D. Ferreira Leite afirmou que era necessário suspender a democracia para resolver os problemas económicos, leia-se, dos “mercados”. O Sr. Passos Coelho considera que após a aprovação do programa do governo caduca o programa eleitoral e respectivas promessas. No mesmo sentido poderíamos referir declarações de vários comentadores que não escondem o desprezo por qualquer iniciativa popular na defesa dos interesses e direitos colectivos. Para esses comentadores a massa da população não passa de gente ignorante, tendencialmente parasitária. Estas declarações e comentários não são lapsos de linguagem ou fora do contexto, muito pelo contrário definem a ideologia que norteia a política atual
A mentira tornada estratagema eleitoral, a manipulação informativa, o crescente descrédito dos responsáveis políticos, o aumento de riqueza de uns quantos, a par da crescente pauperização da maioria, mostram como o atual sistema económico que está a ser imposto é incompatível com o processo democrático.
O objetivo da democracia capitalista – também dita, burguesa – era promover uma tolerável repartição do rendimento que atenuasse os efeitos da apropriação da mais valia.
Uma regressão na repartição do rendimento representa sempre, quaisquer que sejam os argumentos, uma regressão na democracia. Com efeito, a maioria tenderá a pretender uma melhor repartição do rendimento criado e que os sacrifícios, quando houver que os realizar sejam proporcionados e realmente equitativos, mas quererá também mais segurança quanto ao seu emprego e nível de vida, mais e melhores serviços sociais. Os “mercados” na política atual sobrepõem-se a tudo isto. O processo de destruição daqueles objetivos é designado por “ajustamentos estruturais”.
A democracia tem portanto um efeito perverso sobre a chamada “economia de mercado” que legitima a desigualdade como processo económico. Ora, parece incontestável que, mesmo sem se cair no igualitarismo, o aumento das desigualdades representa menos democracia.
Os “mercados”, segundo os seus próceres, têm de estar ao abrigo das “más escolhas” dos eleitores, isto é, a democracia não pode sobrepor-se nem limitar os “mercados”. Para pôr esta política em prática nos países em desenvolvimento recorreu-se à conspiração, aos golpes de Estado, ao terror fascista, à invasão (ver “A engrenagem” outubro.2011). Na UE este processo está a ser realizado com a imposição de tratados espúrios, não referendados, preconcebidamente tortuosos e a uma burocracia de alto nível, não eleita, ao abrigo do escrutínio político. Organizações internacionais como o FMI e a OMC fazem parte do esquema, melhor dizendo, da engrenagem.
A derradeira proposição dos partidos social-democratas/socialistas – o poder político sobrepor-se ao poder económico - desapareceu nas suas contradições, oportunismos, clientelismos. Desapareceu, na ilusão de que democracia e mercado seriam complementares, reforçando-se mutuamente. Democracia e mercado só podem ser vistos como complementares se se ignorar que existe algo que se classifica como luta de classes. Mas como disse um multimilionário da Wall Street: “ela existe e nós estamos a ganha-la”.
A “economia de mercado” constitui um sistema ideológico em que a política se subordina ao “mercado”,isto é, os interesses gerais aos grande capital e à finança especuladora.
O atual neoliberalismo foi o objetivo a atingir pela “economia de mercado” para o qual toda a interferência do Estado na economia é uma imperfeição que reduz a eficácia. Serviços sociais (saúde, educação, transportes públicos), sectores estratégicos (energia, telecomunicações, etc.) têm de ser retirados da esfera pública, pois são oportunidades de lucro e consumidoras de recursos. Todos os recursos têm de estar nas mãos do capital privado para o mercado funcionar e ser “perfeito”.
A “economia de mercado” assume que os desequilíbrios e ditas “disfuncionalidades” resultam da interferência do Estado. Sendo assim, o papel dos governos é garantir que o poder de mercado se sobreponha ao poder da democracia. Neste sentido vão as declarações do Ministros das Finanças, da Economia e seus Secretários de Estado.
O “Estado Social” é agora visto como uma imperfeição a que se deve se não pôr termo, reduzir ao mínimo. As políticas orçamentais são impostas do exterior, com a conivência dos monopolistas nacionais e políticos ao seu serviço, como forma expedita de anular o poder e os anseios democráticos. Na UE aplicam-se políticas sem ter em conta as diferentes características e estruturas económicas dos diversos países e o seu grau de desenvolvimento: o mercado tudo nivelaria. O que ocorreu porém não foi como num sistema de vasos comunicantes, mas sim como um rolo compressor guiado pelos mais fortes.
O desmantelamento das funções do Estado é defendido permanentemente em nome do “despesismo” e sob o sofisma de querer “redefinir as funções do Estado” e “saber o que queremos como funções do Estado”. Esta lenga lenga, destina-se a criar uma espécie de mistério para esconder as intenções de anular a Constituição e adormecer a consciência cívica para mais uma machadada no processo democrático. De nada valem as vãs promessas de solidariedade e a mistificação dos “sacrifícios equitativos”, o individualismo sem máscara do neoliberalismo opõe-se a essas premissas.
Sob o neoliberalismo, os povos estão cada vez mais a ser governados por instituições supranacionais cujas reais implicações das suas medidas escapam aos povos, pois são-lhes escamoteadas. Cada avanço no primado do mercado e consequentemente do “poder de mercado” tem-se traduzido num recuo da democracia: é como se a democracia de sufrágio universal e proporcional tomasse um sentido censitário, isto é: o peso dos votos proporcional à posse de riqueza, já uma evidência nas eleições nos EUA.
A regressão democrática verifica-se também na repressão dentro das empresas, na chantagem económica e na pressão ideológica, nas tentativas de limitação do direito à greve, nas acções provocatórias montadas.
São estas as consequências de um falseado “jogo democrático” tolerado pelos partidos social-democratas/socialistas em que o poder económico se apropria das bases fundamentais da democracia e em que as políticas visam garantir os interesses dos especuladores e dos oligopolistas.
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