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26 de novembro de 2017

A culpa é do Estado !

Falhados, são eles


Nos dias que correm se há quem tenha as “costas largas”, esse alguém é o Estado. Neste exercício de atirar pedras e esconder a mão que por aí temos visto, tendo por certo que depois de arremessadas a algum lado elas terão de ir parar, lá  vemos quem as lança fazendo por evitar que elas regessem ao regaço. Costuma-se dizer que a melhor defesa é o ataque. Daí o coro dos que se uniram para, a propósito da tragédia dos incêndios, as armas de Tancos, ou o recente surto da “legionella”, bramar que «o Estado falhou».


Proceda-se à devida correcção. Não foi o Estado que falhou, mas quem em seu nome executou políticas que debilitaram o País. O que falhou foram anos de política de direita, de alienação de recursos nacionais para as mãos de grupos monopolistas, de submissão a Bruxelas e às regras que coartam as perspectivas de um desenvolvimento soberano. Quem falhou foram os que em sucessivos governos de PS, PSD e CDS encerraram serviços públicos e esvaziaram estruturas desconcentradas da Administração Central, acção ampliada pelo governo anterior com o alegado corte da “gorduras do Estado”.


Sem desprimor para a arte da pantomina em sentido literal que o termo significa, o que se assiste é à expressão do sentido figurado que o termo autoriza na versão popular de pantominice, associado à designação de logro ou mentira bem elaborada. A floresta ardeu? A culpa seria dessa entidade de costas largas, não da política de abandono do mundo rural, de desinvestimento na floresta, do favorecimento das grupos ligados à celulose com a plantação desenfreada do eucalipto, do abandono do interior. Tancos foi “assaltado”? A culpa seria do Estado e da sua «negligência», não da ausência de investimento em meios de vigilância ou a não renovação de equipamentos. O surto de “legionella” instalou-se num hospital público? A culpa é do Estado e da sua alegada «falência», não do subfinanciamento  do Serviço Nacional de Saúde prosseguida há décadas traduzida na degradação das condições de acesso à saúde.


Esta torrente opinativa, repleta de falsa inocência, busca ainda que dissimulados, três objectivos: ilibar os responsáveis por décadas de opções contrárias aos interesses do País; reduzir por via do ataque ao Estado aquilo a que o povo português tem direito; e iludir a natureza e papel do Estado enquanto instrumento de dominação.


À boleia desta teorização aí está reposta o acervo justificativo da defesa do “Estado mínimo”. Lê-se escrito por uns que «o Estado falhou naquelas que são as suas funções mais sagradas» (leia-se defesa e segurança) e só não se recomenda que procurem bênção para tanto descaramento porque o agnosticismo não o permite. Encontra-se escrito por outros que «nenhuma mente clarividente pode pôr em causa que o Estado falhou nas suas funções essenciais» e nem se suspeita que perante tão reluzente espírito se esconde tão sombrias intenções.


Outros ainda, lá vão adiantando uma versão mais comedida, atribuindo à «máquina» do Estado a origem de todas as desventuras. Sempre se fica com a impressão de que com uma ou outra afinação, o recurso a uma almotolia e uns pingos de óleo, a coisa fica consertada.


Uns e outros usando o Estado como biombo, lamentando-se da «radical debilidade do Estado» mas ambicionando reconfigurá-lo a uma versão mínima, limitada ao que designam de funções de soberania, alienando responsabilidades e funções que lhe devem estar cometidas. Uns e outros, todos por atacado, reclamando contra a «dimensão e o peso do Estado» sem assumirem que o que os incomoda é o que essa dimensão representa de tradução de direitos constitucionais e funções sociais  conquistados e dos meios da Administração para lhes dar cumprimento. O que os move é um modelo de “Estado mínimo” em matéria de efectivação de direitos, para os trabalhadores e o povo, mas de facto “máximo” para impor interesses da classe dominante.


Por aí andam repetindo a estafada teoria sobre o Estado regulador, visto como entidade vagueando erraticamente acima das coisas e bens, atento e zeloso para cuidar dos menos bafejados pela divina dádiva do sucesso. Fazem-no, não porque desconheçam a real natureza e objectivos do Estado enquanto instrumento de dominação, mas porque sabem que por detrás da densa névoa de alusões ao “interesse público e  nacional” e “bem-estar geral” que o Estado em abstracto estaria mandatado para realizar, melhor podem iludir essa questão e perpetuar os fins últimos que querem garantir. É por detrás deste jogo de ilusões que se suportam as questões mais fundas do papel que o Estado joga na sociedade e que, hábil mas coercivamente, se assegura a repartição cada vez mais injusta do rendimento nacional, que se constroem as leis que protegem os mais fortes, que se garante em nome da ordem pública a ordem estabelecida dos dominantes, que a balança da justiça tem sempre mais peso do lado da propriedade. Não adianta atirarem para as costas do Estado as responsabilidades que os de “carne e osso” deviam assumir por inteiro. Jorge Cordeiro





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