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17 de agosto de 2022

Acerca dos preços do gás e da eletricidade

 Os “europeístas” do costume, partem do princípio que tudo o que vem de Bruxelas é sagrado. É a nova versão do “direito divino dos reis”. Portanto, quando vemos a atitude atrabiliária do PS a lidar com a questão dos preços da energia, temos de ver que António Costa é apenas um membro de baixo escalão da confraria (máfia?) neoliberal/atlantista.

Em complemento de um texto de Manuel Gouveia, vem a propósito recordar tópicos de um texto de novembro 2021 sobre o tema: (1)

Na ânsia de privatizar tudo o que desse lucro, asseguraram-nos que a concorrência reduziria os preços do gás e da eletricidade, em benefício das famílias e empresas. Desde os anos 2000 o oposto aconteceu. A desregulamentação gerou um aumento estrutural dos preços.

Desde meados de 2021, que os preços da energia subiram em todas as regiões do mundo. A tarifa de gás regulamentada na França aumentou 57% para as famílias desde 1 de Janeiro 2021. A eletricidade seguiu o mesmo caminho: em dez anos, de 120 euros por MWh para 190 euros, a conta disparará em 2022. Esta crise arrasta a inflação na zona do euro para seu nível mais alto desde 2008. Os comentadores apenas veem razões conjunturais, mas as verdadeiras causas são encontradas em Bruxelas.

Em Dezembro de 1996, a UE adotou a diretiva  "Regras comuns para o mercado interno de eletricidade", estabelecendo "um mercado competitivo de eletricidade". Menos de dois anos depois, outra diretiva iniciou a privatização do gás. Com estes critérios aplicou-se a tática da "separação de ativos", isolar atividades previamente integradas dentro da mesma empresa pública, para oferecer tratamento "justo" a todos os produtores e fornecedores que competirão em mercados desregulamentados.

A criação de bolsas de gás e eletricidade, onde os preços de mercado são formados, destinam-se a substituir as tarifas supervisionadas pelo poder público, de forma a que os mercados nacionais fossem gradualmente integrados à escala europeia.

Os concorrentes podem comprar gás de países produtores e vendê-lo aos consumidores pagando um tarifa simples para usar a infraestrutura. O fornecedor mais competitivo é aquele que obtém o melhor preço... ou que melhor comprime suas despesas operacionais.

Nos primeiros tempos de privatização, a maioria dos novos fornecedores adotou contratos de longo prazo, sob o efeito de intensificar a concorrência adotaram contratos contratos à vista (spot). Essa mudança deve muito ao oportunismo capitalista, procurando aproveitar as variações de preço, muito mais sujeitos às conjunturas internacionais, assim os preços do gás tornam-se muito mais sensíveis às lógicas especulativas, com impacto direto sobre os consumidores. Em 2015, os contratos de longo prazo representavam apenas um terço das transações a nível europeu. Note-se que o transporte de gás liquefeito em barcos fortalece a volatilidade do mercado.

A fim de abrir uma brecha no quase monopólio estatal da energia elétrica procedeu-se ao desenvolvimento privado de energias renováveis, com um sistema de subsídios: tarifas a um preço garantido, muito superior ao custo médio de produção de eletricidade. Assim o desenvolvimento destes projetos tornou-se muito lucrativo. Em França, no período 2002-2013, foi estimado o subsídio em € 7,4 mil milhões. Compare-se este valor com o "fator de carga", a taxa anual de utilização. Em 2020, foi 14,4% para fotovoltaica, 26,5% para eólica, 23% para térmica, 29% para hidroelétrica e 61% para nuclear.

As tarifas regulamentadas pelo poder público que refletiam os custos de produção deram lugar aos preços de mercado, incluindo uma componente que reflete o preço da eletricidade na Bolsa europeia. Desta forma, os preços deixam de se basear nos custos de produção.

Mais recentemente, Bruxelas quis incentivar um novo tipo de oferta comercial chamada "preços dinâmicos". Neste sistema de faturação, os preços da bolsa de valores são repassados em tempo real (hora a hora) ao consumidor. Este método de cálculo transfere o risco do mercado de ações para famílias, autoridades locais e empresas consumidoras.

Com a eletricidade como serviço público, as tarifas são definidas de forma a proporcionar aos consumidores o melhor preço, permitindo à empresa pública fazer os investimentos necessários ao bom funcionamento da rede e o operador usa seus meios de produção de acordo com os menores custos unitários.

As centrais a gás representam cerca de 20% da produção total europeia (em 2020) e especialmente a maior parte da produção de pico, o aumento do preço desse combustível reflete-se nos preços da eletricidade. Soma-se a isto o aumento do preço do carbono e as flutuações de outros mercados. O preço da eletricidade tornou-se uma pilha de mecanismos do mercado de ações. Os governos estão sobrecarregados com este mecanismo incrivelmente complexo, visto que sacrificaram a maioria de seus meios de regulação no altar da concorrência europeia.

Resta a tributação sobre a energia, reduzida na Itália, Espanha ou Portugal para conter o aumento das contas. Na França, o governo implementa um vale-energia para quase seis milhões de famílias de baixo rendimento.

As associações de consumidores denunciam o sistema e juntam-se a grandes clientes industriais que enfrentam uma situação crítica de aumento dos custos de produção. Por sua vez, os sindicatos multiplicam iniciativas para exigir o retorno da energia ao domínio público.

Embora a elevação dos preços tenha levado ao adiamento do projeto de desmantelar a EDF em França, nenhuma mudança está prevista por parte de Bruxelas, que persiste na lógica de desregulamentação e privatização. Tirar a energia da lógica do mercado levanta, portanto, outra questão, com repercussões muito mais amplas: como nos libertarmos do ultraliberalismo imposto aos povos?

1 - Aurélien Bernier, https://www.monde-diplomatique.fr/2021/11/BERNIER/64005

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