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18 de maio de 2018

De coche

De coche nos caminhos do interior
Jorge cordeiro


O designado “Movimento pelo Interior” fará luz hoje das suas propostas com as devidas formalidades em consonância com o trombetear antecedente. Por escassez de confiança no que dali resultará confesse-se o sobressalto que nos assolou (infundado como se verá) face ao rumor que a coisa se extinguia com a apresentação das conclusões. Conhecendo o passado de alguns dos autores, não poucos de lastro governativo com os resultados que o País  patenteia, a ideia de “extinção” faria prever o pior. Aliviado se ficou pela percepção mais fina dos objectivos em presença – não o propósito de extinguirem o interior (hipótese consentânea com os currículos em presença), mas sim o da auto-extinção do “movimento”. De mal o menos, salva-se parte importante do País e não se perde grande coisa.


Identificadas em circum-navegação breve, mas não dispensável, a origem das águas de onde brota em concreto o que ao País é proposto pelos promotores, adiantemos, com a síntese exigível, alguns elementos de reflexão. Com uma antecipada prevenção: os problemas associados à “interioridade”, os factores de despovoamento e desertificação que a acompanha, e as respostas para os enfrentar, abrem campo a uma vastidão de medidas tal que só por total desacerto de passo se não identificarão, como razoáveis, algumas das propostas pré-divulgadas. O que não significa que se iludam dois elementos: as razões mais profundas que estão na origem dos problemas e a vontade política de os solucionar. Olhando para alguns que agora se lamuriam, embalados por tempos julgados propícios pelas razões dramáticas que se conhecem, não se lhes deve conceder crédito fácil. Quem contribuiu para conduzir o “interior” do País à situação que agora lamentam, dificilmente o resgatará. Pode dizer-se que este “pé-atrás”, esta teimosia de não ir na onda, são atitudes de mau tom. Admita-se que assim é, embora se tal atitude tivesse sido posta ao leme de uma observação mais exigente ter-se-iam evitado imparidades e naufrágios que por aí se têm visto. Se há verdade naquele dizer de que o ”hábito faz o monge” então, - olhando para ex-ministros como Cadilhe e Peneda ou Jorge Coelho - se pressuporá não vir dali grande ceifa.


Vencidos que estão os “entretanto” alcancemos os “finalmente”, por via de breves anotações. A primeira, para rejeitar o discurso tentador e simplista de apresentar o litoral como inimigo do interior, de buscar solução para os problemas de cada um em prejuízo do outro. A litoralização do território e o despovoamento do interior padecem de males com origem nas mesmas dinâmicas sócio-económicas que atingem o desenvolvimento do território no seu todo. Sem dúvida com sintomas distintos e opostos: superpovoamento, sobrecarga de sistemas urbanos, exclusão social num, desertificação e abandono de territórios noutro. Mas com exigência de terapêutica comum assente numa estratégia de desenvolvimento  inverso da que tem produzido e acentuado assimetrias territoriais, e que não encontra chão firme em teorias neoliberais como as da “competitividade territorial”. Segunda anotação. Olhar para o problema na dimensão que assume exige pisar terrenos de políticas estruturais capazes de contrariar a tendência para o desenvolvimento desigual inerente ao sistema sócio-económico dominante. A questão está nas políticas nacionais a adoptar no plano agrícola, industrial e de investimento público, compatibilizando-as com adequadas políticas de desenvolvimento regional, nas opções do uso da terra quer no plano da agricultura, da floresta e da pecuária, quer no da sua reflexiva conexão com o mundo rural e a fixação de populações. Ouvir balir pelo interior os que com as privatizações conduziram ao abandono de serviços que essas empresas aì prestavam na energia, nas comunicações, no serviço postal ou na banca pública; ouvir responsáveis pelo fecho de centenas de serviços desconcentrados da administração central defender agora o inverso do que promoveram – simplesmente não pode ser levado a sério. Terceira anotação. À situação do interior não são alheios sistemas regionais débeis incapazes, no quadro actual, de constituírem incentivo ao investimento, à instalação de empresas e à criação de emprego. Na ausência de um poder intermédio, que a regionalização preencheria, o que se assiste é que os factores “poder local” (circunscrito ao nível municipal), “território” (enquanto estrutura de suporte de recursos e contexto sócio-económicos) na sua relação com o “desenvolvimento” não ultrapassam a escala local.


Sem desprimor pelo evento, a solenidade que o envolve e as expectativas que transporta haverá quem, por incurável exercício dubitativo, não se resigna a ir no rodado das aparências, questione o local para dar conta das agruras do interior: o Museu dos Coches em Lisboa. Uma minudência face ao que de substancial já aqui teve observação e reparo. Até porque uma mostra de coches dá um certo ar de ruralidade adequada ao evento. É verdade que o coche não é carroça, junta de bois ou tipoia. Mas, em contrapartida, dá aquele ar de aristocracia condizente com o naipe promotor.

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