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13 de julho de 2018

DOCTORADO “HONORIS CAUSA”



DISCURSO DE INVESTIDURA ANTÓNIO JOSÉ AVELÃS NUNES
Magnífico Reitor da Universidade de Valladolid
Ilustres Membros do Conselho de Governo da Universidade de Valladolid
Senhor Diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Valladolid Senhor Doutor Marcos Sacristán Represa, meu Padrinho nesta cerimónia Senhor Diretor da Faculdade de Direito de Coimbra
Sapientíssimos Doutores, Caros Colegas

Membros da Comunidade Académica Queridas Amigas e Queridos Amigos
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1. – A minha primeira palavra é para saudar o Magnífico Reitor da Universidade de Valladolid, Doutor Antonio Largo Cabrerizo, incluindo nesta saudação todos os Colegas aqui presentes, de Valladolid, de Coimbra e do Brasil.
A segunda palavra é para saudar o meu ilustre Padrinho, Doutor Marcos Sacristán, pela coragem de ser meu fiador perante este Claustro e pela generosidade do que acaba de dizer a meu respeito. Nele saúdo todos os Colegas da Faculdade de Direito de Valladolid, que tiveram a iniciativa de propor me fosse concedida tão elevada distinção.
Uma palavra especial de agradecimento é devida ao Reitor Daniel Miguel San José e a todos os Membros do Conselho de Governo desta Universidade, que, em 20 de dezembro passado, aprovaram a concessão deste título de Doutor Honoris Causa.
Uma palavra muito afetuosa para os meus familiares e os meus Amigos aqui presentes. Bem hajam todos.
2. – Para um universitário, a recompensa maior é o reconhecimento dos seus Colegas. E eu recebi, da vossa parte, a mais alta distinção concedida por uma Universidade.
Sei bem que a Universidade de Valladolid, pela sua História centenária e pelos méritos do presente, é uma Universidade justamente prestigiada. Ser um dos vossos é para mim uma grande honra, mas também uma enorme responsabilidade. Tudo farei para estar à altura do estatuto que me conferistes.
Perdoem-me a vaidade de pensar – e não é pequena vaidade! – que esta homenagem à minha pessoa é também uma homenagem à Faculdade de Direito de Coimbra, onde me formei e onde ensinei durante mais de 40 anos.
E permitam-me que aqui deixe um desafio aos responsáveis pelas minhas duas Faculdades de Direito: o de trabalharmos todos para fortalecer cada vez mais as relações académicas e científicas entre as nossas instituições.
Trata-se apenas de renovar a mobilidade de professores e estudantes que em tempos caraterizou a vida das universidades da Península, nomeadamente as Universidades de Salamanca e de Valladolid e a Universidade de Coimbra.
Um exemplo apenas: o grande filósofo, teólogo e jurista Francisco Suárez estudou Direito em Salamanca; doutorou-se na Universidade de Évora; foi Professor em Valladolid entre 1576 e 1580, e foi Professor da Universidade de Coimbra, entre 1597 e 1615 (ano da sua jubilação).
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O propósito que me anima é o de juntar as capacidades e as vontades das duas Universidades para que possamos ajudar os nossos povos a colocar-se de novo nos lugares cimeiros do conhecimento científico, porque este é o caminho da libertação do homem e do desenvolvimento dos povos.
3. – Se não me engano, foi o domínio dos conhecimentos científicos mais avançados daquele tempo que permitiu a portugueses e espanhóis darem novos mundos ao mundo (como escreveu o nosso Camões).
Foi aqui bem perto, em Tordesilhas, que, em 7 de junho de1494, D. João I e os Reis Católicos assinaram, “em nome de Deus Todo Poderoso”, o Tratado que dividiu o mundo entre os nossos países.
Na Espanha, o Siglo de Oro estendeu-se de 1500 a 1650, com uma plêiade de nomes de repercussão mundial. Para Portugal, este ciclo de glória encerrou-se logo em 1580, quando Filipe II de Espanha se tornou também Rei de Portugal.
Mas foi neste período que a Universidade de Coimbra atingiu um dos pontos mais altos da sua História.
Com efeito, em 1560, o Colégio das Artes de Coimbra foi encarregado de redigir o famosíssimo Cursus Philosophicus Conimbricensis, que conheceu centenas de edições posteriores em todo o mundo e viria a ser adotado em toda a Europa, na China, na Índia, no Japão, no Brasil e na América Latina. Por ele estudaram Descartes, Espinosa, John Locke, Leibniz e Hobbes, sendo considerado, até meados do séc. XIX, uma obra de referência.
