Linha de separação


8 de junho de 2018

ONOMATOPEIA

Agostinho Lopes
Como é fácil pôr uma venda nos olhos, para não ver.Difícil mesmo é ir à
raiz dos problemas.
São estonteantes as circunvoluções, os volteios e rodeios, com que se
pretende explicar a situação política em Itália, o Brexit, a eleição de
Trump, e tutti quanti apareça que bata de frente com as certezas
axiomáticas do neoliberalismo e do fim da história, com o capitalismo,
doxa para uns, santo graal para outros!
São os populismos. É a subida da extrema-direita, dos (neo)fascismos. São
as derrocadas da social-democracia e dos seus partidos. É a
desadequação, não aggiornamento dos partidos tradicionais. É a
«maluqueira» do Trump. São (novamente) os russos (parece que sem
«comunismo») e às vezes os chineses. É esta coisa esquisita de que os
Estados, as grandes potências, da «Civilização Ocidental», santos
sepulcros da democracia, observadores natos e NATO da legitimidade das
eleições nos países atrasados e suspeitos de infidelidades democráticas,
terem agora as suas próprias eleições perturbadas, violadas, decididas
pelos russos, via o instrumental de poderosas multinacionais nascidas e
mantidas nos EUA! Escândalo! Foi assim que terá acontecido o Brexit, a
eleição do Trump, as perdas da democracia cristã de Merkel, o tufão do
Macron, varrendo PSF e a direita gaullista, de Chirac e Sarkozy, e etc.. É a
globalização. São as novas tecnologias. É pau, é pedra, são as águas (sujas)
da crise do capitalismo, atrapalhando o caminho…
Navegar na crista da onda, navegar à vista da costa dá jeito, mas pode não
permitir sondar os leixões ou enxergar o icebergue.
Repare-se onde isto chegou. Depois de décadas de Consenso de
Washington, de que a liberalização do comércio mundial era um pilar; da
difícil imposição da OMC, que era a salvação dos aflitos, dos ricos e dos
pobres; da inscrição desse santo princípio do livre mercado e pura
concorrência nos Tratados da UE, que nenhuma soberania devia afrontar;
do massacre imperialista dos acordos de livre comércio, até convencendo
quem não devia ser convencido, eis que da pioneira e primeiro violino do
comércio livre surge esta coisa inominável a pôr em causa o santo

princípio: taxas aduaneiras e quotas e diferenciações de países, este sim e
aquele não! Blasfémia! Este mundo está perdido.
E quando tudo parecia estar a ser resolvido na UE e na Zona Euro, Brexit
quase digerido, com ingleses fora, muito cá por dentro; depois da digestão
difícil da Grécia; de Portugal com uma estranha governança, suportada
por radicais de esquerda; ultrapassada a histérica da Le Pen por um fiel
europeísta; vencidas (mas não convencidas com mais uma cambalhota
social-democrata e subida ao céu da extrema-direita) as eleições alemãs;
os refugiados entregues aos turcos e uma rasteira animação económica,
os italianos resolvem estragar tudo (e os espanhóis também a causar
alguma «instabilidade», que é coisa de que os mercados não gostam). É
pá, os italianos a estragar tudo. É certo que há umas complicaçõesitas lá
para leste, Hungria, Polónia, Áustria, etc., mas é tudo gente amiga da UE.
Mas agora esta dos italianos darem a maioria a italianos que estão contra
o euro e a Europa, não lembra ao diabo! Até querem descontos na dívida
ao BCE, calcule-se. Logo depois de termos tido tanta fé naquele jovem
Renzi, que era do Partido Democrático, mas moderno, amigo da Europa,
ideias arejadas. Mas teve a infeliz ideia de fazer um referendo, que é a
pior coisa que se pode fazer na UE, pois como diz o nosso Presidente
Juncker, os votos nada podem contra as regras europeias… ou contra os
mercados, como diz outro, o Comissário europeu do Orçamento, o alemão
Gunther Oettinger: «Os mercados vão ensinar a Itália a votar
correctamente» (1). Aliás, é obrigatório, consta da tradição comunitária,
repetir as votações até acertar os votos com o que eles dizem ser a
Europa. Isto está mesmo complicado.
Em Portugal, soam agora os sinos da velha Roma. Um desespero
lancinante percorre a comunicação social. O desatino é total. Nada era
como imaginaram. «Tempestade perfeita em Itália» (J. Brandão de Brito,
JNegócios, 12MAI18). «Uma Itália à moda de Putin e Trump» (J Almeida
Fernandes, 19MAI18). «Finalmente um tiro no porta-aviões» (T.de Sousa,
Público 20MAI18). «Não vale a pena ter ilusões» (T.de Sousa 22MAI18).
«Mercados e UE em modo pânico», titula o Público (30MAI18). «Itália é a
maior ameaça ao Euro desde a sua criação» (Seixas da Costa, J Económico,
29MAI18). «Pobre Europa! (…) E agora para acabar, a Itália entregue a um

