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14 de fevereiro de 2019

Publicado na Vertice
Privatizações -Carlos Carvalhas
Itrodução
Ampliámos e actualizámos um artigo escrito para a Seara Nova, procurando responder a diversas solicitações e sugestões que o entenderam como um necessário instrumento de intervenção, um avivar de memórias, um encadeado de informações para que se compreenda a centralização e concentração de capitais verificada no nosso país após a reversão das nacionalizações. Que seja um estímulo para que se avance com a história das privatizações.
Há muita informação dispersa, muita informação que se vai esquecendo na espuma dos dias e que reunida e sistematizada nos ajudará a compreender, e designadamente para as gerações mais novas, como aqui chegámos, como nasceram muitas das grandes fortunas deste País, como actuaram os camaleões no período revolucionário, quais as razões da acentuação das desigualdades e da concentração da riqueza. Uma história das privatizações será um instrumento precioso para se combater as linhas ideológicas do despesismo, de que os portugueses viveram acima das suas possibilidades, do endeusamento do mercado e do privado, da «charlatanice» económica que dá pelo nome de neoliberalismo.
Indo ao encontro das referidas solicitações tentou-se com esta publicação que ela fosse de leitura fácil e com as referências indispensáveis no texto e sem muitas notas de rodapé. Não é, nem procurou ser, um texto académico, mas apenas com objectividade um instrumento de combate a ideias feitas, às ideias que circulam, pois as ideias dominantes são as de classe dominante. Trata-se de um breve alinhamento de casos e afirmações que ajudam a des- montar as falácias, os sofismas, as mentiras, a reprodução ideológica das «elites», para que se mantenha o seu domínio e a concentração da riqueza.
É necessário inverter este caminho.
Uma justa distribuição do Rendimento Nacional é uma exigência de justiça social, de melhoria das condições de vida dos assalariados, da população em geral, da juventude, de combate à inversão da nossa pirâmide populacional, uma exigência do desenvolvimento económico.
Os recursos que vão para superar os desmandos da banca, para pagar as Parcerias Público-Privadas (PPP), os acordos de Swap, o serviço da dívida...,
são os que fazem falta ao investimento público gerador de crescimento e emprego, à melhoria do Serviço Nacional de Saúde e da Escola Pública, aos benefícios sociais.
Esta publicação procura ser assim um instrumento contra a manipulação da informação e os seus mecanismos tendo em atenção que a «informação não é uma mercadoria, mas um bem público» e também um instrumento de denúncia do ensino da economia, no processo de reprodução das elites e das «teorias» que os servem.
As ideias dominantes são as da classe dominante e no ensino da economia as teorias dominantes são também as das classes dominantes.
No essencial, em muitas universidades, incluindo naturalmente as do nosso País, a economia política que é ensinada assenta em muita fantasia económica encoberta de roupagem «científica», visando manter os privilégios e a acumulação capitalista.
Nas faculdades aprende-se muita coisa útil, mas também muitas coisas inúteis, absurdas e falsas. A microeconomia foi erigida em disciplina «determinante» e segundo os seus prosélitos a «única base científica» para explicar os fenómenos ao nível macroeconómico. Procura-se demonstrar matematica- mente que uma economia composta de agentes e cidadãos racionais, interagindo nos mercados livres e concorrenciais não falseados, levará ao equilíbrio geral, garantindo assim o uso eficiente dos recursos escassos. É uma teoria falsa mas que serve os privilegiados.
A roupagem científica vem desde logo com a chancela académica, a universidade dita de prestígio – agora até são classificadas num ranking dado pela sapiência anglo-saxónica; com o grau académico; com a publicação de artigo numa «conceituada revista» da especialidade, ela mesma avalizada pelos mesmos e servida com muita formalização matemática, com um modelo complexo e quanto mais complexo maior erudição e cientificidade demonstra. Depois que a sintonia de tal modelo com a realidade nem sequer seja pura coincidência, porque simplesmente nunca o é, não interessa aos «charlatães encartados» (1).
São «teorias» sem fundamentos teóricos.
A história das doutrinas económicas mostra-nos que tem sido essa a realidade.
(1) O que muitas vezes se designa de discurso técnico é um discurso político mascarado for- malmente para se atingir objectivos previamente definidos. Myrdal G. «The Political Element» in The Development of Economic Theory.

É conhecida, por exemplo, a teoria dos fisiocratas em França quando os agricultores eram a maioria e a terra a principal riqueza.
Na teoria dos fisiocratas a terra beneficiava de uma particularidade única, «produzia valor», valor que dava para as terras serem tratadas e exploradas.
Os aristocratas possuíam a maioria das terras e eram a classe mais rica.
Esta riqueza dos nobres aristocratas chegava ao resto da população, segundo os fisiocratas, através das suas despesas, do seu consumo. Por isso, era conveniente que sobre eles não recaíssem impostos. Retirar dinheiro aos nobres através dos impostos era privar toda a sociedade dos efeitos positivos das suas despesas e, para que o seu efeito fosse completo, era necessário que estas circulassem sem entraves suprimindo-se as barreiras alfandegárias e as taxas.
Para os fisiocratas não se devia perturbar a «vida natural» da circulação e tudo se devia fazer para que toda a terra disponível fosse cultivada. Era a teoria representada no conhecido quadro de Quesnay, inspirado na circulação sanguínea, defendida e aclamada pelos dominantes da época. O pensamento dos fisiocratas também se apresentava como «objectivo, científico e neutro».
A revolução industrial e a ascensão da burguesia lançou tal teoria para o caixote do esquecimento.
Mas o que a impulsionou, defender teoricamente os privilégios de uma minoria, regressa novamente e periodicamente com novas vestes e novos disfarces.
É a argumentação de que se deve baixar o imposto sobre os lucros (IRC) para que os grandes empresários invistam e criem emprego, quando o resultado objectivo é o aumento dos lucros e dividendos dos gestores e accionistas.
Quantos casos não se conhecem de empresas que inclusivamente redu- zem o seu capital próprio para aumentar os dividendos?
É a argumentação de que a economia não pode viver sem bancos e que portanto é necessário capitalizá-los e desendividá-los com dinheiros públicos, quando a verdade é que os bancos são necessários mas não os banqueiros.
É a argumentação dos neoliberais, entrando em contradição com os seus «princípios teóricos», de que não se pode deixar os grandes bancos ir à falência – «too big to fail» –, concedendo-lhes assim a garantia da impunidade a todos os desmandos!
É a teoria do «derrame», a velha noção neoliberal do «trickle-down effect», avançado em 1981 pelo director do Orçamento de Reagan: reduzir os impostos às camadas superiores e aos indivíduos mais ricos e às maiores empresas e
deixar que os seus efeitos positivos se derramem por toda a economia beneficiando toda a sociedade.
