Á falta de outros argumentos é recorrente acusarem-se as orientações políticas progressistas de serem contra “o mercado”, como se isto fosse a mais nefasta das heresias, um sacrilégio face à actual sagração da dogmática neoliberal. Tal argumentação persiste na linguagem social democrática/socialista para justificar o abandono do que diziam ser os seus princípios. Uma argumentação no mínimo bacoca de quem não tem mais nada para dizer.
Na realidade “o mercado” na visão neoliberal não se tornou absolutamente nada respeitável. Porquê? Que o digam os povos sujeitos às “inevitabilidades” das austeridades, mas deixemos a revista "The Economist" esclarecer (1): “Democracia e mercado livre não trouxeram longa vida aos russos. Entre 1989 e 1994 a taxa de mortalidade aumentou 45% e a esperança de vida caiu para níveis idênticos aos do Quénia (…) Isto significa que cada mês morrem mais de 20 000 russos que sob o comunismo poderiam esperar viver muito mais”. O título do artigo era sugestivo: “Finalmente livres para morrer”. Ressalvando a confusão do autor entre o que seja comunismo e sociedade socialista, o texto é esclarecedor.
Ora, do ponto de vista teórico, pensamos que nada permite afirmar que exista qualquer preconceito contra o mercado na teoria marxista, existe sim e muito justificadamente, contra o domínio do mercado por entidades que o controlem em benefício exclusivo dos interesses privados.
Como vimos, há várias estruturas de mercado relacionadas com o modo de produção, o que não existe é, com a actual configuração económica, nada que se possa definir de forma rigorosa como o “mercado livre” donde teoricamente derivaria a eficiência económica – isto sem falar na social, que a teoria liberal não contempla senão com vagas e meras intenções de preceitos morais, como o “capitalismo ético” ou a “economia social de mercado”, para não falar nas “terceiras vias”.
Quando Atílio Borón escrevia “para os pobres o mercado” (www.rebelion.org – 22.09.2010) queria com isto dizer que os países, as empresas, os consumidores mais frágeis – sem poder de mercado – são efectivamente postos numa competição em que os países dominantes, o grande capital e a finança, controlam os dados quer como clientes quer como vendedores.
Parece-nos também que nas sociedades socialistas terão sido cometidos erros por não se ter em devida consideração um correcto funcionamento do mercado e dos seus mecanismos, bem como da formação dos preços.
Contudo, podemos afirmar que até aos anos 60 do século passado, foram seguidas na URSS orientações que mostravam a necessidade de correcto funcionamento do mercado em termos socialistas. Uma resolução do Conselho de Ministros no pós-guerra, procurava corrigir situações sem dúvida também resultantes do período que se atravessara. Aí se defende o desenvolvimento do comércio cooperativo e a produção de alimentos e outros bens de amplo consumo pelas empresas cooperativas: “as empresas de consumo e industriais – dizia-se – não competem com o comércio estatal/urbano que adquiriu uma situação de monopólio em detrimento do próprio comércio. A falta de uma sã concorrência entre o comércio estatal e o cooperativo entrava a extensão do comércio de produtos agro-pecuários e de artigos de amplo consumo”. (2)
Não cremos que se tratasse de uma orientação vazia de sentido, já que em meados dos anos 50 na URSS o sector cooperativo artesanal e industrial integrava 114 000 oficinas e médias empresas industriais, 100 gabinetes técnicos, 22 laboratórios e 2 institutos de investigação. (2)
As orientações posteriores nos anos 60 no sentido da concentração empresarial não melhoraram como sabemos nem a eficiência nem o dinamismo económico.
Em socialismo continuam a existir relações monetárias e mercantis e a exercer-se a lei do valor. O conhecimento das leis económicas que prevalecem nas diversas fases de evolução da sociedade socialista é essencial para garantir a correspondência entre as forças produtivas e as novas relações de produção.
A planificação não pressupõe, pois, a eliminação do mercado, isto é, as relações de troca baseadas na oferta e na procura, mas exerce um controlo e corrige a anarquia da produção que se gera espontaneamente na economia e que no caso de se expandirem “livremente” conduzem ao agravar dos desequilíbrios e desigualdades, às crises, á formação de estruturas monopolistas e ao domínio das transnacionais.
A eficiência trazida pelo mercado não conduz ao crescimento sustentado e equilibrado da economia. Apenas segue as orientações do maior lucro. Nos países com atrasos estruturais ou sujeitos a crises económicas, as deficiências não podem ser ultrapassadas apenas pelas forças de mercado: a planificação deverá ser parte essencial do desenvolvimento.
Há sectores básicos e estratégicos que pela sua natureza constituem monopólios naturais. As empresas destes sectores quando nacionalizadas constituem um factor de expansão e dinamismo económico, o que foi provado quer no socialismo quer em em países capitalistas mais avançados até aos anos 80 do século passado (ver Menos Estado – maio.2011). A questão reside na forma como estas empresas se integram no contexto geral do tecido económico, quais os estímulos no sentido da melhoria da qualidade e da produtividade da economia nacional. Mas isto é uma tarefa do plano económico, não do mercado.
A planificação ou o planeamento económico, se se preferir, pode ser reaccionária e burocrática ou revolucionária e democrática. Reaccionária e burocrática se for entregue ao grande capital e subordinada aos seus interesses, é o caso de certas formas classificadas de keynesianismo ou do memorando da troika e das directivas económicas da UE.
Será revolucionária, se as estruturas sociais e económicas forem alteradas colocando o poder político democrático em condições de subordinar o poder económico; será democrática se a planificação for realizada com a participação e o controlo dos trabalhadores - de todos os seus escalões - e a sua motivação moral e material.
1 – “Free at last to die” – The Economist, 21.setembro.1996, p.37.
2 – Leonid Abalkim - Revista Internacional – julho.1988 – p. 31 e 32
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