A Guerra Económica contra a Venezuela Jose A. Lourenço
Nos últimos tempos são raros os dias em que a situação na Venezuela não é tema de abertura dos telejornais, com direito até à presença de enviados especiais que de Caracas ou de cidades brasileiras e colombianas na fronteira com aquele país, nos relatam a sua visão da situação que ali se vive e nos mostram imagens de populações que dizem em fuga.
Sempre, mas sempre, o governo venezuelano é apresentado como o culpado da situação difícil que o povo deste país tem vivido nos últimos anos e a oposição conservadora e reaccionária agora dirigida por Juan Gaidó, com o apoio empenhado dos EUA, como a solução para a grave crise económica e social que o país tem vivido.
Ao assistir a toda esta campanha global, nas redes sociais, nas televisões, nas rádios e nos jornais contra o governo legítimo da Venezuela, lembrei-me de reler um livro que em boa hora a editora Antígona reeditou em Abril de 2017, chama-se “As Veias Abertas da América Latina” e foi seu autor Eduardo Galeano.
Diria que os antecedentes daquilo a que temos assistido na Venezuela desde 1999 quando Hugo Chaves chegou ao poder, após eleições democráticas e, após a sua morte em 2013, com a eleição de Nicolas Maduro, estão lá todos ou quase todos.
Como diz Eduardo Galeano na sua obra prima, a região a que hoje se chama América Latina, foi precoce: especializou-se em perder, desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se lançaram ao mar e lhe ferraram os dentes na garganta. Passaram-se séculos, e a América Latina aperfeiçoou as suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fantasia, e a imaginação era humilhada pelos troféus da conquista, pelas jazidas de ouro e pelas montanhas de prata. Mas a região continua a trabalhar como serva. Continua a existir ao serviço das necessidades alheias, como fonte e reserva do petróleo e do ferro, do cobre e da carne, da fruta e do café, das matérias-primas e dos alimentos com destino aos países ricos, que ganham, ao consumi-los, muito mais do que a América Latina ganha ao produzi-los. Os impostos cobrados pelos compradores são muito mais altos que os preços recebidos pelos vendedores; e, no fim de contas como afirmou Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, em Julho de 1968, «.. falar de preços justos na actualidade é um conceito medieval. Estamos na época do comércio livre...». Quanto mais liberdade se conceder aos negócios, mais prisões são necessárias para aqueles a quem os negócios prejudicam. Os sistemas de inquisidores e verdugos não funcionam apenas para o mercado externo dominante, proporcionam também mananciais caudelosos de lucros que derivam de empréstimos e dos investimentos estrangeiros nos mercados internos dominados. « já se ouviu falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões», avisava por volta de 1913, o presidente norte-americano Woodrow Wilson. Ele tinha uma certeza: «Um país», dizia, «é possuído e dominado pelo capital que nele foi investido».
Pelo caminho, estes povos perderam o direito de se chamarem Americanos, embora os Haitianos e os Cubanos já tivessem surgido na História, como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se terem estabelecido na costa de Plymouth. Agora, e para o mundo, a América são só os Estados Unidos: os outros habitam, quando muito, uma Subamérica, uma América de segunda classe, de identificação nebulosa.
É a América Latina, a região das veias abertas. Da descoberta até aos nossos dias, tudo se transformou sempre em capital europeu ou, mais tarde, em norte-americano, e, como tal, foi e é acumulado nos longínquos centros de poder. Tudo: a terra, os seus frutos e as suas entranhas ricas em minerais, os homens e as suas capacidades de trabalhar e de consumir, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada local foram sucessivamente determinados, a partir de fora, pela sua incorporação na engrenagem universal do capitalismo. Foi atribuída a cada uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira de serviço, e tornou-se infinita a cadeia das dependências sucessivas, que tem muito mais que dois elos e que, aliás, também engloba, na própria América Latina, a opressão dos países pequenos pelos seus vizinhos. Para quem concebe a História como uma competição, o atraso e a miséria da América Latina não são mais do que o resultado do seu fracasso. A América Latina perdeu: outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam o fizeram porque os povos da América Latina perderam: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. A sua derrota esteve sempre implícita na vitória alheia; a sua riqueza gerou sempre a sua pobreza para alimentar a prosperidade de outros; dos impérios e dos seus capatazes nativos.