É uma nova versão da teoria fisiocrata aplicada agora a outra classe dominante e retomada de forma mais explicita entre nós, por exemplo, por Passos Coelho, e na actualidade por Trump e por Macron (2).
O argumento é simples: os rendimentos colectados aos «pobres e remediados» e dados em redução de impostos e benefícios fiscais aos ricos e às grandes empresas estimula o crescimento e o emprego, o que é bom para os «pobres e remediados»!
Nunca fazem um raciocínio do mesmo tipo mas contrário. O aumento de rendimento dos «pobres e remediados» através de benefícios sociais e fiscais e a diminuição de impostos a esta maioria da população acabará por favorecer os mais ricos pois o aumento do consumo, isto é, a compra dos bens e serviços produzidos pelas grandes empresas aumentará os seus lucros e portanto os rendimentos e dividendos dos gestores e accionistas!
É que, como inclusivamente dizia Keynes, o aumento de mais um empregado numa empresa só tem sentido se a procura dirigida a essa empresa o justifica. Não são as empresas que criam os postos de trabalho mas a procura de bens e serviços que elas produzem.
A «teoria» do derrame serve sempre para justificar a diminuição dos impostos às grandes empresas e bancos com a promessa de que essa baixa acabará por beneficiar a economia em abstracto! Entre nós temos, por exemplo, António Lobo Xavier, ex-deputado do CDS e conhecido comentador, que tem sido objectivamente um defensor «desta teoria», designadamente em relação ao imposto sobre os lucros (IRC).
O «excesso de imposto mata o imposto» tem sido outro dos ângulos de abordagem da teoria de menos impostos para as grandes fortunas.
Uma carga fiscal exagerada pode criar problemas de fuga, de desincen- tivo, de deslocalização de actividades...
Mas mesmo tudo isto depende do contexto em que o país se encontra. Não se pode ajuizar em abstracto. Os defensores das classes dominantes, ditos economistas da «teoria» da «oferta», servem-se muitas vezes da fantasia do economista americano Arthur Laffer, e da sua «curva». A ideia é que uma baixa de impostos, ao dinamizar a actividade, vai aumentar as receitas fiscais.
(2) «Trickle-down economics proved a cruel hoax.» Robert Reich, economista, Secretário do Trabalho de Clinton – «Trans Pacific Trickle-down Economics», 2015.
Portanto não seria sequer necessário aumentar a carga fiscal sobre as outras camadas da população.
Nunca o conseguiram demonstrar nem teoricamente, nem nos factos. O que a realidade nos mostra é precisamente o contrário, a concentração da riqueza.
Depois, em todas estas «análises», para além da abstracção, nunca entram em linha de conta com o salário indirecto, isto é, com o que os trabalhadores e os cidadãos em geral recebem em prestações sociais, em subsidiação de transportes, saúde, ensino público, cultura, segurança... Mas se as teorias da baixa de impostos para as grandes empresas, bancos e super-ricos, como factor de dinamização económica nunca foi demonstrada, já a concentração de riqueza como entrave ao crescimento económico encontra a sua verifi- cação, inclusivamente em estudos do FMI – que não pode ser acusado de pendor socialista!!!
O estudo da baixa de impostos na sociedade francesa segundo Thomas Piketty e outros investigadores mostraram que ela não se paga por si mesma, como diziam os apologistas do capital, o que obriga portanto ao aumento
de impostos posteriormente para o conjunto da população.
A corte dos economistas neoliberais, académicos e comentadores não se serve só de sofismas, falácias, falsas teorias no campo dos impostos mas também em relação ao salário mínimo, à legislação do trabalho, às privatiza-

ções, à organização do comércio internacional, à questão da dívida pública. O que afirmamos sobre os economistas do establishment afirmamos também sobre as principais organizações internacionais: FMI, Banco Mundial,
OCDE, União Europeia.
Na União Europeia temos desde logo a «treta» da «concorrência livre e não

falseada», a «treta» dos critérios de Maastricht, a «treta» de uma União Euro- peia entre iguais e a «treta» do euro como factor de desenvolvimento para todos e de coesão económica e social (3).
Argumentam também alguns que os Tratados não obrigam à privatização de empresas nem nada dizem em relação ao seu número ou dimensão, o que é contrariado pela prática, designadamente pela imposição dos critérios do défice orçamental.
(3) Admitindo mesmo que a concorrência não é falseada, pelo acesso ao crédito, aos Fundos Europeus, à pretensa eficácia do equilíbrio concorrencial estabelecido pelo critério do Pareto, não tem qualquer sentido na vida real.
A treta da «concorrência livre e não falseada» e os ditos critérios do défice orçamental têm obrigado e servido de justificação aos Estados para privatizar serviços públicos e entregar importantes empresas ao domínio estrangeiro, como se tem visto entre nós.
Com a «justificação» da necessidade de receitas para cobrir o défice orça- mental e de que o privado é melhor gestor, a fúria privatizadora estendeu-se a todos os domínios. Chegou-se ao ponto de o Estado pagar milhões de rendas por edifícios que vendeu.
Em 2006, o Ministério da Justiça vendeu entre muitos outros patrimónios os estabelecimentos prisionais de Lisboa e de Pinheiro da Cruz, os maiores do País, por 60 e 81 milhões de euros respectivamente. Mas continuou a ocupar ambos os edifícios passando de dono a inquilino, pagando todos os meses uma renda que ultrapassa os 7 milhões de euros anuais (DN 8/12/2009). Na saúde e nas estradas tivemos o mesmo regabofe. Lembre-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal de Contas, considerando que a opção da EP (Estradas de Portugal) de prescindir de 430 milhões de euros da Soares da Costa e Mota Engil «não pode deixar de suscitar perplexidade», que o «interesse público não foi defendido» e que «o Estado ficou a perder» tendo recusado o visto prévio às subconcessões das novas auto-estradas Transmontana e do Douro Litoral. Citamos este exemplo por se tratarem de duas empresas onde pontificam e pontificaram ex-governantes do bloco central das negociatas e por a EP ter recorrido e ter tido na altura, como noticiou o semanário Sol (de 13/11/2009), um aliado de peso: «o constitucionalista Marcelo Rebelo de Sousa considera que as subconcessões adjudicadas pela EP não estão sujeitas a visto prévio».
Como dizia a insuspeita jornalista Helena Garrido, no insuspeito para o caso o jornal Negócios de 6/10/2009, «no mundo empresarial é hoje dramaticamente clara a dependência do Estado, sinónimo de estar nas mãos do partido que está no poder».
As grandes empresas cotadas em Bolsa, supostamente livres na sua ges- tão, parecem manifestamente ter todo o seu negócio dependente do Estado, por acção – nos grandes concursos públicos – ou omissão – para garantirem que não lhes criam dificuldades.
