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7 de outubro de 2020

Não havia necessidade

 Agostinho Lopes.

NÃO HAVIA NECESSIDADE

Há coincidências interessantes. Publicado no mês que agora acabou, o novo romance do insuspeito Mario Vargas Llosa «Tempos Duros» ficciona em torno da história real do golpe da CIA na Guatemala, em 1954. Escreve-se na contra-capa uma tese central: «Por detrás desta acção violenta está uma mentira que passou por verdade e que mudou a história da América Latina – por parte do Governo de Eisenhower – de que Árbenz, um líder moderado encorajava a entrada do comunismo soviético no país e no continente.» No mesmo mês, a Revista do Expresso de 12 de Setembro publicava, da autoria do historiador Lourenço Pereira Coutinho, o texto «O dia das mentiras – o caminho para o golpe militar de 1964 no Brasil.» Que conclui o mesmo assim: «O golpe militar de 1 de Abril de 1964 foi encarado pelos seus apoiantes como o início de uma contra-revolução que estancou o processo de uma revolução comunista. Mas seria verdade? Ou o “comunismo” de João Goulart não era antes um socialismo nacional e populista, que representava uma terceira via, equidistante de Estados Unidos e União Soviética a exemplo do regime peronista argentino? Ao recordar esses tempos, Almino Afonso, ministro do trabalho de Goulart, não teve dúvidas em apontar a Guerra Fria como o motivo que precipitou o golpe 1 de Abril de 1964. Terá sido, pois um equívoco do dia das mentiras, mas que custaria a vida a muitas e muitas pessoas e suspenderia a democracia brasileira por mais de 20 anos». Deve acrescentar-se, como refere o texto, que o golpe teve a inevitável intervenção do então Presidente dos EUA Johnson e da CIA e como notícia de enquadramento uma «frota naval norte-americana (que) já navegava rumo ao Atlântico Sul, apostada em apoiar o esforço militar dos revoltosos.»


A novidade destas abordagens não é certamente a constante histórica da intervenção ianque na América Latina, ontem, trasanteontem e hoje, como se aqueles Estados, nações e povos, fossem de facto o seu quintal das traseiras... O notável é perpassar a assumpção da tese da não necessidade dessa agressão por haver «mentira», «equívoco» na sua justificação, no seu motivo. Não havia risco de comunismo e logo… Se houvesse, se fosse verdade, outro galo cantaria…


E poderiam também ter descoberto que o uso da mentira (das armas de destruição massiva) para argumentar, suportar a intervenção militar imperialista no Iraque, afinal já tinha barbas... apenas mudou a mentira! Notável é a naturalização, a espécie de silogismo aristotélico para reger as relações internacionais: há risco de comunismo? Há! Então tem de haver intervenção... bomba neles... mudem-se os seus governantes legítimos, eleitos por mandatos democráticos dos seus povos, e interrompa-se a democracia pelo intervalo necessário…. Mas se não houver risco, também não há problemas: inventa-se…. Vale tudo na defesa dos interesses do império.


A desfaçatez da agressão diplomática recente do embaixador dos EUA em Portugal a propósito das relações de Portugal com a China, não está nada longe daquelas concepções. E bem podem reagir Presidente da República e Ministro dos Negócios Estrangeiros. De facto os que louvaram e louvam a intervenção de Carlucci em Portugal – é extraordinária a semelhança do papel desempenhado por Carlucci, do seu papel operacional ao serviço da CIA e Departamento de Estado, com aquela que Vargas Llosa descreve do embaixador Peurifoy na Guatemala (e noutros países) no golpe que derrubou Jacobo Árbenz  – e não viram nenhuma questão no baptismo da residência do embaixador dos EUA em Lisboa, de Casa Carlucci, assumem  agora uma indignação que cheira à légua a hipocrisia. Como se diz no texto do Expresso, a entrevista do Embaixador foi feita na Casa Carlucci: «onde Frank Carlucci e Mário Soares conspiravam nos idos de 1975» exactamente para sabotar a Revolução de Abril, inventando um golpe comunista e assim justificar a contra-revolução que puseram em marcha para a destruir! Aliás na sua singeleza de negociante rasteiro (mais parece um encarregado de negócios), o embaixador, lembrando o jantar em S. Bento com o 1.º Ministro, para celebrar o negócio  da compra do Novo Banco pela Lone Star, não deixa de ameaçar sobre a obrigação de cumprir a salvação do mesmo e engordar o Lone Star, pelo Fundo de Resolução... «Houve um acordo para o Fundo de Resolução, e esse compromisso  tem de ser honrado». (O Camilo Lourenço não disse melhor!) E invocando duas vezes a «influência maligna da China», não deixou nada de fora das ameaças: para lá do Novo Banco: o 5G e a Huawei, a Mota-Engil e a CCCC, o futuro titular do Terminal de Gás de Sines... Mas, estando há algum tempo no país, o senhor embaixador já devia saber que nós resolvemos facilmente, há muitos séculos, problemas de «influência maligna», com uma pouca de água benta...                   


Quem nunca mais aprende é um conjunto significativo de jornalistas e comentadores portugueses, nos ditos media de referência, que continuam a «observar» e «ler» a multiplicação pelo imperialismo norte-americano com todo o apoio das sucursais europeias, entre as quais a UE, de acidentes e incidentes políticos e militares no mundo, como se tratassem de lutas pela liberdade e a democracia, calando, ocultando, deturpando todos os outros acontecimentos onde o mesmo imperialismo fere e ofende a soberania e os direitos dos povos. Todas as mentiras como as que foram usadas na Guatemala em 1954, no Brasil em 1964, no Iraque em

 2003 e em Portugal em 1975, continuam a ser “verdades”.


Ou então tentam transformar as razões profundas, as causas estruturais da intervenção do imperialismo, e fundamentalmente dos EUA, chefe de fila imperial, na defesa dos interesses do grande capital transnacional e monopolista, da oligarquia financeira dos 1%, neste período de crise sistémica do capitalismo, como resultado de um presidente disfuncional, mentiroso compulsivo, perturbado por traumas de infância – o Público de domingo (27SET20) dedicou seis páginas a demonstrá-lo. Parece que o Presidente dos EUA, a sua eleição, as suas decisões e intervenções nada têm a ver com o sistema económico, político e mediático nele enraizado e que o determina, com os dois partidos políticos que há décadas conduzem o seu destino!     


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