rara) expressão
pública de rivalidades e contradições entre os dois maiores pólos do capitalismo mundial. A
humilhação dos EUA às mãos da resistência iraquiana e os receios mútuos de que as
clivagens entre EUA e UE pudessem alimentar a resistência popular a nível mundial, mesmo
no seio das grandes potências capitalistas, conduziram a uma recomposição. O quadro político
para o acordo foi protagonizado primeiro pela nomeação de Durão Barroso (defensor da guerra
do Iraque) como Presidente da Comissão Europeia e a ascensão de Angela Merkel e Sarkozy
e, mais tarde, pela eleição de Obama nos EUA. A nova fase de concertação – que nunca
deixou de ser hegemonizada pelos EUA e nunca apagou as contradições e rivalidades – não
representou nada de benéfico para os povos, como ficou patente na ofensiva anti-social no seio
da UE; na política partilhada de guerra a nível mundial (Líbia, Síria, Ucrânia); na reafirmação
da UE como pilar europeu da NATO; no alinhamento incondicional da UE com a histeria anti-
russa, mesmo quando as sanções contra esse país afectam sobretudo os produtores europeus.
Mas a situação dos EUA não parou de se agravar. Com a eleição de Trump ganham de novo
preponderância os defensores duma hegemonia arrogante e inquestionável. O rasgar do TTIP
e outros acordos (como sobre o clima e o Irão); as diatribes públicas contra o canadiano
Trudeau ou a Alemanha, a propósito do gasoduto NordStream2; os ralhetes para que sejam
aumentadas as despesas com a NATO; as multas a grandes empresas europeias e o recente
anúncio de tarifas alfandegárias sobre bens no valor de 11 mil milhões de dólares – tudo faz
parte duma estratégia de imposição da hegemonia incondicional dos EUA e das suas
empresas (incluindo militares), ao mesmo tempo que tenta obrigar os ‘aliados’ a pagar os
custos dessa hegemonia. É também uma política que procura ‘disciplinar as hostes’ e cerrar
fileiras por detrás do ‘chefe’, na preparação de um embate multi-facetado com os países que a
doutrina militar dos EUA já definiu como o ‘maior desafio’: a China e a Rússia. Assiste-se a
uma nova corrida aos armamentos; ao aumento dos orçamentos militares; a um crescendo das
provocações e do cerco à Rússia; ao rasgar do Tratado INF, relativo às forças nucleares de
alcance intermédio; ao confrontacionismo crescente com a China, seja no plano económico ou
militar; à corrida à militarização do espaço. A virulência da nova ofensiva contra os processos
soberanos na América Latina, bem como o apoio incondicional ao criminoso sionismo israelita,
encorajam a barbárie e o culto da força, alimentando o anti-comunismo e o fascismo no plano
mundial, o que também aduba o belicismo.
Embora com conflitos profundos, de contornos ainda não inteiramente claros, na classe
dirigente dos EUA predomina a recusa em aceitar o seu declínio, e a crença de que os
poderosos recursos ainda disponíveis podem preservar a hegemonia planetária. Entre esses
recursos conta-se a estrutura militar e o domínio quase ditatorial sobre os grandes meios de
comunicação social mundiais, cada vez mais meras armas da propaganda de guerra (veja-se o
caso da Venezuela). Conta-se também a extensa rede de autênticos agentes dos EUA no seio
de numerosos países (incluindo da UE), sempre prontos a trocar a prestação de serviços e
mesmo a traição aos seus países por futuras benesses, à la Durão Barroso.
Mas o extremismo do governo Trump também comporta grandes riscos para a super-potência
capitalista. A imprevisibilidade dos EUA e a sua indisponibilidade para o compromisso podem
pôr em perigo alianças de muitas décadas com países de importância regional (como a
Turquia, o Paquistão, e mesmo países do Golfo) e com as potências imperialistas europeias e,
por essa via, poderão enfraquecer ainda mais os EUA.
Os perigos e as potencialidades
Em largos sectores populares ainda não existe uma consciência da real gravidade da situação.
Existe o perigo de que grandes massas sejam conduzidas para becos sem saída, quer
arrastadas pela propaganda de guerra fascizante, quer correndo atrás de ilusões, como os
mitos de uma UE ‘de paz’. A História ensina que as grandes guerras modernas têm as suas
raízes no sistema capitalista e de dominação de classe, nas suas crises e rivalidades. Para os
povos, é imperioso lutar para travar a corrida para o abismo. Apontando sempre as
responsabilidade de quem defende e promove a guerra. Lutando sempre em defesa da Paz. Só
assim se fortalece a resistência que conduzirá à alternativa.
Notas
(1) Veja-se o livro Salário de Pobreza. Como (não) sobreviver na América, de Barbara
Ehrenreich, Editorial Caminho, 2004.
(2) O relatório tem o código A/HRC/38/33Add.1. Veja-se ainda
www.census.gov/library/publications/2018/demo/p60-263.html, para um resumo dos números
oficiais.
(3) No Relatório Anual sobre os Sem Abrigo, do Departamento governamental para a
Habitação e Desenvolvimento Urbano (Housing and Urban Development), relativo a 2018, o
número de sem-abrigo ultrapassa 550 mil (Comunicado à imprensa HUD No. 18-147,
disponível no site www.hud.gov). No auge da crise de 2008, esse número ultrapassou as 640
mil pessoas.
(4) Veja-se www.pewresearch.org/ft_16-09-19_parental_leave, ou os números da OCDE em
http://www.oecd.org/els/soc/PF2_1_Parental_leave_systems.pdf.
(5) National Center for Health Statistics (NCHS) da governamental Center for Disease Controls
and Prevention (cdc.gov), no estudo Mortality in the United States, 2017 (Data Brief No. 328,
Novembro 2018).
(6) NCHS Data Brief No. 329, Novembro 2018. Os Estados com maior incidência de overdoses
são West Virgínia, Ohio e Pensilvânia, os dois últimos fortemente afectados pela
desindustrialização das últimas décadas.
(7) pewresearch.org, 1.11.17.
(8) Em termos de PIB total em Paridade de Poder de Compra (PPP), a China é já a maior
economia mundial, tendo ultrapassado os EUA e também o conjunto da União Europeia (com o
Reino Unido). Em termos de PIB nominal, é ainda o segundo maior país.
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