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28 de janeiro de 2019

No centenário do assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo

Jorge Cadima

As recentes comemorações oficiais do Armistício que, há 100 anos, assinalou o calar dos canhões na I Guerra Mundial foram um espectáculo indecoroso. Como se escreveu nas páginas do Avante!, a propósito dessas comemorações, «fala-se de paz, mas prepara-se a guerra» (1). E procura-se reescrever a verdade histórica da Grande Guerra, uma guerra das classes dominantes das grandes potências capitalistas do seu tempo, em disputa entre si por mercados, matérias-primas e controlo territorial, como descrito com profundidade e lucidez na obra de Lénine (2). Trata-se duma verdade histórica que urge lembrar, e que transporta ensinamentos para os nossos dias.
A I Guerra Mundial foi, como escreve o historiador Jacques Pauwels (3), uma guerra desejada pelas classes dominantes de todos os países beligerantes, a braços com o ascenso dum movimento operário organizado que irrompia como actor de primeiro plano na cena histórica e que era portador da exigência de justiça social e democracia política. Escreve Pauwels: «No momento em que a guerra explode, a elite exulta, e com boa razão: as greves e outros problemas sociais terminam de forma brusca, e desaparece também a ameaça revolucionária, real ou presumida. [...] É travada a democratização até então aparentemente irresistível, e dá-se mesmo um retrocesso: as conquistas sociais são sistematicamente ‘descosidas’. […] Em Agosto de 1914 as elites tinham razões para se engalanar, e fizeram-no em todos os países que então entraram na guerra. Estavam sobretudo aliviadas pelo facto de que a guerra no estrangeiro trazia a paz em casa, que o desencadeamento dum conflito internacional neutralizava os conflitos sociais no seio do seu próprio país, bania a revolução e transformava em bons cidadãos aqueles que davam corpo ao perigo revolucionário, ou seja os proletários, até então descontentes e recalcitrantes» (4).

