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3 de novembro de 2017

Vozes


Vozes do sepulcro
Jorge Cordeiro


Conhecida a notícia de que o Parlamento Europeu  atribuíra à chamada “oposição venezuelana” o “Prémio Sakharov”, não poucos associaram a decisão a um qualquer novo e inédito episódio da série “walking dead”(“mortos-vivos” na versão portuguesa). Há-de reconhecer sentido a essa percepção dado o esforço feito por alguns, como adiante se verá, para ressuscitar o que ameaçava morrer, pesem as devidas distâncias entre ficção e realidade.


A atribuição do prémio, não fosse o alcance político e provocatório que encerra, levar-nos-ia a arrumar a decisão no quadro daquele conhecido ditado popular segundo o qual se deve albardar o burro à vontade do dono. Sendo que, no caso em presença, a determinação do papel de cada um, o do burro e o do respectivo dono, atentas as variáveis da equação – Tajani, presidente do PE, Sakharov, o “dissidente” de serviço em vida e depois de enterrado ou os grupos golpistas venezuelanos –, não se revele um exercício isento de dificuldades. Nada de importância maior que releve para o que é essencial: dar ânimo à besta e fôlego ao seu tropel. Se a coisa não anda como alguns ambicionam (no caso a “oposição”), acene-se-lhe com a palha (à imagem da figura que dá nome ao galardão). É para isso que o feitor (Tajani) serve. Para lá da ilustração e dos seus óbvios limites mundanos, a decisão do Parlamento Europeu é inseparável do papel atribuído aos diversos instrumentos da estratégia de dominação imperialista. Agora em torno da Venezuela como antes em todas as outras situações, do Iraque à Líbia ou da Ucrânia à Coreia, aí está accionado o pilar europeu dos projectos belicistas e desestabilizadores da Administração norte-americana.  


O título que a toda a largura da página se pôde ler na imprensa a propósito desta decisão «Prémio Sakharov dá alento à oposição venezuelana...», para lá do inebriante entusiasmo nele posto tem, reconheça-se, o azimute bem calibrado. É caso para se dizer “branco é galinha o põe”.


Surpreendidos alguns, outros mais avisados nem tanto, pelo silêncio sepulcral que há semanas sufocava a nervoseira noticiosa sobre a Venezuela, a vergonhosa decisão do directório do Parlamento Europeu veio ressuscitar o que parecia sepultado. É vê-los a sair das catacumbas e das campas onde jaziam depositados esbracejando eufóricos e dando graças aos céus por este novo assomo de fôlego.  


O público menos atento, aquele que constrói a sua opinião pelo que a comunicação social quer que seja notícia, talvez nem tenha reparado, tal a rasura a que foram sujeitas, que há pouco mais de duas semanas se realizaram eleições regionais na Venezuela. A  vitória expressiva das forças bolivarianas – conquista de 18 das 23 regiões em disputa – e a derrota não menos significativa da chamada “oposição” não era para noticiar. Porque desfazia toda a narrativa de um poder em perda, isolado do povo, sem apoio e condenado a ruir às mãos da violência dos grupos fascizantes que haviam, meses atrás, tentado colocar esse País a ferro e fogo.  Em bom rigor, aos olhos dos critérios editoriais  dominantes,  eleições são coisa de pouca monta desde que os resultados não acomodem o que ambicionariam informar e, sobretudo “não notícia”, se a ela não estiverem associadas as acções de  boicote ou violência terrorista que possam ser atribuídas a quem, não as praticando, aparece aos olhos da opinião pública como responsável. Aos que saídos dos jazigos políticos e desapontados pelas notícias de normalização vindas do lado de lá do oceano, vociferando entre dentes como a falta  de iniciativa dos grupos terroristas que a soldo dos EUA intervêm na Venezuela, este prémio reacendeu-lhe o rastilho. Não de esperança mas de ódio.  Um alento mais generalizado do que se imagina num primeiro olhar. Alento a uma “oposição” em dificuldades, não tanto pelas divisões que alguns enfatizam,  nem pelo valor do prémio, uns “míseros” 50 mil Euros, se atendida a drenagem  de apoio financeiro dos EUA medido em milhões de dólares para os bolsos da “oposição”, mas sobretudo decorrentes das contradições que o seu isolamento e desmascaramento no plano interno revelam. Alento aos que,  a partir dos centros de produção mediática, inconformados com a afirmação soberana de Estados e povos, viram chegar o pasto que a seca dos acontecimentos no País lhes havia sonegado. Alento para novas operações de ingerência, pressão e tentativas de isolamento económico, financeiro, político e diplomático que acrescentem dificuldades à Venezuela e animem a partir dessas dificuldades impostas a partir do exterior os que lá dentro conspiram, desestabilizam e assassinam.


À imagem do xerife da série “mortos-vivos” que acordado do coma percebe que o mundo que o rodeia já não é o que conheceu, aí temos reunidos os do costume para ver se dão vida ao que está a sucumbir e quebrar esse silêncio sepulcral a que se viram obrigados a cumprir pela força das circunstâncias. A melhor resposta tem-la dada o povo venezuelano.

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