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16 de janeiro de 2020

A financeirização do ambiente e tudo à volta

Notas sobre o programa do governo minoritário do PS na área ambiental

Vladimiro Vale
Membro da Comissão Política do Comité Central do PCP


As medidas em torno do programa do Governo do PS na área do ambiente, para lá da propaganda, resultam de opções estruturais que pretendem afirmar mecanismos que se destinam a garantir a acumulação da riqueza mascarados de preocupações ambientalistas.
Logo à cabeça o programa do Governo PS aposta nos chamados instrumentos de mercado na área ambiental. As licenças de emissão de CO2 são apelidadas de «instrumento principal», passando por cima da evidência de que estes mecanismos já demonstraram que não resolvem o problema, tiveram efeitos contrários aos anunciados no plano da UE e apenas criam mecanismos especulativos desenhados para acumular dinheiro nas mãos dos grupos que têm responsabilidades na degradação ambiental. 
O Governo reafirma aquilo que os centros do capital chamam de Fiscalidade Verde que, como sabemos, o adjectivo verde esconde a penalização das camadas laboriosas, passando o ónus da degradação ambiental do modo de produção capitalista para todos e cada um dos trabalhadores e para os seus comportamentos individuais. A financeirização do ambiente encontra ainda expressão na aposta na «transformação da Instituição Financeira de Desenvolvimento SA num Banco Verde» e na criação de «produtos financeiros», nas palavras do Governo «atractivos a cidadãos para a aplicação das suas poupanças» e também as Obrigações Verdes (Green Bonds). Ou seja, claramente aposta na financeirização do ambiente, querendo aplicar o capitalismo à Natureza, apresentando-o como sistema natural e expondo as políticas ambientais e a sociedade aos mecanismos que têm conduzido a bolhas especulativas e a crises financeiras que têm resultado em efeitos nefastos do ponto de vista económico e social.
Este tipo de medidas encaixam nas pretensões expressas pelo FMI no sentido da «precificação do carbono, ou seja, cobrar pelo conteúdo de carbono dos combustíveis fósseis ou de suas emissões» afirmando que «um preço consideravelmente inferior a US$35 por tonelada seria suficiente para cumprir os compromissos dos países do G20», ou seja, avançam com o que será o próximo passo após a criação dos mecanismos especulativos – intervir no mercado (tão neoliberais que são!) para garantir os lucros aos capitalistas.
Escondendo que estes mecanismos não funcionam, que visam apenas a obtenção de lucro, a acumulação de riqueza e o aprofundamento das desigualdades, os centros de decisão do capital na União Europeia investem na apropriação e mercantilização das funções e processos da Natureza, atribuindo ao que chamam os serviços dos ecossistemas ou serviços ambientais um preço e colocando-os no mercado. Apesar de a experiência europeia de transacção de quotas de carbono ter demonstrado a sua ineficácia e a perversidade dos seus instrumentos, a insistência é muita na implementação destes sistemas.
No sítio da internet do FMI podemos encontrar exemplos destes objectivos do capital. Num artigo recentemente publicado, o FMI propõe resolver o problema da diminuição da população de baleias atribuindo um valor monetário pelo seu «serviço» de sequestro de carbono, atendendo ao preço do carbono no mercado. Estimam em 1 trilião de dólares o preço dos serviços das baleias. O artigo segue formulando perguntas de como deveria esse preço ser distribuído por países, indivíduos e negócios. Ou seja, o preço das baleias ficaria sujeito às flutuações do mercado e estão a arranjar a devida fundamentação para se apoderarem destes «serviços» e cobrarem por eles.
No campo dos resíduos, o programa do Governo avança com o princípio (dito em inglês para credibilizar e amenizar as consequências) «Pay as you throw» «pagas se deitas fora» –, ou seja, a aplicação do princípio do poluidor pagador que significa que, quem tem dinheiro pode «deitar fora«, ou seja, quem será penalizado, em primeira análise, serão as populações que ficarão com o ónus da degradação ambiental.
No texto do Governo são variadíssimas referências à educação ambiental mas sempre da perspectiva do consumidor, ou seja, vincando esta intenção de ilibar o modo de produção capitalista do seu papel de destruição ambiental e passar o ónus ao indivíduo. Refere a criação de módulos escolares que assentam também nestas mudanças comportamentais individuais. Ou seja torcem-nos desde pequeninos… para nos convencerem de que os problemas ambientais estão acima da sociedade e das classes, e por isso o capitalismo não é responsável pelo seu aparecimento. Portanto o programa do Governo PS segue uma linha que pretende resolver os problemas ambientais exclusivamente com a mecanismos financeiros e especulativos, com a taxação dos comportamentos individuais a mercados ditos verdes e consumo também dito verde, que para além de não resolverem os problemas têm efeitos contrários aos enunciados. 