Na prática, o que a vida nos mostra é que o mito do «mercado regulado», a «ideologia do mercado» e as privatizações como factor de eficiência e de diminuição de preços para os consumidores tem tido efeitos contrários aos proclamados e tem levado à concentração da riqueza, ao aumento da depen- dência da nossa economia e à fragilização do nosso tecido empresarial. Tem servido interesses muito concretos, mas não os do País, nem os da população
em geral. A multiplicidade de casos de corrupção e de casos muito pouco transparentes envolvendo personalidades e dinheiros públicos, juntamente com a difusão da falsa ideia pela direita e pelos responsáveis dos desmandos de que são todos iguais, que os políticos são todos corruptos, tem vindo a minar o regime democrático, a confiança nas instituições e a criar o caldo de cultura ao desenvolvimento de ideias e «saídas» perigosas que exigem o nosso firme combate e o combate de todos os democratas.
O grande assalto ao património público
Quando os governos da política de direita – na altura caracterizados, e bem, de recuperação capitalista, latifundista e imperialista, hoje também conhecidos pelos governos de «bloco central das negociatas» (PSD, CDS, PS) – avançavam com as privatizações já no quadro da adesão à CEE, afirmámos que, no contexto da integração europeia, mais se justificava a existência de um forte e dinâmico sector empresarial do Estado (SEE) e que este era determinante para a concretização de uma política de desenvolvimento ao serviço do povo e do País e da defesa da soberania e independência nacional. Afirmámos também que, no quadro da integração, a privatização dessas empresas, dado o inevitável embate entre a «panela de ferro e a panela de barro», mais tarde ou mais cedo, cairiam nas mãos do estrangeiro, com todas as consequências negativas, designadamente na saída de recursos e na acentuação da nossa dependência (4).
À distância de hoje estas teses são de uma evidência linear.
Na altura, foram contestadas designadamente pelos ideólogos da direita e por «analistas e comentadores» ao serviço daqueles que com as privatizações vieram a acumular fortunas.
O País está hoje muito mais dependente e enfraquecido. As grandes empresas básicas e estratégicas estão nas mãos do estrangeiro. Pratica- mente não temos banca nacional e o único banco que se mantém português é precisamente o que se conservou público.
(4) Os dividendos e lucros distribuídos saídos para o estrangeiro, que em 1999 (adesão à CEE) se situavam nas centenas de milhar (581 milhões de euros), passaram para os milhões. Em 2017, saíram 5552 milhões de euros. Só entre 2011 e 2015, com o aprofundamento da política de privatizações, designadamente de empresas básicas e estratégicas e apesar de estarmos em profunda recessão, saíram do País em euros e dividendos 20 815 milhões de euros! Este é o brilhante resultado das privatizações. Como já alguém disse – os portugueses passaram a ser empregados do estrangeiro.

À data das nacionalizações, grupos económicos, grandes empresas e bancos estavam tecnicamente falidos.
Com as nacionalizações e com o esforço e a determinação dos trabahadores houve um inegável processo de recuperação destas empresas, de dinamização da economia e prosseguimento de medidas de justiça social. A estratégia da sua privatização teve vários vectores, sendo um deles a nomeação de gestores com esse objectivo, alguns dos quais com ligações a antigos donos e aos novos candidatos. Foi uma época de desmantelamento do trabalho de recuperação que tinha sido feito, de denegrimento das empresas nacionalizadas e de preparação psicológica da opinião pública para o assalto ao Património do Estado. Governantes e gestores das Empresas Públi- cas estiveram juntos no processo das privatizações (5). Como ilustração lembramos a cerimónia em que Ricardo Espírito Santo foi condecorado com a Legião de Honra do governo francês em que assistiram, para além de Mário Soares, familiares e amigos mais chegados, como Manuel Pinho e Henrique Granadeiro, que segundo o relato da imprensa foram até «contagiados pela emoção de Ricardo Salgado, ao recordar que, sem a ajuda de Mário Soares, a família não teria regressado a Portugal e fortalecido a aliança com o parceiro que esteve ao seu lado, nas duas últimas duas décadas, o Crédit Agricole» (6).
Os conluios entre os governos e os candidatos às privatizações, as informações privilegiadas, os acordos por baixo da mesa, foram muitos.
Como é sabido, protagonistas das privatizações estão a contas com a jus- tiça, mas a verdadeira história das privatizações e das suas negociatas está por fazer (7).
(5) A Nacionalização da Banca em Portugal – Nove meses a construir, nove anos a destruir! Carlos Gomes.
(6) O Último Banqueiro, Maria João Babo & Maria João Gago (p. 21). Lembre-se que a nacionaliza- ção da banca a seguir ao golpe de 11 de Março foi celebrada com uma grande manifestação dos trabalha- dores à frente da qual se colocou Mário Soares!!!, que afirmou dias depois em comício e em tom triunfante: «o capitalismo foi ferido de morte». Ver também João Paulo Guerra in Diário Económico, 10/3/2000, no delicioso artigo «Idos de Março: até o CDS está com o MFA». Em 1990, Mário Soares e Cavaco Silva, enquanto Presidentes da República e primeiro-ministro respectivamente, assinaram a Lei Quadro das privatizações em que um dos objectivos indicados era «reforçar a capacidade empresarial nacional». Foi o que se viu.
(7) Sobre as questões de Justiça, Helena Garrido, no jornal Negócios de 14/3/2016, insinuava: «Assunção Cristas é a mais recente aliada de António Costa no combate contra o Banco de Portugal, descobrindo-se que Paulo Portas também o era mas não o tinha dito até aqui. As respostas são fáceis. A realidade é sempre mais complexa que a ficção, especialmente a policial. Não há crime mas há vários e cruzados interesses que se conjugam para fragilizar a acção da supervisão e regulação do sistema financeiro. O primeiro chama-se BES e toda a rede da família Espírito Santo. Não se destrói um pilar da sociedade política, económica e financeira de um país, só porque se resgata o banco onde mais estava exposta a família Espírito Santo. O Grupo Espírito Santo estava (está) por todo o lado na sociedade portuguesa
Num saboroso artigo de opinião no semanário Sol – «Compromisso Portugal»: o nome diz-lhe alguma coisa? – de 27 de Maio de 2017, Filipe Pinhal, número dois de Jardim Gonçalves e sucessor, durante escassos meses, de Paulo Teixeira Pinto no BCP, lembra-nos esse movimento – a nova geração de gestores – lançado a 10 de Fevereiro de 2004, no Beato, prometendo tirar Portugal da cauda da Europa nos «próximos dez anos».