A situação que se vive hoje na Venezuela é mais um episódio da longa história da América Latina que Eduardo Galeano também descreveu.
Por muito que os inimigos do povo venezuelano procurem afirmar o contrário, através dos enormes meios ao seu dispor, as enormes dificuldades que o povo vem enfrentando não se devem ao modelo económico venezuelano e às políticas implementadas desde que em 1999 Hugo Chavez chegou ao poder e prolongadas por Nicolas Maduro, após a sua morte em 2013.
Como Pasqualina Corso afirma no seu livro “A mão visível do mercado”, a situação económica actual que o povo venezuelano atravessa é a consequência directa das acções políticas desenvolvidas por parte daqueles que querem voltar a apoderar-se do poder.
A Venezuela é importante relembrá-lo, é um país que tem no seu subsolo as maiores reservas de petróleo do mundo, as segundas maiores reservas de gás e as maiores reservas de água doce, ouro e coltan (o chamado ouro azul constituído por dois minerais, a columbita e a tantalita que se usa para componentes de micro-electrónica, telecomunicações e na indústria aeroespacial).
Têm sido múltiplas as agressões por parte daqueles que procuram impedir que um sistema distinto do capitalismo, mostre os seus êxitos e avance neste país. As agressões não são recentes, iniciaram-se desde que Hugo Chavez assumiu o poder e tiveram várias formas: desde o golpe de Estado de Abril de 2002, passando pelas greves gerais, a sabotagem da principal empresa do país – a Petróleos da Venezuela – e mais recentemente da rede eléctrica nacional e uma concertada e permanente estratégia de destruição dos principais pilares de uma economia que depende quase exclusivamente do mercado para se abastecer.
Entre as armas que vêm usando contra o povo venezuelano encontram-se: a escassez provocada de bens essenciais, a inflação induzida, o boicote ao fornecimento de bens de primeira necessidade, o embargo comercial disfarçado e o bloqueio financeiro internacional. Aqueles que manipulam estas armas, com um impacto terrível nas condições de vida dos venezuelanos, em particular daqueles que vivem dos seus salários e pensões, não mostram o seu rosto, fazem-no de forma oculta e utilizam a comunicação social para esconder a sua autoria, ao mesmo tempo que responsabilizam o Governo e o modelo económico, social e político, pela situação que se vive.
O imperialismo norte-americano, principal estratega desta guerra económica que o povo venezuelano enfrenta, desenvolve estas acções de guerra não convencional através da acção concertada dos grandes grupos económicos internacionais e transnacionais e da cumplicidade dos monopólios nacionais de bens alimentares, medicamentos e produtos de higiene, matérias-primas e produtos intermédios indispensáveis para a actividade económica.
Estas grandes empresas transnacionais ao serviço dos interesses do imperialismo são a mão visível do mercado, são elas que comandam e operam nesta guerra económica que aqui se trava, são as donas das armas, as que boicotam o fornecimento de bens essenciais, que embargam o comércio, que manipulam e induzem a escalada da inflação, que publicam índices de risco do país manipulados. São os proprietários dos meios hegemónicos de comunicação social, cuja acção é fundamental por serem eles os encarregados de esconder o boicote e a sabotagem económica que desenvolvem, distraindo e confundindo o povo.