No programa é reafirmada a intenção de avançar dos chamados projectos de cogestão das áreas protegidas. Projectos que pretendem avançar com a desresponsabilização do Estado, também na área do ambiente, significarão um incentivo à privatização de importantes áreas com vista à mercantilização da Natureza e dos recursos naturais. Afastando a gestão das áreas protegidas daquilo que é a proposta do PCP, de que a cada Área Protegida de âmbito nacional deve corresponder uma unidade orgânica de direcção intermédia da administração central, dotada dos meios humanos e técnicos, com um director.
O chamado «Projecto Piloto para a Gestão Colaborativa do Parque Natural do Tejo Internacional« insere-se nesta linha. Assinado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), pelos municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão, o Instituto Politécnico de Castelo Branco (IPCB), pela Associação Empresarial da Beira Baixa (AEBB) e pela Quercus o protocolo prevê, por exemplo, a identificação no «quadro de colaboradores» dos diferentes signatários «elementos que contribuam» para «concretização de missões específicas», ou seja, uma maneira de cortar nos meios materiais e humanos do ICNF para a gestão destas áreas.
Apesar de referir medidas no âmbito de aumento de garantias de produtos, na possibilidade de reparação e substituição de peças, está longe de aprofundar a questão colocada pelo projecto do PCP contra a obsolescência programada.
Falam da criação do Cluster do Lítio mas, como é óbvio, nada dizem sobre medidas que recuperem o controlo público sobre a prospecção e exploração de recursos geológicos e minerais, assim como para o desenvolvimento das capacidades técnicas e científicas neste sector, fugindo à evidência que a prospecção e exploração por empresas privadas e grupos económicos multinacionais não garantem a salvaguarda dos interesses do país, do ponto de vista económico, social e ambiental.
O programa do Governo aponta ainda a criação de incentivos económicos ao sequestro do carbono. Ora isto pode permitir, por exemplo, atribuição de incentivos económicos aos grupos da pasta de papel pelo captura de CO2 feita pelas monoculturas de eucalipto.
O anúncio do fecho das centrais a carvão, apesar do tratamento mediático, não esclareceu as previsíveis consequências em termos de soberania energética, nem avançou com explicações sobre as consequências no sistema electroprodutor nacional, por absurdo (ou não) sem estes esclarecimentos este encerramento pode conduzir ao aumento da importação de energia gerada em centrais a carvão de outros países europeus. Nem tão pouco avança com a avaliação do impacto ambiental que significará o desmantelamento dos equipamentos instalados, nem muito menos com as consequências para os trabalhadores afectados.
Assim o programa do Governo insere-se numa linha de mercantilização da Natureza que tende a penalizar os trabalhadores e o povo, desresponsabilizando o modo de produção capitalista.
Numa perspectiva patriótica e de esquerda é fundamental que, face aos problemas ambientais criados pelo modo de produção capitalista, não se legitimem mecanismos de mercantilização da Natureza, não se apaguem as responsabilidades do capitalismo na degradação da Natureza, não se transferiram custos para as camadas empobrecidas e para os povos do mundo.
Temos afirmado que Portugal precisa de uma viragem na política ambiental. Uma política ambiental visando a preservação do equilíbrio da natureza e dos seus sistemas ecológicos, que respeite o «princípio da precaução» face a novas ameaças e problemas, contribuindo para prevenir os efeitos das alterações climáticas, e que garanta a democratização do seu acesso e usufruto da natureza, combatendo a mercantilização do ambiente e a sua instrumentalização ideológica e política pelo grande capital. O programa do Governo não garante essa viragem, pelo que é fundamental a luta por uma política patriótica e de esquerda também na área ambiental. 
Política patriótica e de esquerda que passa pela luta contra a mercantilização da Natureza, de exigência de reforço dos meios do Estado para desenvolver uma verdadeira política de defesa do equilíbrio da Natureza. É necessário diminuir a dependência dos combustíveis fósseis com a promoção de alternativas energéticas de domínio público. Promover o transporte público em detrimento de soluções que apontam para manter o paradigma do transporte individual. Reduzir emissões com um normativo específico, e não com atribuição de licenças transaccionáveis que potenciam a especulação e não resolvem o problema. Combater a pressão para a mercantilização da água e a desresponsabilização do Estado na defesa da Natureza e do ambiente. Defender a produção local, contrariando a liberalização do comércio mundial e defendendo que a luta pelo equilíbrio ambiental tem de estar sempre associada à luta pela Paz. A guerra, o militarismo e a indústria do armamento são dos fenómenos mais poluentes no nosso mundo.

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