Contrariando as promessas, dez anos depois, em 2014, diz Filipe Pinhal «Portugal não tinha saído da cauda da Europa. Infelizmente estava ainda mais atrasado e a braços com o desmoronamento do BES e da PT, duas tragédias com a impressão digital da gente do Beato, que tinha jurado que o seu grande desígnio era a defesa dos interesses de Portugal e das empresas portuguesas». Azar dos azares, logo a seguir ao termo dos trabalhos, um dos mais activos organizadores vendeu a Somague a capitais espanhóis... A transferência dos centros de decisão para o estrangeiro apenas começava. E iria acelerar por obra e graça dos «comprometidos».
A verdade estava à vista: a «nova geração de ouro» que proclamava «somos os melhores, dêem-nos os lugares no governo e nas empresas e nós salvaremos a Pátria», afinal estava ali para tratar da vidinha. Portugal teria de esperar outros salvadores... e tinham tanta pressa, tanta que, com a sua imparável dinâmica ajudavam a colocar no pipe-line das privatizações as empresas públicas mais valiosas, que acabaram vendidas a estrangeiros.
Caía a máscara aos «patriotas» iguais, acrescentamos nós, aos patriotas do PSI 20 que têm as suas holdings na Holanda e em paraísos fiscais para pagarem menos impostos do que em Portugal.
As privatizações foram feitas com o apoio do aparelho de Estado e da Banca nacionalizada. Como regra as empresas do sector público logo que foram privatizadas passaram a pagar muito menos impostos sobre os lucros (IRC), utilizando as chamadas «engenharias fiscais e contabilísticas», ou «planeamento fiscal», e muitas delas receberam e recebem chorudas subvenções e benefícios fiscais. directa e indirectamente. Os efeitos do seu colapso ainda hoje se fazem sentir e a sua influência não desapareceu no dia do início de Agosto de 2014. O Banco de Portugal tem vários processos a decorrer que uma gestão menos diligente pode condenar ao fracasso sem que se consiga responsabilizar ninguém. Basta que se deixem passar os prazos». Em editorial em 6/10/2009, Helena Garrido que sabia do que estava a falar dizia no jornal Negócios, «para a desgraça da liberdade e da democracia a agenda da justiça parece ser cada vez menos a de fazer justiça e surge cada vez mais aos nossos olhos como sub- metida a objectivos partidários». A título de exemplo o Público de 12/11/2009, titulava: «juízes estranham conhecimento antecipado de Acórdão... Godinho em prisão preventiva, foi escutado a dizer a Vara que ganhou o caso na Relação, quatro dias antes da decisão ser proferida!»

A Caixa Geral de Depósitos, o único banco público nacional, foi gerido pelos governos de direita ao serviço dos grandes grupos económicos, com administrações partidárias representantes desses mesmos interesses.
A Banca depois de privada desempenhou um papel de primeiro plano na acumulação e domínio dos respectivos grupos e jogou sobretudo na especulação financeira, como se viu na chamada crise de 2007/2008. Com a privatização e com a sua entrega ao estrangeiro, a banca no essen- cial deixou de estar ao serviço da economia nacional e do seu desenvolvimento.
Em entrevista ao jornal Expresso (28/07/2018), Pedro Soares Santos, presidente da Jerónimo Martins, confirmou que o seu grupo passou por dificuldades no início dos anos 2000 e foi apoiado pela banca portuguesa e acrescentou que «isso hoje seria impossível porque não há banca portuguesa, acabou. Agora os bancos são todos estrangeiros, vivem de rácios que são decididos fora de Portugal, nada é decidido em Portugal, temos uma CGD intervencionada. Isso é muito difícil para os empresários, não só ao nível do apoio como da relação pessoal».
Pois é! Mas quando se tratou de privatizar todos estiveram de acordo!!!
Acontecimentos posteriores ainda recentes ilustram bem o carácter especulativo da banca e o que afirmámos atrás.
O Banco Espírito Santo, o BPN, o BANIF, a PT, são paradigmáticos. Em 18 de Junho deste ano o jornal Público relatava o caso da Ongoing:
A Ongoing abriu um buraco nas contas do Novo Banco e do BCP próximo dos 700 milhões de euros. Um montante que ultrapassa 3% da riqueza produzida em Portugal em 2017 e que resulta da incapacidade de recuperar os créditos concedidos pelo então Banco Espírito Santo (BES) e pelo BCP à empresa liderada pelos «consultores» Nuno Vasconcelos e Rafael Mora.
Este valor resulta de uma gigantesca exposição das duas instituições financeiras à Ongoing que, no caso do BES (agora Novo Banco), chegou aos 493,5 milhões de euros e, no BCP, aos 292 milhões de euros e que leva a que actualmente, mesmo depois de já terem sido efectuadas penhoras sobre a Ongoing e anulados juros sobre as dívidas, as perdas registadas pelas duas instituições representem cerca de 440 milhões de euros, no caso do Novo Banco e 230 milhões de euros, no caso do BCP, um total de 670 milhões de euros que representam mais de 80% dos empréstimos inicialmente concedidos.
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Os créditos concedidos à Ongoing, uma empresa que está em liqui- dação, mais do que servirem para financiar qualquer actividade económica, foram utilizados para ajudar o BES a controlar a Portugal Telecom (PT) e permitiram abrir a porta do BCP à equipa de gestão chefiada por Carlos Santos Ferreira que vinha da CGD e que integrou dois dos actuais administradores do Novo Banco, António Ramalho e Vítor Fernandes.
A queda do Grupo Espírito Santo no Verão de 2014 tornou evidente que existia um núcleo de empresas e de gestores a circular na órbita do BES, que já não era apenas um banco, mas uma caixa onde todos iam buscar dinheiro.
Enquanto circulou o dinheiro, a Ongoing foi forjando as solidariedades que iam das grandes empresas (por exemplo, PT, EDP, BES, BCP ou CTT) à política, à maçonaria e às secretas. Solidariedades que permitiram a Vasconcelos e Mora (ambos visados actualmente em varias investigações criminais) aparecerem, ainda que num curto espaço e tempo, com o estatuto de símbolos de uma época marcada pela imagem e busca de influência.
Ao colapso da Ongoing seguiram-se os processos de justiça. A dupla Vasconcelos e Mora aparece pela primeira vez no radar do Ministério Público na «Operação Face Oculta», que revela a Ongoing articulada com o grupo alinhado com José Sócrates, para controlar a TVI. Os dois voltam a ser visados em investigação quando aparecem a dinamizar a Loja Mozart 49, da Grande Loja Regular de Portugal e a contratar aos Serviços Secretos Nacionais altos quadros que colocam para espiar os adversários e a defender interesses e negócios. E estão associados a processos criminais pela gestão danosa da PT.
É aos dois amigos, que se tratavam por «meu irmão», cumprimentando-se com um beijo, que se atribui a estratégia de guerra interna que se desencadeou dentro do BCP para afastar o grupo de Jorge Jar- dim Gonçalves e abrir a porta a uma gestão alinhada com o BES.
