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12 de outubro de 2019

O Bloco Central das Negociatas


Como Ricciardi cercou o governo de Passos Coelho é noticia hoje do DN. Será uma história com lacunas , mas revela como os senhores do dinheiro actuam com os seus representantes no governo lá colocados para esse fim. Acessos telefónicos fáceis , portas giratórias , umas pressões e os bons negócios , as fortunas , as elites e a sua reprodução. E lá aparecem os Relvas , os Angelos Correias da revolução dos pregos e quejandos
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osé Maria Ricciardi, de costas, fala com Pedro Passos Coelho durante o lançamento de um livro de Miguel Relvas.

José Maria Ricciardi usava quatro telemóveis, pelo menos. Naquele último dia de janeiro de 2012 eles não paravam de tocar. A situação era crítica. Havia dúvidas dentro do governo se a privatização das Redes Energéticas Nacionais (REN) deveria avançar, temia o banqueiro do grupo Espírito Santo, primo de Ricardo Salgado. Mais: os seus próprios clientes, a poderosa State Grid chinesa, que é hoje a quinta maior empresa do mundo, segundo o ranking da Fortune , estavam a sentir-se prejudicados pelas regras do jogo. Sentiam-se limitados no seu investimento por serem uma empresa do setor energético, quando a lei permitia a fundos de investimento comprar mais do que 25% da REN, a fasquia máxima a que a State Grid pôde concorrer.
Por isso, o telemóvel do CEO do BESI (Banco Espírito Santo Investimento), um dos dois grandes bancos de investimentos de Portugal à época, recebia mensagem atrás de mensagem dos seus colaboradores mais próximos que diziam quase todas o mesmo: devia ligar ao primeiro-ministro. Ricciardi tentou, mas Pedro Passos Coelho, de quem era amigo de longa data, não atendeu logo.
Esta história mostra como a estratégia de um banco de investimentos pode basear-se na proximidade com os decisores políticos, e um grupo de pessoas próximas de ambos que se moviam à vontade nos dois tabuleiros. Os banqueiros comentavam a impreparação e o desconhecimento dos governantes. Ricciardi elegeu uma lista de aliados no governo a quem se dirigia com bullit points e uma outra de "inimigos", de que se queixava. Na altura decisiva, subiu a parada e lançou uma ameaça.
Depois de tentar falar com Passos, Ricciardi ligou a Miguel Relvas, ministro adjunto. E o banqueiro passou esta mensagem: se o governo decidisse parar a privatização a China, poderia cortar relações diplomáticas com Portugal e parar todos os investimentos (além da EDP e da REN, empresas chinesas viriam a comprar parte do BCP, a Fidelidade e setores importantes do grupo Espírito Santo, como a saúde ou o próprio BESI). A alusão ao "corte de relações" foi extraordinária.
Sete anos depois, Miguel Relvas aceitou recordar esses acontecimentos. Dos vários contactos que manteve com José Maria Ricciardi, nessa altura, Relvas desvaloriza a aparente ameaça diplomática lançada pelo BESI. "A mim nunca me pressionaram, e se pressionassem teriam a resposta adequada." Para o ex-ministro, a ideia de que poderia haver um corte de relações com a China tem apenas uma leitura possível: "excesso de zelo". "A mim nunca me disseram isso. Alguma vez a China diria uma coisa dessas?"
Mas a pressão do banqueiro não se ficou por Miguel Relvas. No mesmo dia, Ricciardi fez uma nova tentativa para chegar a Passos. Ligou a Ângelo Correia, amigo e ex-patrão do primeiro-ministro, na Fomentinvest, e usou exatamente os mesmos argumentos que usara com Relvas.
Contactámos Ângelo Correia, que se lembra perfeitamente do telefonema de Ricciardi. "É verdade. Disseram-me isso. E avisei disso o primeiro-ministro." O argumento usado era claro: "A China pode não investir e cortar a relação." Por isso, Ângelo Correia explica que telefonou a Passos Coelho para o avisar do problema. "Achei que a gravidade do que me estavam a dizer era tanta que lhes sugeri que alguém devia dizer isso ao governo português. Disseram-me isso de um modo perentório."


Passos Coelho, segundo Ângelo Correia, não reagiu: "Nem me perguntou nada. Ouviu apenas." Mas a ameaça referida por Ricciardi estava lançada. "Se tinham mandato dos chineses, eu não sei", adverte Ângelo Correia. "Mas disseram-me isso com um ar sério."
Fontes diplomáticas contactadas pelo DN rejeitam qualquer hipótese de ter havido por parte da State Grid ou da China qualquer tipo de ameaça de retaliação diplomática. "Isso seria uma chantagem. Nunca aconteceu. Não faz sentido."
Mas durante todo o dia 31 de janeiro de 2012 Ricciardi usou a mesma ideia. Depois de falar com Relvas e Correia, ligou a Carlos Moedas, que na altura era o secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro e o responsável pelo acompanhamento da troika, com lugar no Conselho de Ministros. Moedas acabara de aterrar em Londres, onde estava com Vítor Gaspar, que daria nesse dia uma conferência sobre assuntos europeus naLondon School of Economics. O ministro das Finanças ia num carro com Maria Luís Albuquerque, a sua secretária de Estado, que era a responsável pelas privatizações. Moedas devolveu a chamada a Ricciardi no carro que seguia atrás.(...)
O DN contactou também José Maria Ricciardi, que pediu para não ser citado neste trabalho. O ex-banqueiro é arguido num processo, aberto em 2013 pelo Ministério Público e que se encontra há mais de seis anos em investigação pelo Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Passos Coelho e Miguel Relvas já testemunharam nesse processo. Tentámos, através dos serviços da Procuradoria-Geral da República, saber em que fase se encontra a investigação judicial e quais são os arguidos, além de Ricciardi, suspeitos de terem cometido os crimes de "tráfico de influências, aproveitamento indevido de segredo e abuso de informação". A resposta da PGR foi breve: "O inquérito com o NUIPC 195/13.3 TELSB encontra-se em investigação e está sujeito a segredo de justiça."

Os factos principais desse inquérito foram revelados pela investigação do jornalista António José Vilela, da Sábado, no seu livro Apanhados - As Investigações Judiciais às Fortunas Escondidas dos Ricos e Poderosos (ed. Manuscrito, 2017). Ali, Vilela explica o que está em causa para a justiça: "Ricciardi tornou-se um dos principais suspeitos num intrincado caso que começou com a eventualidade de o banqueiro ter fugido ao fisco e que, com o passar do tempo e o acesso dos investigadores a diversa informação financeira e sobretudo a dezenas de horas de escutas telefónicas, levou as autoridades judiciais a suspeitar de que Ricciardi seria o pivô de um esquema em que o Estado português pudesse ter sido defraudado em 130 milhões de euros nas referidas privatizações [da EDP e da REN]."

Como  cercou o governo de Passos na privatização da RE

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