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1 de agosto de 2023

Duas visões da guerra: copo meio cheio, copo meio vazio

 Para M. Bhadrakumar,  ex-diplomata indiano, a guerra tende a intensificar-se. Para Scott Ritter, esta guerra transformou-se num pesadelo para a NATO e assinala o fim de uma ordem que há muito perdeu a legitimidade.

A cúpula da NATO em Vilnius sinalizou que não há absolutamente nenhuma possibilidade de negociações para resolver a guerra da Ucrânia num futuro próximo. A guerra só vai intensificar-se, já que os EUA e seus aliados ainda esperam infligir uma derrota militar à Rússia, embora isso esteja claramente além de sua capacidade.

Em 14 de julho, o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, disse que a contraofensiva da Ucrânia está "longe de ser um fracasso", mas a luta pela frente será "longa" e "sangrenta". Milley tem a reputação de falar o que a Casa Branca quer ouvir. Entretanto, Biden anunciou assistência militar adicional de cerca de US$ 1,3 mil milhões para a Ucrânia.

Zelensky, enviou cartas ao secretário-geral da ONU e ao presidente turco, para a continuação do acordo de cereais sem a Rússia e uma carta à Organização Marítima Internacional da ONU explicitando um novo corredor marítimo pelas águas territoriais da Roménia na parte noroeste do Mar Negro. A NATO já está a trabalhar numa nova rota marítima no Mar Negro há já algum tempo. É um desenvolvimento sério, em que a NATO se prepara para desafiar o domínio da Rússia no Mar Negro.

Assim: 1 -  o conflito na Ucrânia foi apontado como o contexto; o foco está na Crimeia; 2 -  "liberdade de navegação" significa uma presença naval assertiva dos EUA; 3 - A NATO sinaliza a intenção de aumentar a "consciência situacional", que como termo militar envolve quatro etapas: observação, orientação, decisão e ação. Portanto a vigilância da NATO sobre as atividades russas no Mar Negro irá intensificar-se; A NATO busca uma cooperação mais estreita com "nossos parceiros na região" (leia-se Ucrânia).

Uma nova rota marítima nas regiões noroeste e oeste do Mar Negro, ao longo da Romênia, Bulgária e Turquia (países membros da NATO)isolará a guarnição russa na Transnístria (enclave russo junto à Moldava, potencial membro da NATO) e aumentará a capacidade de Kiev atacar a Crimeia. O envolvimento da NATO complicaria futuras operações russas para libertar Odessa, historicamente uma cidade russa. O oleoduto de amónia Togliatti-Odessa, recentemente sabotado por ucranianos, tem 2 471 km, o maior gasoduto de amônia do mundo, ligando o maior produtor de amónia do mundo, Togliatti Azot, na Rússia, ao Porto de Odessa.

Sem controle sobre Odessa, a NATO não pode forçar projetos na região do Mar Negro ou ter a Ucrânia como um posto avançado anti-Rússia. A NATO também não pode avançar em direção ao Transcáucaso e ao Cáspio (fronteira com o Irão) e à Ásia Central sem dominar o Mar Negro.

Pelas mesmas razões, a Rússia também não pode dar-se ao luxo de ceder a região do Mar Negro à NATO. Odessa é um elo vital ao longo da costa do Mar Negro que conecta o interior russo com sua guarnição na Transnístria. Na verdade, a segurança da Crimeia estará ameaçada se forças hostis se estabelecerem em Odessa. (O ataque à ponte Kerch foi encenado a partir de Odessa.)

Claramente, todo o projeto dos EUA na nova rota marítima visa impedir que a Rússia ganhe o controle de Odessa. Com a ofensiva ucraniana fracassando, a Rússia poderá lançar em breve uma ofensiva na direção de Odessa.

A NATO praticamente cercou a Marinha russa no Mar do Norte e no Mar Báltico (com a entrada da Suécia e da Finlândia como membros). A liberdade de navegação da frota do Báltico e o domínio no Mar Negro tornam-se, por conseguinte, ainda mais cruciais para a Rússia.

Moscovo reagiu fortemente. O Ministério da Defesa russo notificou que "todos os navios que navegam nas águas do Mar Negro para portos ucranianos serão considerados como potenciais transportadores de carga militar. Assim, os países desses navios serão considerados envolvidos no conflito ucraniano ao lado do regime de Kiev." A Rússia notificou ainda que "as partes noroeste e sudeste das águas internacionais do Mar Negro foram declaradas temporariamente perigosas para a navegação". Na prática, a Rússia está impondo um bloqueio marítimo à Ucrânia.

