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31 de março de 2022

Uma importante opinião

 De Major General Raul Cunha.

Segue um texto com a pretensão de contribuir para o esclarecimento de quem o quiser ler:

"A RÚSSIA NÃO QUER DEVASTAR A UCRÂNIA
A conduta da Rússia nesta guerra brutal é bem diferente da visão amplamente aceite de que Vladimir Putin tem a intenção de devastar a Ucrânia e infligir o máximo de danos às estruturas civis e, pelo contrário, revela uma postura de algum equilíbrio estratégico por parte do líder russo. Se a Rússia estivesse a ser intencionalmente mais destruidora, o clamor a pedir uma intervenção dos EUA e da OTAN seria muito maior. E se a Rússia empenhasse ali a totalidade do seu arsenal, Putin poderia ficar sem qualquer tipo de justificação moral. Em vez disso, é de crer que o seu objectivo seja conquistar território suficiente para ter matéria para negociar e, simultaneamente, levar o governo da Ucrânia a uma situação em que tenha de o fazer.
Será muito importante tentar compreender o pensamento que está por detrás dos ataques limitados da Rússia, de forma a poder ajudar a encontrar uma via para a paz. Por mais destruidora que esteja a ser a guerra na Ucrânia, a Rússia está a causar menos danos e a matar muito menos civis do que estaria ao seu alcance fazer.
Num mês, desde o início da invasão pela Rússia, dezenas de cidades e vilas ucranianas caíram, e continua ainda a luta em torno das maiores cidades do país. As Nações Unidas dizem que cerca de 900 civis morreram nos combates. Também cerca de 6,5 milhões de ucranianos são agora deslocados internos (15% de toda a população) e metade desses acabou por deixar o país em busca de segurança.
A destruição é enorme, especialmente quando comparada com o que os europeus estão acostumados a ver (na Europa, claro, onde já passaram 23 anos desde o bombardeamento da Sérvia), mas os danos associados a uma intensa guerra terrestre envolvendo dois oponentes, não devem impedir as pessoas de ver o que realmente está a acontecer – o centro de Kiev mal foi tocado e quase todos os ataques de longo alcance foram direcionados para objectivos militares. Na capital, as autoridades da cidade de Kiev dizem que, desde 24 de fevereiro, cerca de 60 edifícios foram danificados e que cerca de 230 pessoas morreram. Tenhamos presente que se trata de uma cidade com 2,8 milhões de habitantes. 
Se apenas nos convencermos que a Rússia está a bombardear indiscriminadamente, ou que não está a causar mais danos porque o seu pessoal não está à altura da tarefa ou porque é tecnicamente inepto, não estaremos a ver a realidade do conflito. Embora a guerra tenha levado a uma destruição sem precedentes no Sul e no Leste, os militares russos têm mostrado uma grande contenção nos seus ataques de longo alcance.
Durante o primeiro mês de conflito, a Rússia realizou cerca de 1.500 saídas de aeronaves de ataque e lançou cerca de 1.000 mísseis e bombas (em comparação, os Estados Unidos, só no primeiro dia da guerra do Iraque em 2003, realizaram mais saídas e lançaram mais mísseis e bombas). A grande maioria dos ataques aéreos foram sobre o campo de batalha, com as aeronaves russas a garantir “apoio aéreo próximo” às forças terrestres. O restante, menos de 20%, foi destinado a aeródromos militares, quartéis e depósitos de apoio logístico. Uma proporção desses ataques danificou e destruiu estruturas civis e matou e feriu civis inocentes, mas o nível de morte e destruição é baixo comparado com as capacidades da Rússia para esse efeito. De facto, a carnificina e a destruição, podiam ter sido muito piores, o que sugere, pelo menos, que os civis não estão a ser atacados intencionalmente e que talvez se esteja a tentar limitar os danos colaterais.
Em 24 de fevereiro, a Rússia iniciou a sua invasão da Ucrânia com um ataque aéreo e de mísseis contra cerca de 65 aeródromos e instalações militares. Na primeira noite, pelo menos 11 aeródromos foram atingidos. Cerca de 50 instalações militares adicionais e locais de defesa aérea foram atacados, incluindo 18 instalações de radares de alerta prévio.
Nesses ataques iniciais, foram utilizados 166 mísseis lançados do ar, de terra e do mar. Embora tivesse havido um bom número de bombardeiros de longo alcance (voando a partir de solo russo), a maioria dos ataques aéreos foi por aeronaves de curto alcance e a maioria dos mísseis lançados também foram do tipo de curto alcance – o Iskander (designação OTAN SS-26 Stone) e o Tochka (designação OTAN SS-21 Scarab).
A amplitude do ataque – de norte a sul, de leste a oeste – levou muitos comentadores a comparar o bombardeamento inicial com o padrão observado nas guerras dos EUA no Afeganistão e no Iraque, onde as grandes salvas concentradas sobre as defesas aéreas e aeródromos tinham a intenção de estabelecer uma superioridade aérea, um ataque de choque que assim abriria os céus para bombardeamentos subsequentes sem resistência. Neste caso da Ucrânia, muitos observadores pensaram que os objetivos russos correspondiam às práticas dos EUA, mas, quer em dimensão quer em objectivo, essas observações foram prematuras (e incorretas) pois neste conflito não era essa a intenção da Rússia.