Um processo que abre a porta, em 2008, à entrada de Carlos San- tos Ferreira, que deixa a CGD com o apoio de José Sócrates, então primeiro-ministro e do então governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio. A saída de Santos Ferreira da CGD é antecedida de várias decisões que se revelaram ruinosas para o banco público.
Num artigo de opinião Susana Peralta também no mesmo jornal, a 28 de Junho deste ano, comentava assim a notícia sobre a Ongoing:
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Muitos dos factos relatados são uma bizarria para qualquer pessoa habituada a uma relação não incestuosa com instituições de crédito. Imagine que vai pedir um empréstimo ao banco para comprar a sua casa e que lhes garante que, caso não possa pagar a prestação, tem outro crédito, junto de outro banco, que utilizará para honrar a sua dívida. Não é preciso ter analistas de risco muito sofisticados para per- ceber que este tipo de garantia não garante nada!
O problema é que a crise que todos pagamos tem origem em histórias como a Ongoing. No artigo «Lições de um colapso financeiro», publicado em 2011, na revista Economic Policy, um grupo de economistas islandeses – incluindo Sigridur Benediksdottir, um dos membros da Comissão Especial de Investigação, nomeada pelo parlamento – discute as condições que leva- ram ao colapso do sistema financeiro do País em 2008. De acordo com os autores, os bancos islandeses foram assaltados (tradução directa da pala- vra utilizada em inglês – loot) a partir do seu interior, com a concessão de crédito «mau» a taxas de juro elevadas e baixas reservas para lhe fazer face. Também falam de empréstimos concedidos a terceiros, cujos proveitos são depois partilhados com os accionistas do banco, através de compra ou troca de activos nos quais estes últimos têm interesses, por valores exage- rados. E mesmo da facilidade de crédito concedido directamente a accionistas, já em 2007, quando os bancos estavam com dificuldades de financiamento.
Recuando uns anos, os autores apontam a própria política de privatiza- ções islandesa como origem do problema: bancos vendidos com base em favoritismos políticos, quadro regulatório alterado para facilitar a expansão do sistema financeiro, apoio tácito das autoridades a uma política sistemática de extração de benefícios privados por parte dos gestores dos bancos, trans- ferindo risco para os contribuintes e depositantes.
A factura paga e que continua a ser paga pelos trabalhadores e reforma- dos é colossal. O insuspeito, para o caso, Vítor Bento afirmou em 8/01/2018 ao Negócios: «Pelas minhas contas, enfim, com a ficção do Fundo de Resolução que dizem que é dos bancos – o que é uma ficção – a solução do BES vai cus- tar à volta dos 10 mil milhões de euros».
Dez mil milhões de euros!
Os casos no sector financeiro que engrossam a factura que estamos a pagar são muitos e não são bonitos e por isso não deixam de suscitar a indig- nação quando os governos nos dizem que não há dinheiro para a saúde, para o ensino e para a melhoria das condições de vida dos portugueses.

Lembremos ainda o «caso do Banco Efisa» em que o governo de Passos Coelho, pela mão de Maria Luís Albuquerque, injectou 90 milhões de euros sendo posteriormente negociado pelo mesmo governo por 38 milhões a uma sociedade com poucos dias de vida e que contava com Miguel Relvas como recém-accionista. João Paulo Correia, deputado do PS, num artigo de opinião no jornal Público de 23/2/2015, escrevia: «Depois do BPN, do BES e do BANIF, a capitalização e venda do Banco Efisa é talvez o caso em que se torna mais difícil distinguir o negócio da negociata»; e em 24 de Março de 2017, no mesmo jornal no artigo «Miguel Relvas, o homem que vendeu o banco Efisa ao mesmo patrão» concluía: «a venda do banco Efisa é um processo muito estranho, que deixa muitas dúvidas, algumas suspeitas e muitas explicações a dar. Pena é que Miguel Relvas tenha recusado vir ao Parlamento. Esperemos que a decisão conjunta do BCE e do Banco de Portugal introduza decência neste processo».
Pudicamente em 3/4/2017 a Parparticipadas SGPS informava a não con- clusão do processo de venda do banco EFISA, informação divulgada através da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). A venda ainda não se efectuou mas tal não só não apaga os prejuízos como não torna este caso edificante.
O que se passou no sistema financeiro passou-se praticamente em todos os sectores. Os transportes e a saúde mereciam, só por si, um capítulo espe- cial. Assim como certas empresas, como o vergonhoso caso dos CTT, com grave prejuízo para as populações e a desertificação do interior do País e a quem se ofereceu um Banco Postal sempre negado a sucessivas administra- ções dos Correios. Foi mais uma «negociata» do governo de Passos Coelho, Portas, Cristas, que de vez em quando, despudoradamente, vertem «lágrimas de crocodilo» pelo estado em que está o interior do País (8).
(8) No jornal Público de 3/11/2018, p. 21, uma notícia lacónica, sobre uma grande empresa, com fotografia de Daniel Proença de Carvalho, informava que o presidente do Conselho de Administração da Cimpor e mais três membros não-executivos portugueses do Conselho iam renunciar aos seus manda- tos na cimenteira. Isto acontece, dizia, depois da «Interciment» ter vendido os seus activos em Portugal e Cabo Verde ao grupo turco OYAK. São os últimos a sair do pequeno «pote de madeira» em que se transformou o antigo porta-aviões português. E acrescentava: muita dívida, muitos negócios desfeitos... naquela que chegou a ser a maior multinacional com sede em Lisboa e rematava com uma lista de nomes que ficam «para a triste mas emblemática história da Cimpor». Todos do bloco central das negociatas. Ver também notícia mais desenvolvida no jornal Expresso económico de 3/11/2018, p. 12. Também o jornal Público de 11/11/2018, noticiava que ex-administrador da CP, que negociou a privatização da CP Carga, foi trabalhar para a empresa que a comprou! Nuno Sanches Osório, ligado ao CDS, teve o pelouro financeiro da ferroviária e participou no processo de privatização... tudo legal, tudo ilegítimo. Outro exemplo reti- rado do livro Os Facilitadores de Gustavo Sampaio, é o facto de José Luís Arnaut, como sócio do escritó- rio de advogados CSM Rui Pena & Arnaut, que tem como cliente a REN, ter ido ocupar o cargo de membro não-executivo do Conselho de Administração. Tudo legal, tudo ilegítimo!
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Vejamos apenas o sector da energia, no quadro das rendas excessivas.
O Professor Abel Mateus, primeiro presidente da Autoridade da Concor- rência, na apresentação «Electricidade: sobre-custos, rendas e concorrência» feita em 11/9/2018, na Comissão Parlamentar de Inquérito às «Rendas exces- sivas», denunciou as pesadas consequências para o País da privatização da EDP e da chamada liberalização de pretensos mercados de energia e a total contradição entre o que foi anunciado na altura e os custos que vieram a ter os consumidores da electricidade.
