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13 de maio de 2018

Pecado Original



Cristas e o “pecado original”
Jorge Codeiro

A questão da habitação está na ordem do dia. Não tanto insuflada pelo anúncio das propostas do Governo mas, sim, pela expressão dessa dramática realidade revelada pelo despejo de milhares de famílias, de lojas de comércio tradicional e até de colectividades das zonas onde, em muitos casos, estavam há décadas. 

Há quem se surpreenda com o que, irremediavelmente, a precarização do direito à habitação, consagrado na Lei das Rendas de Cristas, conduziria. Haverá quem se apresse a alegar que o problema da habitação está para lá do regime de rendas. Não alegará em vão. Uma resposta séria  exige a assumpção plena do Estado na promoção directa de habitação e uma lei de solos que priorize a dimensão pública do direito de urbanizar. Mas é inseparável, nas condições concretas da sociedade actual, da garantia de um regime de arrendamento estável. A desregulação do arrendamento da “Lei dos Despejos” de Cristas, aliada à pressão turística, à procura residencial de detentores de elevados rendimentos e sujeitos de benefícios fiscais, conduziram ao brutal aumento das rendas arrastando milhares de famílias para a rua. Despejos e Cristas são duas faces dessa mesma moeda que impiedosamente nega o direito a um tecto. Por mais que a ex-ministra se pinte, por mais que deite mão às cores que disfarcem a negritude do quadro que elaborou, a verdade é que, sem prejuízo de outras medidas, a revogação da Lei das Rendas constitui objectivo essencial. Neste lavar e pôr a corar de responsabilidades passadas em que a líder do CDS revela dotes aprimorados, observe-se o que, ainda há poucos dias, nestas páginas afirmou. Vale a pena reter. Percorrido um extenso lamuriar prenhe de frustração por o “balcão dos despejos” «só ter conseguido promover em dois anos o despejo de 3.700 famílias», confessado o objectivo de «assegurar um mercado liberalizado», inconformada com o «insucesso» da legislação de 2006 por esta só ter imposto escassos milhares de actualizações de renda, Cristas reservou-nos uma daquelas revelações só ao alcance dos mais dotados. Segure-se o leitor, particularmente se estiver entre os que olhando para o óbvio entenda não o negar mais que não seja por pudor, para o impacto: para Cristas o problema não está na Lei mas sim na postura de «senhorios mal formados» acrescentando que «deve ser feito um levantamento das pessoas enganadas que serão desalojadas.» Fica por esclarecer o objectivo de tal levantamento. Supondo que se destine a ir bater à porta de quem os enganou, advinham-se já as filas imensas que se formarão no Largo do Caldas. 

Só nos insondáveis meandros teológicos do “pecado original” se encontrará resposta cabal para o teor da entrevista. Não se soubesse que a  materialidade das opções de Cristas (apoio à especulação imobiliária e protecção dos grandes proprietários) é o determinante e perder-nos-íamos nessa busca idealizante em busca da origem da imperfeição humana e dessa inclinação para o mal e o pecado. Não nos percamos nesses trilhos. Nem se está perante o chamamento da serpente para a tentação da maçã nem da expulsão do Jardim de Eden de um qualquer Adão ou Eva. Aliás, como se vê, porque é em térreos pisos que nos firmamos, se há alguém que acabe expulso é a população. 

Indo o texto longo, ainda que pouco alongado na abrangência desejada, não percorreremos caminhos mais densos que fundam o problema da habitação na sua relação com a propriedade e a renda fundiária. Ainda assim convoquem-se as palavras de Engels para, relativizadas as expressões de há século e meio, revelar os elementos determinantes que estão associados à questão da habitação: «a expansão das grandes cidades modernas dá um valor artificial, colossalmente aumentado, ao solo em certas áreas, em particular nas de localização central; (…) O resultado é que os operários vão sendo empurrados do centro das cidades para os arredores, que as habitações operárias e as habitações pequenas em geral se vão tornando raras e caras e muitas vezes é mesmo impossível encontrá-las, pois nestas condições a indústria da construção, à qual as habitações mais caras oferecem um campo de especulação muito melhor, só excepcionalmente construirá habitações operárias». Atendidas distintas realidades e estratégias dos promotores, incluindo as que resultam da exploração intensiva das políticas de crédito, é essa mesma natureza de classe no uso do solo e nas opções de distribuição territorial da habitação que hoje vemos.

Ainda assim haverá um campo não desprezível para políticas que respondam a problemas prementes. Não por via da insistência em transferir responsabilidades do Estado para as  autarquias como confessa a Secretária de Estado: «a nossa velocidade será a das autarquias» Mas sim, com produção pública, apoio ao cooperativismo, reabilitação conduzida a partir do interesse público e não da especulação, um regime de arrendamento que assegure a estabilidade dos inquilinos. Medidas avulsas, mesmo que pontuadas de elementos positivos, assentes no ”livre mercado” só acumularão os factores que negam o direito constitucional à habitação. 


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