Arrufos não iludem o objectivo: consolidar o pilar europeu da NATO
João Pimenta Lopes
Nos anos recentes, particularmente deste a tomada de posse da administração Trump, tornou-se recorrente o aparecimento de episódios altamente mediatizados que procuram alimentar a ideia de uma aparente confrontação entre a União Europeia e os Estados Unidos da América e o seu instrumento de domínio geoestratégico mundial, a NATO.
Um dos mais recentes episódios data de 7 de Novembro de 2019, em que Emmanuel Macron, numa entrevista ao The Economist (1), fez uma sonante declaração afirmando que a NATO estava em «morte cerebral». Fosse esta parangona o resumo da entrevista e poderiam os mais incautos iludir-se com a ideia de uma suposta afronta e questionamento a este bloco político-militar. No dia seguinte, a 8 de Novembro, o então aspirante, agora indigitado Vice-Presidente/Alto Representante (VP/AR) da Comissão Europeia, Josep Borrell, em entrevista ao Le Monde (2), antecipava as mediáticas ondas de choque a tal entrevista, desde Pompeo a Merkel. Nessa entrevista sugeria que a entrevista de Macron fosse lida na íntegra, não reduzida àquela expressão e entendida como um apelo à necessidade de que a «Europa», leia-se União Europeia, prossiga com determinação o caminho de desenvolvimento da sua capacidade de defesa e intervenção em conflitos.
As declarações de Macron foram relatadas como surpreendentes face à proximidade com a cimeira da NATO, que teve lugar em Londres nos dias 3 e 4 de Dezembro passado e que marcou os 70 anos da organização, onde também foram noticiados pretensos arrufos no encontro entre Macron e Trump que teve lugar à margem da cimeira. Arrufos entre tartufos que não impediram a convergência no aprofundamento dos objectivos daquela organização. De acordo com a conferência de imprensa que anunciou os resultados da cimeira (3), o investimento em defesa subiu pelo quinto ano consecutivo, com os países europeus e o Canadá a contribuírem com mais 130 mil milhões de dólares e assumindo o compromisso de fazer subir esse montante até 400 mil milhões de dólares anuais até 2024. Recordemos que, de acordo com os dados da NATO da evolução da despesa com defesa no período de 2012-2019 (4), os países europeus e Canadá têm uma estimativa de aumento de despesas militares, no ano de 2019, de 299 mil milhões de dólares, com Portugal a contribuir com 2,93 mil milhões. Portugal é um dos países que não cumpre o critério dos 2% do PIB em investimento em defesa, mas os dados demonstram uma tendência de subida, com o Governo português a assumir o compromisso de fazer aumentar o valor para 1,66% em 2024, podendo atingir os 1,98% com recurso a fundos do próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP) (5). No mesmo dia da propalada entrevista do presidente francês, a Alemanha anunciava a intenção de atingir o compromisso dos 2% até 2031 (6). Já a França, não obstante os arrufos do seu presidente, prevê atingir aquela meta até 2025, assumindo o alinhamento com a estratégia da NATO (7). Na mesma cimeira foi anunciado o aumento da capacidade militar em prontidão de resposta, bem como o espaço como quinto domínio operacional da NATO, a par da terra, ar, mares e ciberespaço. A propósito deste último domínio merece destaque a referência à necessidade de assegurar a segurança das infraestruturas de telecomunicações, inclusive da rede 5G – não por acaso, um dia após a cimeira, Michael Pompeo aproveitou a sua indesejada passagem por Lisboa para mais uma insolente ingerência nos assuntos internos de Portugal procurando arrastar o nosso país para a guerra tecnológica dos EUA com a China.
As declarações de Macron e outros episódios não devem ser interpretados de forma ligeira como uma suposta crise do bloco político-militar. São antes parte das contradições do capitalismo, expressão do conflito de interesses das partes envolvidas (8). Mas servem simultaneamente a legitimação ante os povos, quer do caminho de militarização da UE, quer da afirmação desta como pilar europeu da NATO, consolidando as suas capacidades militares, rumo à criação de um exército europeu. A análise de elementos concretos contraria a primeira tese e sustenta a segunda.
A 20 de Junho de 2019, menos de um mês após as eleições para o Parlamento Europeu, era aprovada no Conselho Europeu, sem a discordância de qualquer Estado-membro, a «Nova Agenda Estratégica para 2019-2024» (9). Discorrendo em quatro grandes prioridades, a estratégia é clara quanto ao rumo que os Estados-membro acordaram em matéria de segurança e defesa. Afirma-se a necessidade de «preservar a integridade do nosso território» controlando as fronteiras, de desenvolver e aprofundar a «luta contra o terrorismo e a criminalidade transfronteiras», «aumentar a sua capacidade [da UE] de agir autonomamente para salvaguardar os seus interesses», garantir uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) mais «reactivas e mais activas» e melhor articuladas com a política externa da UE, ou a necessidade de «assumir uma maior responsabilidade pela sua própria segurança e defesa, em particular através do reforço do investimento na defesa, do desenvolvimento de capacidades e da prontidão operacional», cooperando «estreitamente com a NATO».
Meros três dias antes da apresentação desta estratégia, a então VP/AR da Comissão Europeia, Federica Mogherini, apresentava ao Conselho o relatório «A Estratégia Global da União Europeia – após três anos, olhar em frente» (10). Aludindo aos resultados da dita estratégia, a mensagem é clara: foram dados passos determinantes na criação da União Europeia da Segurança e Defesa e esse caminho deve prosseguir. A União Europeia, afirma-se, coopera mais do que nunca com os seus parceiros, nomeadamente a NATO, e fica o alerta: «Os nossos parceiros sabem que a força da Europa não reside apenas no nosso poder brando [soft power]». Um alerta para transitar à acção, perfeitamente integrado nas declarações proferidas também a 8 de Novembro, no rescaldo da entrevista ao presidente francês, pela então indigitada Presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, que afirmava que a «Europa» deve aprender a linguagem do poder já que o poder «brando» deixará de ser suficiente para uma UE que se quer afirmar no mundo (11). Afirmação que não causa surpresa. Na sua alocução ao Parlamento Europeu a 16 de Julho (12), afirmava que «o pilar da nossa defesa colectiva será sempre a NATO. Permaneceremos transatlânticos e temos que nos tornar mais Europeus. Por isto criámos a União da Defesa Europeia».