Sob o título «O monstro que se criou», Abel Mateus afirmou ainda: «As políticas do sector eléctrico entre 1996 e 2011, criaram um dos sistemas de maior sobre-custos pago pelo consumidores e de rendas excessivas da União Europeia, sem paralelo a outro qualquer sector de actividade».
Sobre a criação dos CMEC – Custos para a Manutenção do Equilíbrio Con- tratual – uma deliciosa e choruda compensação paga à EDP pela cessação antecipada de vários contratos de energia –, disse que a Autoridade para a Concorrência colocou várias objecções ao ministro Carlos Tavares (2004), que não foram atendidas, e em 2005 chamou a atenção do ministro Manuel Pinho dos elevados custos daqueles...
Sem sucesso!
Mais à frente, e em jeito de síntese, Abel Mateus perguntava quando se iria reduzir o esforço de subsidiação dos portugueses?
No sector bancário os contribuintes já foram e são chamados a con- tribuir com cerca de 25 mil milhões de euros (M.M.E.).
No sector eléctrico os consumidores já suportaram um sobre-custo de cerca de 23mil milhões de euros(M.M.E.).
Só estes dois sectores já custaram cerca de 30% do rendimento dos portugueses nos últimos anos!
E se juntarmos as PPP rodoviárias temos mais um sobre-custo de cerca de 5 a 7 mil milhões de euros.
Estes sobre-custos tiveram e continuam a ter um impacto considerável na redução da taxa de crescimento potencial do PIB português e na redução do bem estar dos consumidores!
Até quando? É este o desafio que vos deixo. (9)
(9) Estas importantes declarações de Abel Mateus, significativamente, não passaram prati- camente na comunicação social portuguesa, o que só por si revela o peso da publicidade da EDP e o seu poder... Ver artigo «Esclarecedor dos resultados da Privatização da EDP», Agostinhos Lopes, jornal Avante! de 11/10/2018, p. 24.
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Na verdade, quando é que vai acabar esta drenagem de dinheiros públicos para tapar os «buracos» de negociatas à custa dos trabalhadores e do povo?
Sobre as privatizações em geral registem-se ainda as afirmações do também insuspeito, para o caso, Luís Todo Bom, secretário de Estado de Cavaco Silva, num artigo de 1/3/2015 no jornal Negócios – «A tragédia das privatizações».
«O país tem assistido, incrédulo e apreensivo, à perda sistemática do con- trolo nacional e à enorme destruição de valor, de grandes unidades produtivas e financeiras, que foram objecto de privatização»; e acrescentava que o processo de privatizações «permitiu que um pequeno bloco de accionistas privados assumisse integralmente a gestão da empresa, passando a utilizá-la em benefício próprio, sem qualquer preocupação de posicionamento estratégico a longo prazo e sem a oposição do Estado».
«E chegamos à situação actual. Uma tragédia nacional. Sem empresas de referência com capacidade de inovação, de desenvolvimento tecnológico e de afirmação internacional [...]. Os nossos filhos mais promissores terão de emigrar, não por falta de emprego, mas por ausência de empresas onde aprendam e cresçam profissionalmente, como nós tivemos». E depois conclui com contrição moralizadora: «Teremos de viver com este peso nas nossas consciências».
Mas, teremos quem? A arraia miúda? É caso para dizer que bem escreve o Frei Tomás Todo Bom, o gestor que conduziu a privatização da PT sob a batuta de Ferreira do Amaral, o gestor da PT que abandonou a empresa em fins de 2014, quando esta tinha perdido cerca de 75% do seu valor em Bolsa, depois da «negociata ruinosa da OI»! Todos teremos que viver com esse peso, ou a corte dos responsáveis, dos bem-pensantes, das elites e dos oportunistas do Bloco Central das negociatas que esteve à frente do País desde 1977 e depois da Revi- são Constitucional de 1989, que suprimiu a irreversibilidade das nacionalizações? Foi o tempo de encher os bolsos à tripa-forra, foi o tempo em que o «socia- lista» José Penedos, então secretário de Estado do governo PS, dizia à revista Visão que por cada empresa queprivatizava abria uma garrafa de champanhe!(10)
Mas não foi o único membro de um governo a querer mostrar aos senhores do dinheiro, aos dominantes, o seu fervor pelas privatizações, vários foram os socialistas que se vangloriaram terem sido grandes obreiros das privati-
(10) Ver artigo bem humorado de Vítor Dias, no jornal Avante! de 22/8/96, «O PS e o champanhe»: Com efeito, logo ao lado de uma notícia elucidativamente intitulada «Lisnave = a taluda dos Mellos», onde nos era relatado que «...o governo prepara-se para resolver as dificuldades de José Manuel de Mello na Lisnave através de “um investimento público que pode atingir 30 milhões de contos”, o sr. José Penedos declarava, nem mais nem menos que “por cada empresa que privatizo abro uma garrafa de champanhe“!».
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zações. Entre estes citamos Teixeira dos Santos, ex-ministro das Finanças de Sócrates e actual presidente executivo do Banco BIC, que numa iniciativa denominada «conversas com sucesso» declarou: «as privatizações entre 1989 e 2015 renderam cerca de 58 mil milhões de euros! Sou responsável por cerca de 40% dessas receitas» (11).
Tudo o que se passou depois das privatizações e da chamada crise finan- ceira de 2007/2008 põe em evidência:
1. O mito de gestão privada e da sua superioridade em relação a uma gestão pública ao serviço do interesse nacional.
2. O mito de certos gestores apresentados como figuras de excepção e glorificados por certa comunicação social, ela própria dependente da publicidade decidida directa ou indirectamente por esses mesmos gestores. Grandes empresas como a EDP, PT... é que deram e dão o nome e a fama a ditos gestores e não o contrário.
3. O desastre das privatizações e designadamente da banca (12).
4. A importância e utilidade de importantes empresas públicas para a concretização de uma estratégia de desenvolvimento e de defesa da soberania e independência nacionais.
Mas põe em evidência também que se a existência de forte e significativo Sector Empresarial do Estado é condição necessária para uma política nacional de desenvolvimento, ele não é suficiente pois é dependente da natureza do poder político. Aliás este, durante a crise financeira, não hesitou em nacionalizar empresas falidas para depois as privatizar (nacionalizar prejuízos para depois privatizar os lucros). É o Estado ao serviço da acumulação capitalista – centralização e concentração de capitais – que também se verifica nas PPP e na política fiscal e orçamental.
A União Europeia, a Comissão e o Banco Central Europeu desempenharam também um papel extremamente negativo, designadamente na liquidação e entrega ao estrangeiro do sector financeiro.
  1. (11)  Ver «Que grande lata» Agostinho Lopes, em AbrilAbril – o outro lado da notícia – 18/9/2016.