louco fascista e a um partido “anti-sistema” e ambos anti-Europa. Mas
qual sistema? E anti-Europa? Mas qual Europa? Restará pedra sobre pedra
do que outrora chamámos sistema democrático e União Europeia? Chora
Angela Merkel.» (M. Sousa Tavares, Expresso, 02JUN18). «A crise da UE é
a das democracias nacionais» (David Dinis, Editorial, Público, 02JUN18).
«Itália – parece um filme de Fellini»; «Tudo isto é kafkiano»; «Outro
pesadelo para a Europa» (Marques Mendes, J Negócios, 04JUN18).
Personalidades estrangeiras invocam na imprensa portuguesa Weimar
(«10 lições de Weimar» – Harold James, J Negócios, 22MAI18; «A Itália
mostra o caminho para a morte da democracia liberal» W.Munchau, D
Notícias, 21MAI18). Um sufoco!
«Como salvar a Europa» perora pesaroso George Soros (J Negócios,
29MAI18)! «A situação política italiana revela os custos do adiamento da
conclusão da UEM e as fragilidades a que a zona euro se expõe» (António
Costa, aquando da recente visita de Merkel a Portugal). «A União Europeia
foi deixada a meio» (Francesco Franco, Prof UNL, Expresso 26MAI). «O
que vai desagregar a zona euro é a falta de reformas, não a Itália» (W
Munchau, D Notícias, 04JUN18).
Há os que se apegam a S. Macron e à Stª Merkel . Assim o espera T. de
Sousa, para quem «A chanceler não quer que a Alemanha seja olhada
como o mau da fita», e por isso «Os dois líderes têm um encontro
marcado no dia 19 para finalizar uma proposta comum», para impor ao
Conselho Europeu de 28 e 29 de Junho (Público, 05JUN18). Acha que sim
Mª João Rodrigues (vice-presidente do grupo dos Socialistas e Sociais-
Democratas do PE, Público 30MAI18), a chanceler «Ou aceita concretizar
um compromisso com a família socialista e social-democrata, visando uma
reforma que permita relançar a zona euro com perspectiva de futuro e
coesão, ou corre o risco de ver deflagrar forças anti-zona euro e anti-
europeias como as que vemos emergir em Itália – e por toda a Europa – e
que se têm reforçado». E naturalmente, o 1º ministro António Costa,
passeando no país de braço dado com Angela Merkel para ajudar «a
construir consensos que permitam à UE vencer os desafios com que se
confronta, da política de migrações à conclusão da UEM» (Público,
30MAI18).

Mas o mais esdrúxulo disto tudo é que, em Portugal, o PS e seu
Secretário-Geral, tenham conseguido fazer o 22º Congresso no recente
fim-de-semana 25/26/27 de Maio, e não tenham abordado nenhuma
destas questões. Nem crise italiana, nem euro, nem União Europeia.
Grande mistério!
Ainda não deram por nada. Há uma crise sistémica profunda do sistema
capitalista, roído pelas contradições e antagonismos do movimento do
capital. Pelas guerras e disputas imperialistas. Pela competição aguda e
brutal do capital transnacional e financeiro. Que estrebucham e não
gostam de quem lhes faz frente. Com expressão no movimento das placas
tectónicas da geopolítica, onde as principais potências capitalistas fazem
torções e movimentos como o funâmbulo na corda. Procuram a salvação
no seu equilíbrio e no desequilíbrio das potências opositoras. Isto é, só
não as atiram abaixo da corda se não puderem… sacudindo-as para o
vazio. Uma crise na UE (e na Zona Euro), cantada construção do sistema
capitalista, que agora é sacudida por erupções e abalos telúricos político-
económicos, sociais e culturais. A crise italiana (como o Brexit, e etc…) é só
mais um epifenómeno da crise da UE e da Zona Euro! E não vai lá com
aspirina…
Esta gente é tal e qual cinema de animação! O herói ou o vilão, já não tem
terreno, solo, soalho, degrau debaixo dos pés. Só quando olha para o
abismo é que se precipita…fiuuuuuuuuuuuuu…Puum! Som onomatopeico
à escolha. O pequeno problema é que costumam arrastar-nos com eles…
para o abismo.
(1) Ver «Mercados e UE em modo pânico», Público de 30MAI18

1 comentário:

Mário Reis disse...

Como é costume muito bom, AL.
Se o "livro de estilos" não fosse a sacana da bitola que serve de desculpa editores e redatores, além de terem de se esforçar mais tinham de arranjar outras mentiras que justificasem a apropriação forçada (o roubo) da riqueza.