A propaganda ocidental caricatura a Rússia como criando escassez de alimentos globalmente. O facto é que o Ocidente não manteve sua parte do acordo reciprocamente para permitir a exportação de trigo e fertilizantes russos, como foi reconhecido pela ONU e pela Turquia. [World Hunger & War in Ukraine (consortiumnews.com)]

Resta saber é se, além da guerra de informação, algum país da NATO ousaria desafiar o bloqueio marítimo da Rússia. As chances são pequenas, apesar do assustador destacamento da 101ª Divisão Aerotransportada na Roménia. (M. Bhadrakumar  NATO & the Perilous Black Sea)

Zelensky, surge como uma figura trágica no drama que se desenrola que é o conflito russo-ucraniano. Ele foi convidado a sacrificar a vida de seus compatriotas para ser visto pelos EUA e pela NATO como digno de se juntar ao seu clube. Mas quando o sacrifício não produziu o resultado desejado a porta da NATO, deixada aberta para a Ucrânia realizar sua tarefa suicida, foi fechada.

À medida que a Ucrânia se despede de seu antigo eu, também deve se separar de seus sonhos de se tornar uma comunidade europeia cuja própria longevidade está muito em dúvida. Isso se deve em grande parte ao seu envolvimento desastroso no conflito russo-ucraniano.

A Ucrânia nunca mais será a mesma depois que esta guerra terminar. Nem a NATO, que NATO terá dificuldades para encontrar relevância e propósito em um mundo pós-conflito. A Cimeira de Vilnius, foi o Réquiem de um pesadelo - a morte de uma nação, a anulação de um continente e o fim de uma ordem que há muito perdera a sua legitimidade.

Na cúpula de Vilnius, fiquei impressionado com o isolamento de Zelensky enquanto ele procurava misturar-se com os líderes das nações da NATO que o chamavam de amigo e aliado, mas o tratavam e à nação que ele lidera como pouca coisa.

Zelensky desabafou a frustração perante a imprensa: "É sem precedentes e absurdo", lamentou Zelensky , "quando o prazo não está definido nem para o convite para a adesão da Ucrânia e palavras vagas sobre "condições" são adicionadas até mesmo para convidar a Ucrânia."

Após ser admoestado por seus mestres da NATO, mudou de tom. Mais tarde, durante uma conferência de imprensa com o Presidente norte-americano, Joe Biden, Zelensky manteve-se mudo enquanto Biden continuava a deitar água fria sobre as perspetivas de adesão da Ucrânia à NATO.

Acrescente-se a rejeição da França a uma proposta de abertura de um escritório de ligação da NATO no Japão, e o desacordo aberto em curso da Hungria com a NATO e a UE sobre como responder na Ucrânia, e encontramos o edifício da NATO repleto de fissuras de descontentamento e desacordo que só podem aprofundar -se à medida que a NATO encara a probabilidade crescente de uma vitória militar russa na cara.

Se as semanas que antecederam a cimeira de Vilnius foram definidas pelo desejo da NATO de ver a tão esperada e tão propalada contraofensiva ucraniana atingir o seu potencial máximo, nos dias que antecederam a reunião viram-se confrontados com a realidade de que a guerra não está a correr bem para eles.

A contraofensiva ucraniana foi formada em torno de uma força central de cerca de 60 000 soldados ucranianos que receberam treinamento especial da NATO e de militares europeus sobre armas e táticas projetadas para derrotar as defesas russas. Desde que a contraofensiva começou, em 8 de junho, a Ucrânia perdeu quase metade dessas tropas e um terço do equipamento fornecido - incluindo dezenas dos principais tanques de batalha Leopard e veículos de combate de infantaria Bradly, que foram vistos por muitos como tecnologia revolucionária.

Em 1993, George Soros postulou uma arquitetura para uma nova ordem mundial baseada nos Estados Unidos como a única superpotência remanescente supervisionando uma rede de alianças, sendo a mais importante a NATO, que cercaria o hemisfério norte contra uma ameaça russa.

Quarenta anos depois, esse mesmo cenário se desenrola nos sangrentos campos de batalha da Ucrânia. Os milhares de milhões de dólares de assistência militar fornecidos pelos EUA, NATO e outras nações europeias são a manifestação viva das "capacidades técnicas" de que Soros falou. Ficam por dizer as centenas de milhares de sacos de cadáveres que já foram abaixados no solo da Ucrânia, evidenciando o desprezo insensível por parte dos participantes de Vilnius por aquela tragédia humana. SCOTT RITTER: Requiem for NATO’s Nightmare (consortiumnews.com) 


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