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10 de janeiro de 2020

Terrorismo


Agostinho Lopes
Terrorismo de Estado, mas terrorismo, a operação que assassinou o General iraniano Qassem Soleimani. Nada de novo na intervenção do imperialismo norte-americano. Multiplicam-se por centenas os exemplos de operações semelhantes. Toda a argumentação desenvolvida pelas autoridades dos EUA são poeira mediática para os olhos do mundo,divulgada e amplificada pelas agências noticiosas ao seu serviço. Pesem as sanções com os seus violentos  efeitos económicos, os incidentes agressivos e provocações em curso, os EUA não estavam em guerra nem tinham declarado guerra ao Irão!Terrorismo é o nome para a eliminação de um adversário/inimigo político assim perpetrada.
As leituras mediáticas do acto – uma efectiva declaração de guerra – são esclarecedoras. Em Portugal e noutras latitudes. E põem a nu, mais uma vez, a quem servem os órgãos da comunicação social dominante.      
Exemplar, como sempre nestas coisas, o jornal Público de sábado, 04JAN20, dedica-lhe 6 páginas e o Editorial da autoria do Director Manuel Carvalho. Em nenhum título se destaca o tipo de morte ou quem mandou matar Soleimani. «Irão – Morte de Soleimani, catástrofe para todos», na capa. O que se repete na 2ª página: «Morte de Soleimani: “Catastrófica para todos”». «Qassem Soleimani,o “mestre de marionetas” do Médio Oriente» na 3ª. Na página 4, «”Não se apaga a capacidade iraniana de confrontar os EUA”». Quem viesse a navegar até esta página pelos títulos poderia concluir mesmo que o General iraniano teria morrido na cama de forte gripe!. Na página 5 consente-se que houve uma «Ordem para matar general iraniano (...)», para fechar na 5ª que «Morte de “herói nacional” deverá fortalecer regime de Teerão». O título do Editorial é ainda mais elucidativo: «Crónica de uma guerra que o Ocidente vai perder». Os conteúdos, apesar de falarem de assassinato e assassínio e do seu mandante, são coerentes e consistentes com os títulos, subtítulos e destaques. No Editorial, apesar das preocupações manifestadas com as consequências para «a Europa (e o mundo)», Manuel Carvalho, ao seu melhor nível, sintetiza o sucedido: «A relação conflituosa entre o tirano de Teerão e a bazófia imprevidente de Washington tinha tudo para gerar este prefácio digno de uma guerra em larga escala»! Notável, pois tudo resultou de «uma relação conflituosa» onde um é assassinado, e intui-se que é justo que morra, afinal é um «tirano», e o assassino, um pobre diabo, é um «bazófia», ainda por cima «imprevidente». Registe-se o cuidado semântico:  um é identificado pessoalmente, é «o tirano de Teerão»; o outro, é subentendido debaixo do “substantivo colectivo” «Washington». Absolutamente uma extraordinária pérola jornalística. Esqueceram-se apenas no jornal de os inserirem no «Espaço Público» das setas classificativas. Soleimani com a seta para baixo, porque morreu, e o Trump, ou melhor «Washington», com a seta para a direita, não porque matou, mas porque pode causar prejuízos à Europa... Valha-nos que «Petróleo e ouro valorizam com ataque».(1)
Também há terrorismo mediático.  
No mesmo n.º do Público há o texto completamente diferente de JP Pereira. «Este homem não vai sair de lá sem duas guerras: uma civil e outra (espera-se) regional». Mas mantém a avaliação inaceitável de que o problema é a pessoa Trump: «Este é um dos casos em que os actuais riscos mundiais têm uma interpretação pouco marxista, porque se devem à acção de um indivíduo: Donald Trump e a sua trupe, e ao partido de serviçais em que se tornou o Partido Republicano.». Consideração que perpassa por todos os textos do jornal e que está no Editorial, sob a fórmula da tal «bazófia imprevidente». E em muitas outras abordagens, em que tudo se justifica com Trump e a a sua «loucura» (2). (Não se dizia o mesmo do Hitler?!). Esquece JP Pereira as posições do Partido Democrata para quem o problema, segundo a sua responsável no Congresso, foi a falta de autorização deste (3). Esquece o suporte de Trump pelo complexo industrial-militar e importantes fracções do capital norte-americano. Esquece o Tea Party. Esquece as posições minimalistas e desculpabilizadoras da UE e das principais potências do Directório sobre a matéria, onde, nos melhores dos casos, temos piedosas intenções. Esquece a lamentável declaração  de António Guterres, Secretário-Geral da ONU. De facto, esquece a natureza do imperialismo e das forças que o sustentam e que dele se «alimentam». Esquece a crise sistémica do capitalismo, financeirizado e monopolístico, à escala do planeta, nas suas contradições, antagonismos e impasses. Esquece as sucessivas guerras e intervenções militares dos EUA e acólitos, com Trump, e antes de Trump.  
Reduzir o problema a Trump não é só errado e mistificador. Não permite ver claro e dar sentido às lutas dos trabalhadores, dos democratas. Dificulta alcançar as respostas a dar e os caminhos a trilhar, em defesa da paz e da solidariedade entre todos os povos e países do mundo para fazer frente à ofensiva do imperialismo.

(1) No Expresso de sábado, 04JAN20, a notícia curta (certamente por razões de fecho da edição), que dá conta do acontecimento, está inteiramente  alinhada no estilo, com o título: «Iraque é campo de batalha entre os EUA e Irão» e referências no texto: «Morreu na madrugada de ontem(...)»,ficando a saber-se que foi «por ordem do Presidente Donald Trump (...)»;       
  
(2) Esta focagem pessoalizada, localizada, em Trump e na sua «loucura», está bem patente nas referências históricas feitas ao assassinato do Arquiduque Austríaco Francisco  Fernando, em Sarajevo, 1914, como iniciador/detonador da 1ª Guerra Mundial – página 3 do Público; continua no Público de Domingo, com VJ Silva «A guerra 2020: loucos contra fanáticos», para escrever, «(…) até que ponto o destino do mundo pode estar suspenso da loucura de um homem e do fanatismo de outros milhões.»; prossegue no Público de 2ª feira, com R Tavares «Quem quer morrer por um capricho de Trump?». Registem-se também as tentativas de contrapor a «loucura» de Trump  aos «fanáticos do Irão» e assim atenuar, senão justificar, as responsabilidades do Presidente dos EUA;      

(3) Apesar de notícia de iniciativa dos Democratas de procurar limitar a possibilidade de guerra com o Irão.

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