A ‘paz social’ que ‘eclodiu’ em 1914 só foi possível pela traição da grande maioria dos dirigentes do movimento operário, nomeadamente dos seus partidos e sindicatos social-democratas, que rasgaram as suas declarações de oposição à guerra do grande capital e em defesa da Paz (5), aprovando os Orçamentos de guerra e, em muitos casos, entrando para os respectivos governos. Foi uma pequena, mas lúcida minoria que, no seio do movimento operário, manteve erguida a bandeira da oposição à guerra imperialista, minoria da qual viria a surgir o movimento comunista internacional. Nome cimeiro da fidelidade aos princípios marxistas é o de Lénine, que defende a oposição em cada país aos governos da guerra e a transformação da guerra imperialista em revolução social. Na Alemanha, foram Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo que, junto com outros dirigentes do movimento operário alemão, protagonizaram a oposição à guerra, a formação da Liga Espartacus (rapidamente ilegalizada) e, na passagem de ano de 1918 para 1919, a fundação do Partido Comunista Alemão (KPD).
Na sua «Carta aos Operários da Europa e da América» (6), Lénine escrevia em 1918: «Karl Liebknecht é um nome conhecido dos operários de todos os países. Por toda a parte, e particularmente nos países da Entente, este nome é o símbolo da dedicação de um dirigente aos interesses do proletariado, de fidelidade à revolução socialista. Este nome é símbolo de uma luta realmente sincera, de uma luta realmente abnegada, de uma luta implacável contra o capitalismo. Este nome é o símbolo de uma luta intransigente contra o imperialismo não em palavras mas em actos, de uma luta abnegada precisamente quando o ‘seu’ país está embriagado pelas vitórias imperialistas».
A fidelidade aos princípios de Liebknecht e Luxemburgo foi paga a duro preço. Durante a guerra, ambos passaram mais de dois anos presos, apesar de Liebknecht ser deputado e gozar de imunidade parlamentar. Mas o pior estava para vir.
Se a Grande Guerra foi iniciada pelas classes dominantes, o fim da Guerra foi em boa parte obra dos povos, que se recusaram a continuar a combater, entrando em revolta aberta. A vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro (7 de Novembro, 1917) na Rússia representou um momento de viragem no curso da guerra (e na História da Humanidade). O seu exemplo, e o prolongamento sem fim à vista dos combates, inspiraram os soldados e marinheiros alemães, primeiro às deserções em massa e, um ano mais tarde, à revolta. A partir de 29 de Outubro de 1918, os marinheiros alemães sublevam-se contra as ordens de combater e tomam o controlo, com o apoio dos operários, de várias cidades industriais do norte da Alemanha. No dia 9 de Novembro a revolução chega à capital, Berlim. O Kaiser (Imperador) é derrubado e, com poucas horas de diferença, a República é proclamada duas vezes: uma pelo social-democrata Scheidemann, e outra por Liebknecht. Dois dias depois é assinado o Armistício.
Os meses que se seguem são marcados por uma aliança entre todos os representantes da velha ordem para reprimir ferozmente a embrionária revolução alemã. O recém-formado governo, hegemonizado pela social-democracia (SPD), desencadeia uma feroz e sangrenta repressão que, nos dois anos seguintes, haveria de matar mais de 20 000 revolucionários alemães (7), em campanhas muitas vezes abertamente militares contra bairros operários. Nessa repressão, para sempre ligada aos nomes de dois dirigentes do SPD, Ebert e Noske, desempenharam um papel central grupos armados de oficiais e ex-soldados, conhecidos como os Freikorps. Na ferocidade da repressão, e em muitos dos seus protagonistas, os anos de 1918-20 foram uma antevisão da ascensão, pouco mais de uma década depois, de Hitler ao poder, facto que explica também a profunda rejeição e desconfiança em relação à social-democracia alemã da parte mais consequente dos trabalhadores alemães.
Das primeiras vítimas mortais da repressão governamental foram Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, assassinados em Janeiro de 1919, enquanto detidos pelas autoridades. O corpo sem vida de Rosa Luxemburgo apareceria, dias depois, a flutuar num canal. Conscientes das debilidades políticas do incipiente surto revolucionário, consideravam prematura qualquer tentativa de tomar o poder pela força, mas não deixaram de assumir o seu papel na primeira linha das lutas em curso (8). O seu assassinato deu-se enquanto Lénine escrevia a sua «Carta aos Operários da Europa e da América»: «As linhas precedentes foram escritas antes do selvático e vil assassínio de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo pelo governo de Ebert e Scheidemann. Estes carrascos, que rastejam diante da burguesia, permitiram aos guardas brancos alemães, aos cães de guarda da sagrada propriedade capitalista, que linchassem Rosa Luxemburgo, assassinassem Karl Liebknecht com um tiro pelas costas […]. Não há palavras para exprimir toda a infâmia e a baixeza dessa acção de carrascos, cometida por pretensos socialistas».
No seu discurso ao I Congresso da Internacional Comunista (2-6 de Março, 1919), Lénine afirmou: «No país capitalista mais desenvolvido do continente europeu, a Alemanha, logo os primeiros meses de liberdade republicana, trazida pela derrota da Alemanha imperialista, mostraram aos operários alemães e ao mundo inteiro em que consiste a real essência de classe da república democrática burguesa. O assassínio de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo constitui um acontecimento de importância histórica mundial não apenas porque morreram tragicamente os melhores elementos e chefes da internacional verdadeiramente proletária, a Internacional Comunista, mas também porque, para um Estado avançado europeu – pode dizer-se sem exagero: para um Estado avançado à escala mundial – se revelou inteiramente a sua essência de classe. Se pessoas presas, isto é, colocadas pelo poder de Estado sob a sua guarda, puderam ser impunemente assassinadas por oficiais e capitalistas, sob um governo de sociais-patriotas, consequentemente a república democrática em que tal coisa foi possível é uma ditadura da burguesia».
Num dos seus últimos textos, «Um apelo aos trabalhadores do mundo», publicado pouco tempo antes da sua morte, em Novembro de 1918, Rosa Luxemburgo e  Karl Liebknecht (em conjunto com outros destacados dirigentes Espartaquistas, Clara Zetkin e Franz Mehring) alertavam para os perigos do que estava para vir: «O imperialismo de todos os países não conhece os "acordos", apenas reconhece um direito – o lucro do capital; apenas conhece uma linguagem – a da espada; apenas conhece um método – a violência. E se agora fala em todos os países, nos vossos como no nosso, sobre a "Liga das Nações", o "desarmamento", os "direitos das pequenas nações", a "autodeterminação dos povos", está apenas a usar as estafadas frases mentirosas dos governantes, com o objectivo de embalar, até fazer adormecer, a vigilância do proletariado». Profeticamente, afirmavam: «Lembrem-se de que os vossos capitalistas vencedores estão prontos para afogar em sangue a nossa revolução, que temem tanto quanto a sua própria. [...]. Se as vossas classes dirigentes conseguirem estrangular a revolução proletária na Alemanha, e na Rússia, virar-se-ão contra vós, com redobrada violência. Os vossos capitalistas esperam que a vitória sobre nós, e sobre a Rússia revolucionária, lhes dará a força para vos fustigar com um azorrague». Numa antevisão das consequências que a ‘paz dos vencedores’, imposta mais tarde em Versalhes haveria de trazer, e que acabaria por conduzir ao desastre económico na Alemanha, alimentando a ascensão de Hitler e a II Guerra Mundial, afirmavam: «O que as classes governantes preparam como paz e justiça é apenas uma nova obra de força brutal, da qual brotarão as mil cabeças da Hidra da opressão, do ódio e de novas e sangrentas guerras».

Notas

(1) Albano Nunes, «Armistício e verdade histórica», Avante!, 15.11.2018.
(2) O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, in Obras Escolhidas de Lénine em seis tomos, t. 2, ed. «Avante!», 1984.
(3) Jacques R. Pauwels, 1914-1918. La Grande Guerra Des Classes, Éditions Aden, 2014.
(4) J. R. Pauwels, op. cit., p. 299 e seguintes.
(5) O Socialismo e a Guerra, Lénine, op. cit., t. 2, ed. «Avante», 1984.
(6) Carta aos Operários da Europa e da América, Lénine, op. cit., t. 4, ed. «Avante!», 1986.
(7) Nigel Jones, The birth of the Nazis – How the Freikorps blazed a trail for Hitler, ed. Robinson (2004), p. 203.
(8) Artigo de Eduardo Chitas, «Nos 85 anos do assasínio de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo», in O Militante, Março-Abril/2004; e o texto de Rosa Luxemburgo, «A ordem reina em Berlim», in O Militante, Setembro-Outubro/2009 (com a introdução «Em memória de uma 'águia'»).


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