  2. (12)  Nicolau Santos no jornal Expresso de 1/12/2013 fazia o seguinte inventário referindo-se à
venda de empresas que «são centros de decisão, ou centros de competência, ou centros de coesão ter- ritorial [...]. A compra da EDP pelos chineses da Chinathree Gorges e da REN pela State Grid, não desceu os preços da electricidade. A compra da Cimpor pelos brasileiros da Camargo Côrrea Intercement, levou o centro de decisão para fora do País. A compra da ANA pelos franceses da Vinci não diminuiu as taxas aeroportuárias, pelo contrário, aumentou-as!»
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Sobre esta questão deixamos aqui duas opiniões significativas por virem de quem vêm.
«Na crise houve um tratamento discriminatório por parte da Europa [...] para com Portugal»; «a história do BPI, agora controlado na totalidade por um banco espanhol, não deixa de ser penosa»; «ter uma percentagem excessiva de bancos espanhóis é mau para a economia portuguesa».
Pedro Rebelo de Sousa – Público, 13 de Agosto de 2018. Mas quem diz isto é o mesmo que já defendeu a privatização da Caixa Geral de Depósitos.
Também Rui Rio num artigo de 4 de Abril de 2017, no Diário de Notícias afirmou:
o Banif tem particularidades próprias que não podem deixar de nos preocupar no que concerne ao funcionamento da União Europeia des- tes nossos dias. [...]
A convicção generalizada é a de que – aproveitando uma prolon- gada inacção política e a ausência de uma firme defesa do interesse nacional – a União Europeia impõe, de forma inaceitável, uma dispen- diosa entrega do Banif a um interessado no concreto. Fê-lo com humi- lhante recurso à intervenção permanente de burocratas sem rosto público e condicionando qualquer escolha alternativa, ou seja, inviabi- lizando uma transparente consulta ao mercado. Fê-lo, ao que se sabe, com o argumento de que capitalizar com dinheiro público o pequeno Banif, ou integrá-lo na CGD, significava uma insustentável agressão à concorrência europeia no sector, mas que oferecê-lo a um dos gigantes do mercado europeu, embrulhado em avultadas verbas dos contribuin- tes portugueses, é coisa que para a Direcção Geral da Concorrência em nada fere as leis... da concorrência. [...]
A presente reconfiguração do nosso sistema bancário está a viver a sua recta final com a capitalização da CGD e a venda do Novo Banco, ficando, aparentemente, apenas a faltar a estabilização definitiva do Mon- tepio. Não bastando o que sucedeu ao Banif, voltamos agora a sentir uma intervenção da burocracia europeia para lá do razoável e de muito difícil compreensão. Por que razão de interesse público tem a CGD de emitir títulos nas características tais que obrigam ao pagamento de taxas de juro (aos denominados investidores institucionais) altamente penaliza- dores para a sua própria recuperação? E qual a vantagem de o Estado em ser um accionista do Novo Banco, e não poder sequer utilizar a sua participação minoritária na justa proporção do dinheiro que lá tem?
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Esta longa citação, dado de quem se trata, evidencia a intervenção da UE, contrária aos interesses nacionais, mas também as ilusões que o autor deste texto tem sobre a integração europeia e as consequências para o nosso País.
Ainda não se deu conta de que as principais políticas económicas são decididas por autoridades administrativas da União Europeia fora do conrolo e do escrutínio dos povos e dos seus representantes. Ainda não se deu conta da questão chave da democracia na UE: com a sua opacidade, com uns mais iguais que outros – «a França é a França, dizia Junker»; com um Eurogrupo que até expulsou um dos seus membros; com o todo poderoso BCE, órgão não eleito a impor decisões e a condicionar governos; com tal ou tal comissário a fazer pressão política quando os governos não são da cor; com os Estados nas mãos dos mercados e das agências de rating, cor- reias de transmissão do capital financeiro, dos bancos centrais e dos EUA. Ainda não se deu conta da vacuidade dos grandes princípios da «solidariedade», do «nivelamento por cima» nas prestações sociais e salários, da «coe- são económica e social». Ainda não se deu conta do seu funcionamento cada vez mais oligárquico, com a sua parasitocracia não eleita. Como sublinha Ricardo Cabral (Público 8/10/2018), as alterações da política económica na UE têm sido no essencial a reforçar o colete de forças e de regras em que se encontram as economias periféricas, como a portuguesa, regras não isen- tas em que a «competição entre países membros e empresas se ganham nos detalhes de secretaria» e acrescentava: «a regra que limita o cresci- mento nominal da despesa pública obriga, na prática, no mínimo, ao con- gelamento, se não à redução, em termos nominais da despesa pública com pessoal e com pensões. O que obriga na prática à continuação do “empobrecimento”». Depois há que não esquecer que as «ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães», como afirmou em entrevista ao Público de 11/03/2014, Philippe Legrain, que foi conselheiro de Durão Barroso.
Que futuro para um País dependente e endividado
Com a maioria da banca e de importantes empresas estratégicas nas mãos do estrangeiro, com uma elevadíssima dívida pública e privada e com a moeda (euro) desadequada à economia portuguesa, ao grau de desenvolvimento e à sua estrutura, o futuro do nosso País não se apresenta nem fácil nem promissor.
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
E muito menos perante uma nova «crise do euro», ou da subida signifi- cativa dos combustíveis, ou de uma nova «crise financeira». Basílio Horta, ex-presidente da AICEP, declarava ao Expresso de 11 de Agosto de 2018: «se houver uma crise como a anterior apanhamos em cheio!» Pois. Mas não é ver- dade que a actual situação do País e as suas fragilidades se deve à política de privatizações e de enfeudamento à UE e às políticas «neoliberais» levadas à prática pelo PS e pelo PSD com ou sem o CDS? A concentração da riqueza, a acentuação das desigualdades, o envelhecimento da população, a emigra- ção e a desertificação do interior mostram as consequências de uma política. A política do «Deus mercado», da «mão invisível», a economia imaginária dos modelos baseados no individualismo metodológico (13)...
Agora há o receio de uma nova crise como a de 2007/2008, que nos apa- nhará ainda mais fragilizados e fortemente endividados. Muitos são os eco- nomistas, mesmo, os defensores do sistema, que prevêem uma nova crise.
Muitos deles pensaram que o capitalismo tinha ultrapassado as crises e as suas taras. Era a posição do Banco de Portugal e, por exemplo, de Vítor Cons- tâncio, que inclusivamente defendia a venda de ouro, pois este na ausência de crises deixava de ser rentável e valor refúgio (14). Perante a sua repetição em períodos relativamente curtos procuram agora minimizar a importância e as consequências negativas destas para milhões de seres humanos; procuram dar a ideia que são uma coisa natural como se não estivessem ligados à sobre- -acumulação e sobre-produção, à especulação, às fantásticas montanhas de dívidas, às políticas dos bancos centrais, a «economia de casino».
