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2 de janeiro de 2018

dilemas


Os dilemas da luta

Zillah Branco *

Escrever sobre as conquistas democráticas e revolucionárias de um processo de luta, nem sempre permite o reconhecimento das contradições e dos dilemas enfrentados pelos seus construtores. Tais contradições abrem caminhos que podem, ou não, serem opostos à meta fundamental que define o caminho na sua essência "revolucionária" ou "reformista".


O conhecimento aprofundado da realidade vivida pelo povo, desde as camadas mais pobres até as mais abonadas, detectando as variações intermédias que definem os estratos sociais pelas suas carências, ambições e propriedades dão, pelos registros da sua importância numérica e pelas funções sociais e econômicas que exercem, a magnitude das questões políticas que representam. Não basta, a quem analisa a população, classificar em termos gerais e tradicionais a dependência de uns, a capacidade de outros, a exploração da elite. Além da posição de cada estrato social dentro da escala de prestação de serviços, a remuneração pelo trabalhos, as propriedades adquiridas, assim como a escala do usofruto dos beneficios oferecidos pelo Estado e o acesso aos privilégios de classe dominante, que geram uma determinada consciência social, existe o peso cultural com que foram marcados os princípios morais e éticos pela história nacional e pela imposição de valores pela elite governante.


O livro clarificador da "História Agrária da Revolução Cubana" (Alameda Casa Editora, 2016), extraido da tese que Joana Salem Vasconcelos apresentou à Fapesp, indica, ainda na sua capa, "0s dilemas do socialismo na periferia". O leitor mergulha em um relato da história épica daquele povo que, liderado pelo grupo revolucionário que desceu a Sierra Maestra conduzido por Fidel Castro que derrotou a ditadura de Baptista apoiado pelos Estados Unidos, e transformou a pequena ilha caribenha explorada como colónia do grande império em uma nação socialista independente. Mas o relato não é apresentado como uma ficção de êxitos e vitórias sucessivas. Ao contrário, e aí está o seu maior valor, desvenda os dilemas enfrentados e debatidos árduamente pelos dirigentes revolucionários cubanos com o apoio de inúmeros intelectuais estrangeiros e nacionais que participavam de organismos internacionais como a Cepal, o Banco Mundial e universidades de vários países.

Diante do cerco imperialista, - que impôs o "bloqueio" econômico e político internacional por quase 60 anos para impedir o desenvolvimento de Cuba - a tarefa de superar o subdesenvolvimento de um país periférico e criar as bases para uma estrutura socialista que extinguiu os privilégios dos mais ricos e garantiu à toda a população o direito à habitação, à alimentação, à saúde, aos níveis fundamentais do ensino escolar, ao emprego, foi possível graças à solidariedade do bloco de nações socialistas e aos que ultrapassavam a fiscalização imperialista e conseguiam levar o seu apoio ao povo cubano. O resultado está à vista, um país sem analfabetismo e com índices de proteção à saúde mais elevados que em muitos países capitalistas considerados ricos, com um serviço médico que tem ajudado muitos outros povos a enfrentarem carências dos seus sistemas ou as catástrofes causadas pelo clima.

Os problemas enfrentados por Cuba para superar os seus problemas de subdesenvolvimento, de país periférico em relação ao centro capitalista que domina o mercado e detém o poder financeiro e o militar, tem muita semelhança com a de todas as nações latino-americanas, inclusive o Brasil apesar do seu tamanho e de ter vivido experiências democráticas que o destacaram no conjunto internacional representado no G20, no Brics, no Mercosul, na Unasul, na Celac, inspiraram a ONU na divulgação da Bolsa Família para o combate mundial à fome.

O que explica o retrocesso golpista que hoje é imposto pelo imperialismo no Brasil - através dos políticos e profissionais com elevados cargos públicos que assumiram a função subalterna de traidores da pátria e corruptos - foi a escolha de caminhos inseguros e dúbios nas alianças governamentais que não respeitaram os princípios éticos de um programa democrático e de independência nacional, que esteve na base das propostas de desenvolvimento social, econômico e político de todos os brasileiros. Foi dada atenção ao desenvolvimento material do país, ao seu

crescimento financeiro, ao seu prestígio no sistema capitalista global, mas não ao povo brasileiro que deve ocupar a função motora do desenvolvimento e de proteção do patrimônio nacional.

