Inocência perdida-Jorge Cordeiro
O que por aí foi posto à solta a propósito da alteração da Lei de Financiamento dos Partidos Políticos deveria constituir caso de estudo. Permita-se uma declaração prévia: esta Lei, aprovada em 2003, é um instrumento inadmissível e anti-democrático de ingerência na vida dos partidos, violador do livre direito de associação política, da forma de organização e regras de funcionamento que cada um decida soberanamente adoptar.
Atendendo à época natalícia o que se recomendaria era recato, algum respeito por valores como a verdade e o rigor, a capacidade de resistir a tentações pecaminosas. Difícil é ter de escolher entre o que tem predominado no que se ouve ou vê escrito: se a concentração de mentiras, se a inacreditável exibição de ignorância, se a má fé posta ao leme de uma operação recheada de demagogia e populismo. De um modo ou de outro, seja qual for o escrutínio pelo que se opte, tudo coisas mais próprias dos tempos de Demo do que daquela celebração festiva. Há quem não olhe a meios para atingir fins. Mesmo os que com aquele ar angelical e de falsa inocência arremessam a outros lama do pântano em que se atolam. Coisas do diabo, mesmo que vindas, sem grande surpresa acrescente-se, do lado do Caldas, como que a provar que não só no melhor pano cai a nódoa, incluindo naquele que dando ares de seda, de chita se trate. Faça-se justiça: a líder do CDS não está só em tal cruzada.
Temos de tudo e como os tempos de festa recomendam com fartura. A começar na mentira. Em abundância, patenteada na efabulação sobre decisões “à porta fechada” que teria rodeado o processo do diploma agora aprovado, que teve expoente máximo na primeira página de um jornal diário, ao titular entre o sensacionalismo e a falsificação «Partidos aprovam bónus sem deixar rasto». O rigor informativo ao nível do respectivo “livro de estilo”: um diploma discutido ao longo de meses em grupo de trabalho, comissão parlamentar, agendada para plenário e aí votada à vista de todo o País, com sessões gravadas e registo de posições enviada para promulgação, não tem rasto! Elucide-se o equívoco: não é o diploma que não deixou rasto, o que está de rastos é um certo jornalismo capaz de tal feito. Junte-se à mentira a preguiça, esse pecado capital que terá levado quase todos a unirem-se, a julgar pela forma como não se dando ao trabalho de ler e estudar, nesse exercício de repetição do que o vizinho ao lado já repetira pelo que ouvira a um outro. E considere-se ainda a gula, essa tentação dos que ambicionam ver os seus partidos a viver na abastânca das subvenções estatais, ou do financiamento dos grupos económicos com os quais se fundem, em vez de terem na sua actividade partidária, nas iniciativas que promovem, nas quotizações dos seus militantes ou nas contribuições dos seus apoiantes a base principal de financiamento. Curioso é ouvir os que repetiram até ao ridículo que o Estado falhou a querer continuar a beneficiar de um financiamento do Estado que, a julgar pela dependência quase total que têm destas receitas, os transforma mais em departamento estatal do que em partidos políticos.
Ao contrário do que se diz, as alterações agora aprovadas à LFPP não aumentam os montantes de subvenção, não torna menos transparente a fiscalização das contas, não criam nenhum novo regime fiscal, aliás existente para muitas outras organizações sem fins lucrativos sejam de natureza social ou outra. Assim como não modificam a natureza antidemocrática da Lei. O que atenuam são algumas das regras absurdas e inaplicáveis e a margem de arbitrariedade na sua fiscalização. O que estabelecem é a possibilidade de ampliação dos valores para iniciativas de angariação de fundos, logo menor dependência do Estado. O que é absurdo, e estas alterações não resolvem, é que os partidos que baseiem a sua actividade, como todos deviam basear, na recolha própria de fundos sejam empurrados para pretensas ilegalidades por receberem em numerário as receitas de pequenas quotas (basta 358 militantes pagarem em numerário a sua quota de 5,00€ para ser “ilegal”) ou as que têm origem em iniciativas políticas. Apresentar receitas em numerário como sinónimo de dinheiro de proveniência duvidosa é pura manipulação, ignora que a Lei impõe regras de comprovação de todas as receitas e que qualquer contribuição em numerário tem de ser inferior a 25% do IAS, isto é cerca de 107 €.
Não é esse oceano imenso de enriquecimento ilícito ou de drenagem de dinheiros públicos para banqueiros e especuladores que incomoda os promotores de uma operação que, com o seu veto, o Presidente da República veio secundar. O que se pretende atingir, por via do ataque em abstracto aos partidos, ignorando distinções de projecto e práticas, é a democracia. Em matéria de pecados, cada um vale pelo que é. Haverá os “capitais”, seja a inveja, a soberba ou a gula. Outros há, que ali não cabendo, como a manipulação, a falsidade ou a má-fé, não deixam por isso de ser menos inocentes e reprováveis.
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