Diz essa narrativa que, mesmo antes de as forças terrestres russas chegarem a Kiev e a outras cidades, a força aérea e os mísseis teriam danificado tanto a Ucrânia – incluindo as suas comunicações e outras infraestruturas necessárias para que as defesas continuassem a funcionar – que estaria garantida a vitória no solo.
A Rússia não alcançou nenhum desses objetivos. Embora os contornos da sua primeira noite de ataques sugerissem uma campanha para obter superioridade aérea e uma destruição intensa e centrada nas forças armadas da Ucrânia, após um mês de guerra, a continuidade dos ataques revela uma história diferente. A Rússia ainda não eliminou completamente a força aérea ucraniana, nem estabeleceu superioridade aérea. Alguns aeródromos longe do campo de batalha ainda estão em operação e alguns (nas grandes cidades) não foram sequer bombardeados. O tecido de comunicações no país continua a funcionar intacto. Não houve nenhum ataque metódico russo sobre os itinerários de transporte ou pontes para impedir as defesas ou os abastecimentos terrestres ucranianos. Embora as centrais elétricas tenham sido atingidas, todas se localizam em território palco de combates ou perto de instalações militares. Sendo que nenhuma foi intencionalmente visada.
De facto, não houve nenhuma campanha metódica de bombardeamento para alcançar um qualquer resultado sistémico de natureza estratégica. Os ataques aéreos e de mísseis, que inicialmente pareciam apontar para uma história já conhecida, foram quase exclusivamente em apoio direto às forças terrestres. A Força Aérea russa funcionou como artilharia voadora e não empreendeu nenhuma campanha aérea estratégica como os comentadores militares estavam acostumados pelos últimos 30 anos de guerras americanas. E as defesas aéreas ucranianas, tanto de mísseis fixos como de móveis, provaram ser resistentes e eficazes.
A Rússia não bombardeou as instalações estacionárias de defesa aérea que protegiam as grandes cidades. Na realidade, os generais russos demonstraram uma particular relutância em atacar alvos urbanos, nomeadamente em Kiev. Como resultado, independentemente dos planos do Kremlin – se a Rússia estava realmente a tentar obter a superioridade aérea ou pretendia limitar os danos em Kiev – não há dúvidas de que o estado-maior russo teve que rever o plano de ataque no longo termo.
Durante estas quatro semanas, os mísseis disparados contra Kiev foram escassos. Os media ucranianos relataram que a partir de 24 de fevereiro, houve pouco mais de uma dúzia de incidentes a envolver mísseis balísticos e de cruzeiro russos interceptados sobre a cidade e os seus subúrbios mais próximos.
Ao contrário do que se passou nas guerras dos EUA, esta guerra é diferente: está a ser travada no solo , onde todos os objectivos estratégicos que a Rússia pode destruir nas frentes das suas forças – pontes, vias de comunicação, aeródromos, etc. – também ficarão inutilizáveis para eles à medida que avançarem e, assim, a força aérea russa passou a estar subordinada à manobra das forças terrestres.
Desde o início da guerra, alguns dos ataques aéreos e de mísseis também tiveram alguma lógica. Veja-se, por exemplo, o aeródromo de Hostomel, a noroeste de Kiev. Não foi atacado directamente porque a Rússia o utilizou de início para desembarcar pára-quedistas, com a intenção de avançar para a capital. Em vez disso, o aeródromo e a paisagem circundante tornaram-se no cenário de uma grande batalha, quando as forças ucranianas montaram uma decidida e forte defesa. No Sul, o aeroporto de Kherson também não foi atacado. A razão tornou-se clara: a Rússia está agora a utilizar esse mesmo aeródromo para apoiar as suas próprias forças.
Em Kiev, apenas um dos principais aeroportos, em Boryspil, foi atingido. Os media noticiaram que o aeroporto internacional foi atingido, mas esse mesmo aeródromo de duplo uso civil-militar também abriga a 15ª Ala de Transporte da Força Aérea da Ucrânia, incluindo o jato presidencial Tu-134, que poderia ter sido usado pelo presidente ucraniano Zelensky se ele optasse por evacuar. O outro grande aeroporto civil de Kiev, Zhulyany, nunca foi atacado. Nem os dois aeroportos civis em Kharkiv (a segunda maior cidade da Ucrânia) foram atacados.
A Rússia começou a guerra com cerca de 300 aviões de combate na Bielorrússia e na Rússia ocidental, dentro do alcance da Ucrânia. Essas e outras aeronaves trazidas para a guerra estão a realizar cerca de 80 saídas de ataque (voos individuais) diariamente. A Ucrânia alega que 95 dessas aeronaves russas foram perdidas, abatidas por defensores aéreos ou devido a erro humano e problemas técnicos. (A Rússia transferiu aeronaves adicionais de outras bases para substituir a maioria das suas perdas.)