Justificam a continuada escassez que provocam em bens de primeira necessidade, alimentos, medicamentos, produtos de higiene pessoal e domésticos, bens necessários ao processo produtivo, matérias-primas e bens intermédios, particularmente agrícolas, peças para máquinas e equipamentos e bens, como peças e partes de veículos, baterias para automóveis, que permitem a prestação de um serviço fundamental para dinamizar a economia, como é o transporte, e com ele, a mobilidade de pessoas e mercadorias, com a falta de divisas que o governo disponibiliza para poderem proceder à importação desses bens, ora só entre 2003 e 2013 as importações totais de alimentos e as importações totais aumentaram respectivamente 572% e 390%, ao mesmo tempo que neste mesmo período o fornecimento de divisas cresceu 442% (o argumento da falta de divisas não colhe).
Manipulam de forma clara e desproporcionada a taxa de câmbio da moeda venezuelana, aproveitando a seu favor as debilidades estruturais da economia venezuelana (alta dependência de bens importados, representam 35% do PIB e concentração das importações em poucas empresas, pouco mais de 20 empresas concentram o grosso das importações mais importantes), acrescida do baixo controlo que o Estado exerce sobre estes monopólios. Como resultado o poder de compra das famílias, incapaz de suportar níveis de inflação elevadíssimos induzidos pelos preços das importações caiu de forma muito preocupante.
Sabotam em 1º lugar o fornecimento de bens de alto consumo imprescindíveis à dieta alimentar dos venezuelanos e que fazem parte da sua cultura (farinha de arroz pré cozida, café, arroz, açúcar, as pastas alimentícias, os ovos), em 2º lugar, sendo bens de alto consumo, a sua produção e distribuição encontra-se nas mãos de poucos grupos económicos e em geral a sua confecção é efectuada por monopólios ou oligopólios e em 3º lugar sendo bens, na sua maioria, não perecíveis podem conservá-los durante muito tempo sem que com isso se estraguem.
Procedem ao embargo concertado do fornecimento de medicamentos em conluio com os grandes gigantes farmacêuticos mundiais.
Tornam quase impossível o acesso da República, das empresas do Estado e em especial da Empresa Pública Petróleos da Venezuela (PVSA), à obtenção de créditos nos mercados financeiros internacionais, bem como dificultam a realização de transacções financeiras internacionais por parte do Estado Venezuelano.
Numa fase mais recente e mais avançada deste embargo chegam ao ponto de congelar o acesso do Estado Venezuelano e da Empresa Pública Petróleos da Venezuela a activos depositados em instituições financeiras no estrangeiro. Depois de os EUA terem noticiado medidas neste sentido, foi já conhecida a recusa do Reino Unido em permitir o acesso do Estado Venezuelano a reservas de ouro depositadas neste país, da mesma forma que o Novo Banco se recusou a efectuar o pedido de transferência de 1,2 mil milhões de dólares para o Uruguai, de um depósito que o Estado Venezuelano tem nesta instituição financeira portuguesa.
Ao mesmo tempo que desenvolvem toda esta guerra económica contra o Estado Venezuelano, procurando criar uma situação de caos político, económico e social no país, cujas principais vítimas são as populações trabalhadoras, as crianças, os jovens, os doentes e a população idosa, o imperialismo norte-americano e os seus aliados internos e externos, choram lágrimas de crocodilo com a situação criada ao povo venezuelano e lançam uma campanha internacional em defesa do apoio humanitário ao povo da Venezuela. Suprema hipocrisia.
Razão tinha Salvador Allende, quando em 1972, num discurso efectuado perante os países membros das Nações Unidas alertava, enquanto denunciava as agressões que se sucediam contra o povo chileno, que essas acções constituíam uma nova batalha entre o imperialismo e os povos débeis do terceiro mundo. Mas de nada valeram os seus alertas, um ano depois Salvador Allende seria assinado no seguimento de um golpe de estado conduzido pelo general Augusto Pinochet, com o apoio do imperialismo norte-americano e o Chile mergulharia numa sanguinária ditadura que se arrastaria durante décadas.
A guerra económica que o imperialismo norte-americano, move há vinte anos contra o Governo e o povo venezuelano, repete traços dominantes das muitas experiências vividas nos últimos séculos pelos povos da América Latina e alerta-nos para os perigos que ali espreitam.
10 de Abril de 2019
José Alberto Lourenço
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