Foram muitas as iniciativas de professores universitários e de outros níveis escolares, assim como de profissionais de outras carreiras (advogados, médicos, enfermeiros, engenheiros, cineastas, músicos, e tantas outras áreas do conhecimento científico e artistico) de levarem às populações que vivem à margem da cidadania formas de apoio para os incluirem na sociedade e abrirem caminhos para o desenvolvimento daqueles brasileiros que estavam esquecidos nos programas políticos. Podemos dizer que houve participação efetiva dos autores de tais iniciativas, mas não houve tempo para que os brasileiros mais desprovidos de recursos chegassem a participar da democratização anunciada. Faltaram políticas complementares para criar uma estrutura que fiscalizasse e criasse os caminhos para transformar os que estavam excluidos em trabalhadores qualificados para desenvolver a indústria e a agricultura modernas. O golpe cortou este caminho emancipador, e antes dele, a ausência de uma reforma das instituições do Estado que abolisse o carater burguês dominante e o poder da burocracia, impeditivos da implantação da democracia de maneira plena.

A abertura ao poder financeiro internacional e ao agro-negócio, com a entrega de cargos e funções governamentais a funcionários de instituições estrangeiras, foi um dos principais fatores de anulação das políticas progressistas que os partidos e militantes de esquerda levavam à prática sem o apoio institucional. A aceitação governamental de um poder judiciário como poder paralelo e de uma mídia igualmente independente do programa nacional, foram contradições que impediram que os eleitos pelo povo pudessem efetivamente corresponder à confiança que lhes foi confiada por mais de 50 milhões de eleitores e de milhões de jovens adolescentes que refletiam a inovadora cultura democrática que o Brasil respirou a partir de 2003.

A consciência cidadã não se forma a partir de discursos ou da leitura de cartilhas. Ao contrário do pensamento preconceituoso dos conservadores, o trabalhador e sua família são inteligentes e estão atentos à comprovação das promessas com a acuidade de quem tem fome de um alimento bom para a sua alma. Não aceitam falsificações e deslealdades, não aceitam jogos políticos como os que são praticados nos encontros formais entre elites. Os que pensam poder manipular as grandes massas populares que se apresentam nas ruas para um convívio animado com bandeiras e músicas, devem prever que a atração da ação coletiva sobre as populações não se prende a um compromisso político mas sim uma integração social. Não se pode confundir "participação social" com "presença massiva". Basta ver que o carnaval e os grandes jogos de futebol são mais mobilizadores que os comícios.

A longa luta pela reforma agrária dirigida há mais de duas décadas pelo Movimento dos Sem Terra tem demonstrado a capacidade de formar consciências de cidadania levando-os a exercitar uma vida democrática que organiza várias formas de produção e escolas para superar o analfabetismo e desvendar a história do Brasil e da América Latina. O conhecimento tem início nas condições em que vivem (e sobrevivem às perseguições violentas) para depois abordarem os fatos da história nacional e regional passada que explicam porque enfrentam as condições de dificuldade existentes. Então podem compreender as histórias dos países vizinhos e dos povos irmãos, assim como o de outros continentes de civilizações mais antigas ou de países mais ricos. É um exemplo de formação a ser utilizado para outros setores ainda marginalizados no Brasil.

Ao pensarmos na construção de um programa político capaz de dar origem a uma proposta governamental de restauração da democracia nacional não podemos deixar de considerar tudo o que o Brasil produziu com características progressistas como eixo fundamental. E devemos rever os erros cometidos, como alertas para serem evitadas as portas abertas ao domínio imperial.

Bibliografia:

História Agrária da Revolução Cubana - Joana Salem Vasconcelos - Alameda Casa Editora,2016

Oficina das Fundações: Perseu Abramo, Maurício Grabois, Leonel Brizola-Alberto Pasqualini www.anitagaribaldi.com.br. /. www.grabois.org.br

3 comentários:

Francisco Apolónio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco Apolónio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco Apolónio disse...

Foi sempre e sempre será:
- A quem servem ou a quem interessam ou quem é que é mais beneficiado?