Os ataques acontecidos dentro das principais cidades (Kyiv, Kharkiv e Odessa) foram sempre limitados, havendo ainda que ressaltar que, mesmo quando a aviação de longo alcance – os bombardeiros russos Tu-95 “Bear” que podem lançar mísseis de cruzeiro e hipersónicos – realizaram ataques no oeste da Ucrânia, longe do campo de batalha, foram direcionados a alvos militares, tendo havido lógica estratégica, pelo menos na visão da Rússia. Os aeródromos ocidentais em Lutsk, L'viv e Ivano-Frankivsk foram atingidos porque eram as bases mais prováveis para aviões de combate eventualmente doados pela Polónia ou por outros países do leste europeu, tendo sido também muito falada a possibilidade de uma zona de exclusão aérea, para a qual esses aeródromos ocidentais poderiam vir a ser essenciais. E o campo de instrução em Yaroviv foi atingido porque era o local onde a ‘legião internacional’ estava a ser treinada e muito do armamento recebido do estrangeiro estava armazenado.
A Rússia também teve o cuidado de não provocar a OTAN. Os ataques no oeste da Ucrânia tiveram o cuidado de evitar o espaço aéreo da OTAN. Por exemplo, a base aérea ucraniana em Lutsk, sede da 204ª Ala de Aviação e a apenas 110 kms ao sul da Bielorrússia, foi atacada em 13 de março por bombardeiros de longo alcance. Os mísseis foram lançados do Sul, desde o Mar Negro.
Nada disto sugere que a Rússia não tenha culpas pela sua invasão, ou que a destruição e as mortes, ferimentos e deslocamentos de civis não sejam devidos à sua agressão. As evidências no campo de batalha, onde tem havido combates por território – em Kharkiv, nas cidades disputadas da linha de frente como Mariupol, Mikolaiiv e Sumy no Leste; e Chernihiv a nordeste de Kiev – indicam que as mortes de civis foram muito maiores onde as forças terrestres estão a operar.
Embora a maioria dos ataques aéreos russos tenha ocorrido nessas áreas, o aumento dos danos em infraestruturas civis deve-se ao uso de artilharia e lança-foguetes múltiplos, não a ataques aéreos russos ou a mísseis de longo alcance.
Muitos comentadores procuram equivaler a destruição de cidades ucranianas à de Grozny na Tchetchénia e à de Aleppo na Síria, mas mesmo no caso das cidades do Sul, onde a artilharia e os lança-foguetes múltiplos estão dentro do alcance de centros povoados, os ataques parecem estar a tentar atingir unidades militares ucranianas, muitas das quais, por necessidade, operam dentro dessas áreas urbanas. 
Não apenas a destruição é apenas uma pequena fração do que é possível, mas também não têm sido enviados mais mísseis de longo alcance para Kiev e outras grandes cidades como Odessa, nem a aviação de longo alcance foi mais utilizada em ataques estratégicos. Talvez Putin tenha decidido consolidar apenas o território já conquistado ao longo da periferia e ligá-lo com as suas conquistas no Sul, para estar em condições de manter um território suficiente de forma a extrair concessões da Ucrânia e do Ocidente – garantias de segurança ou alguma zona desmilitarizada.
Embora obviamente as forças russas continuem a exercer pressão sobre Kiev, as suas posições não têm sido alteradas e continuam a evitar os bombardeamentos na cidade propriamente dita, o que indicia uma tentativa de deixar espaço para um acordo político.
O facto de ambos os lados estarem a conversar indica sobretudo que estão frustrados por não alcançarem os seus objectivos militares. À medida que a Rússia continua as suas acções, está a ficar com mais dificuldades nos reabastecimentos e recompletamentos e as suas forças também estão a começar a ficar esgotadas. À medida que a Ucrânia continua a sua defesa, também está a atingir os limites da resistência, tendo cada vez mais perdas e estando a ficar sem munições, combustível e víveres. Entretanto, ficou claro que Putin e os seus generais sobrestimaram as suas próprias capacidades militares enquanto subestimavam grosseiramente as defesas da Ucrânia.
Mas, a narrativa actual – numa visão distorcida de que a Rússia está intencionalmente a atingir civis, que está a demolir cidades e que Putin não se importa com isso, impede que se encontre um final para esta guerra, antes que esta se alargue para o resto da Europa, ou acabe em grande desastre estrutural e humano.
As imagens comoventes tornam muito mais fácil para os media concentrarem as notícias nos danos da guerra a infraestruturas e vidas. Mas em proporção à intensidade dos combates, ou à capacidade da Rússia, as coisas poderiam factualmente ser muito piores.
Cada guerra é única e terrível, e a que ocorre na Ucrânia não é diferente. Mas a decisão da Rússia de moderar a sua capacidade destrutiva é um elemento importante. Vladimir Putin não pode vencer facilmente, mas também não pode aceitar a perda ou recuar; e, por outro lado, não pode escalar, a não ser que o Ocidente o faça. Terá que manter a destruição e a pressão num nível muito cuidadoso, apenas forte o suficiente para manter alguma vantagem."

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