(13) L’Economie du reel face aux modéles trompeurs. David Cayla. Há quem ainda acredite no Homo economicus, como há quem acredite no Pai Natal. No entanto ele é central na maioria das análises da ortodoxia neoliberal. Ver também Dani Rodrik, 2017, Peut’on faire confiance aux economistes?
(14) Em resposta ao requerimento na Assembleia da República feito pelo PCP (Requerimento n.o 1433/X/(1.o) – AC de 8/2/2006, o Ministro das Finanças afirmava: «... a venda de uma parte das reser- vas de ouro do Banco Central iniciou-se em 2002, na sequência da realização de operações de derivados contratados em 1997 e 1998 [...] há muito tempo que o ouro deixou de desempenhar qualquer função monetária e, em particular, não o tem num país que está inserido numa União Monetária e que deixou de ter moeda própria». Eram as ilusões de uma UE sem crises. Venderam o ouro quando este estava com cotações relativamente baixas e não o fizeram quando este atingiu elevadíssimos valores no auge da crise para depois o reporem com as cotações favoráveis. A gestão do ouro é outro capítulo muito pouco abonatório para o Banco de Portugal e muito pouco transparente.
Recorde-se, por exemplo, o caso de aplicação de 17 toneladas de ouro na Drexel Lambert, em que o seu dono Michel Milken, especulador, tipo D. Branca, prometia «mundos e fundos», era então primei- ro-ministro Cavaco Silva e governador do Banco de Portugal Tavares Moreira. A Drexel faliu e Portugal só recuperou uma parte irrisória dessas toneladas de ouro. JN de 13/10/2008, Mário Crespo – Banking... falência da Drexel – (RTP arquivos; Banco de Portugal explicita a situação do ouro aplicado na Drexel – arquivos da RTP.pt/conteúdos/Banco de Portugal).
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Carlos Carvalhas Privatizações – Vigarices
Recuperou-se a tese da «destruição criativa». Passou-se da negação das crises do sistema para a fase em que se procura antecipar a sua eclo- são com precisão sabendo-se das loas que foram tecidas a tal ou tal eco- nomista que, diz-se, previu a crise de 2007/2008!!! São os que não querem ser confrontados amanhã com a pergunta de Isabel II, durante uma visita à London School of Economics: «Porque ninguém foi capaz de prever a crise?» São os que já depois da crise ter rebentado em 2007, afirmavam que esta era uma «pequena correcção» e ainda aumentaram as taxas de juro como fez o sr. Trichet no BCE (15).
Pode-se sublinhar que os factores que determinam as últimas crises estão em marcha, que as montanhas de dívidas são muitas vezes superiores ao PIB mundial e que num período não muito longo a probabilidade da crise eclodir é elevada, mas não se pode prever com precisão de dias, semanas, meses (16). No entanto, quando ela se desencadear não faltarão as pseudo-explicações e desta vez as afirmações do tipo «eu bem alertei que estavam reunidas todas as condições para a tempestade perfeita»!!!
Citamos a título de exemplo o artigo de Carlos Tavares, então presidente da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários (CMVM): «encontramos hoje situações preocupantemente paralelas às que precederam 2007/2008», e aponta «o comportamento dos preços de vários activos financeiros e reais, de excesso de endividamento dos agentes, a tomada de riscos excessivos» e a sobrevivência de «partes substanciais dos mercados com défices de trans- parência»; agora, porém, e ao contrário de 2008, um factor é bem mais grave: nem os bancos centrais, nem os países têm armas (17).
Mas os que escreveram isto são os mesmos que continuam a defender o sistema, o neoliberalismo, a União Europeia do directório das grandes potên- cias, chamado pudicamente de motor franco-alemão, o euro ao serviço da Alemanha e... a santíssima banca privada!
(15) Jean-Michel Naulot, que foi banqueiro durante 37 anos e membro do Collége de L’Autorité des Marchés Financiéres (AMF) numa entrevista ao Blog L’Arène Nue, em 15/10/2018, afirmava: «Devo dizer que em 40 anos de banca nunca vi um período como aquele que estamos a viver actualmente! Desde há alguns meses todo o mundo prevê uma grave crise financeira, mesmo antigos governadores de bancos centrais, como Jacques Larrosière e Jean Claude Trichet, mesmo o FMI... Mas os mercados con- tinuam a dançar...» Ver também Jacques Attali, Comment nous protéger des prochaines crises, Fayard.
(16) O Banco de Inglaterra explica a instabilidade do sistema com complexas formulas matemá- ticas – a cada um os seus gostos, como já alguém disse – Working Paper 529 – Banks are not intermedia- ries of loanable funds.
(17) Working Paper. CMVM n.o 3/2016.
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Os desequilíbrios continuam a acentuar-se. O Target2, um dos maiores sistemas de pagamento do mundo que permite a liquidação dos pagamen- tos, assente numa plataforma única em que cada banco central é responsável pelas instituições participantes, dá-nos uma ideia clara dos fantásticos dese- quilíbrios na UE.
Ora, o Target2 mostra-nos a transferência em grande escala do Bundes- bank essencialmente para a Itália, Espanha, mas praticamente para quase todos os Países da União Europeia e, pasme-se, até empresta dinheiro ao BCE.
Será por isso temerário prever-se que mais cedo ou mais tarde isto vai estilhaçar? Mas continua a negar-se a realidade até à próxima «crise do euro», da UE ou de todo o sistema.
A mesma política monetária para todos os tão diferentes países da UE é uma aberração (18). Esta realidade conjugada com a situação política na Áus- tria, Hungria, Polónia e Itália e com a dita crise dos refugiados, com a situação crítica de importantes bancos a começar pelo Deutsch Bank, com o Brexit, a subalternização cada vez maior da França e o agravamento das desigualdades e da situação social, mostra-nos que um processo de «desconstrução euro- peia» poderá ter começado.
Na «esquerda» bem-pensante considera-se que esta «Europa» neoliberal é má e o «euro» uma moeda que cria sérias dificuldades ao nosso comércio externo e que nos deixa nas mãos dos ditos mercados, do BCE e das empre- sas de rating. Mas não querem contestar e afrontar este estado de coisas. Preferem, como já alguém disse, esperar que elas mudem, que a União Euro- peia se torne boa, como se pedissem a um círculo que se transformasse em quadrado.
Quando terão os socialistas portugueses e os europeístas mais devotos consciência de que com esta UE Portugal não tem futuro.
(18) A crise bancária em Portugal, Tiago Cardão Pito e Diogo Baptista. «Se pode ser provado que houve uma crise bancária portuguesa, essa crise tem de ser relacionada com a adopção da moeda única europeia, em 1999.»
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