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17 de outubro de 2020

O silêncio e a desvalorização da comunicação social e da alta hierarquia da Igreja em Portugal

Agostinho Lopes

TODOS IRMÃOS


Parecia que uma nova encíclica papal – «Todos irmãos» – no contexto da pandemia que percorre o mundo, iria, deveria, suscitar as atenções e uma forte focagem dos media. Puro engano. Alguns afloramentos, aqui ou acolá, comentários (poucos) de quem era quase obrigatório fazê-los, mas nada do entusiasmo mediático que qualquer desastre natural ou escândalo na alta roda concentra. Nada de primeiras páginas, debates extraordinários, expressivas análises.

Depois do silenciamento da «Laudato si/ Sobre o cuidado da casa comum», e mesmo da sua subversão, transformando-a num texto reduzido a preocupações ambientais, assim ocultando importantes dimensões económica, social e política, apesar de tudo, seria de esperar outro relevo e presença mediática. 

Não é possível acreditar que tal é o resultado de leituras da Encíclica, como a feita por sectores da extrema-direita francesa, considerando que «o papa Francisco é de hoje em diante oficialmente islamo-esquerdista»! «posicionando-se portanto daqui para a frente claramente no tabuleiro político, lá em baixo, muito à esquerda, como a quase totalidade dos seus irmãos jesuítas (...)», com o argumento de que ele cita 5 vezes o grande imã do Cairo, Ahmad Al-Tayyeb, como seu inspirador da Encíclica, ou que os «limites e as fronteiras dos Estados não podem opor-se à chegada de um migrante porque ele não é um “usurpador”»!

Será porque o papa insiste que há «uma economia que mata»? Porque critica o «dogma de fé neoliberal» no mercado, «pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja»? Porque repudia a «especulação financeira» guiada por «uma ganância do lucro fácil»? Porque escreve que o «direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres nem acima do respeito pelo ambiente»? Porque afirma a necessidade de reformar «a arquitectura económica e financeira internacional»?

Ou será que, percebendo as inquietações papais perante o desastre a que chegamos, não querem tocar, nem ao de leve, nem com os cuidados semânticos, tantas vezes eufemísticos, diplomáticos, da Santa Sé, no que os dominantes, a oligarquia financeira e os seus advogados e ideólogos, continuam a apresentar como a nova «infalibilidade» e destino fatal da humanidade: o capitalismo? Nada de dúvidas, nada de interrogações, sobre o sistema de exploração e agressão dos trabalhadores e dos povos, que é o capitalismo na sua versão neoliberal, com a sua natureza predadora, as suas lógicas imperiais, a sua hipócrita «ética» da responsabilidade social.

O prémio Nobel da Paz 2020 foi atribuído ao Programa Alimentar das Nações Unidas. Programa para tentar responder aos 690 milhões de pessoas (8,9% da população mundial) que enfrentam o flagelo da fome. Número que pode ser acrescido por efeitos económicos e sociais da pandemia em mais 130 milhões, segundo a ONU. Isto não terá nada a ver com o facto de um punhado de 2 mil multimilionários possuírem/disporem, em 2019, de mais riqueza que 4,6 mil milhões de pessoas, 60% da população mundial??? (Somos todos irmãos, mas, continuando a bater no ceguinho (Orwell), uns mais irmãos que outros.) Ou de quase metade da população do planeta viver com menos de 4,9 euros/dia? Porque se prolonga tal situação quando a humanidade tem recursos e meios para lhe dar uma resposta definitiva?

É por isso que, não partilhando de toda a reflexão papal e continuando a dizer que não bastam os apelos-denúncias, por importantes e justos que sejam – foi já há 2 mil anos que alguém disse que era mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico… – não podemos deixar de lamentar o silêncio de chumbo sobre a nova Encíclica.


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