Como disse há pouco, foi também neste período que ensinou em Coimbra o Doutor Exímio Francisco Suárez, justamente considerado um dos nomes maiores da chamada “Escola de Coimbra”, onde escreveu algumas das suas obras mais importantes.
Em Defensio Fidei Catholicae, contestou a teoria da origem divina do poder real, antecipando, de algum modo, a teoria do contrato social de Rousseau.
Mas o seu De Legibus foi talvez ainda mais importante, sendo por muitos considerado a pedra angular do moderno Direito Internacional, graças à influência que exerceu em autores como Grotius, Descartes, Leibniz e Pufendorf.
4. – As viagens atlânticas de portugueses e espanhóis, a partir do séc. XV, fizeram de nós os responsáveis pela primeira onda de globalização.
O desenvolvimento científico e tecnológico tornou o mundo mais pequeno, alargou as fronteiras do trânsito de pessoas e do comércio de mercadorias, e a mundialização do comércio revolucionou a vida na Europa e no mundo.
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As vítimas desta primeira onda de globalização foram os povos colonizados, que sofreram a pilhagem das suas riquezas, o tráfico de escravos, a destruição das suas culturas, o genocídio em massa.
Ninguém defende, porém, que estes últimos episódios foram a consequência inevitável do desenvolvimento da ciência e da tecnologia que permitiu dar “novos mundos ao mundo” e mostrar que a terra é redonda, com a dimensão que hoje conhecemos.
5. – Uma segunda onda de globalização teve lugar no último quartel do século XIX, impulsionada pela revolução científica e tecnológica no domínio das fontes de energia, nos transportes, nas comunicações, uma revolução que encurtou as distâncias, facilitou a mobilidade de pessoas e bens, dilatou os mercados, unificou o mercado mundial.
A concentração e a centralização do capital então registada conduziu à monopolização do capital, e esta desencadeou o processo de corrida às colónias e de partilha dos territórios coloniais entre as grandes potências, que teve na célebre Conferência de Berlim (1884/1885) o seu momento mais simbólico.
O mundo ficou mais pequeno e o capitalismo entrou numa nova fase, consolidando-se como sistema dominante à escala mundial. Mas as crises cíclicas tornaram-se mais frequentes e mais agudas, e passaram a ser crises mundiais.
A corrida às colónias e o recrudescimento do colonialismo, com o início da exploração económica sistemática dos territórios colonizados, marcaram profundamente a História contemporânea.
Em primeiro lugar, os territórios dominados foram integrados à força, como economias dominadas, nas teias do mercado mundial unificado, subordinados à lógica da acumulação do capital à escala mundial.
Os povos destes territórios pagaram, com a sua colonização, a sua dependência, o seu desenvolvimento impedido (ou desenvolvimento perverso) uma parte importante dos custos do desenvolvimento das potências capitalistas e da sua ‘sociedade da abundância’.
Em segundo lugar, a luta de interesses entre as potências capitalistas (que a corrida às colónias pôs a nu), acabou por conduzir o mundo às duas guerras mundiais que marcaram dramaticamente o século XX.
Ninguém pretenderá, no entanto, que a corrida às colónias, a emergência do imperialismo e a agudização dos conflitos inter-imperialistas foram a consequência incontornável do desenvolvimento científico e tecnológico então verificado.
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6. – O nosso tempo está a ser marcado pela terceira onda de globalização, possível graças à revolução científica e tecnológica registada no último meio século.
A chamada globalização é um fenómeno complexo, que se apresenta sob múltiplos aspetos (de ordem filosófica, ideológica e cultural), mas que tem no terreno da economia a chave da sua compreensão e a área estratégica da sua projeção, caraterizando-se essencialmente pelo domínio do capital financeiro sobre o capital produtivo.
Keynes já chamara a atenção para os perigos de uma situação deste tipo. Entendendo que “o capitalismo privado está em declínio como meio de resolver o problema económico”, defendeu a necessidade de “muito mais planeamento central do que o que temos presentemente.”
Comparando as bolsas a casinos, propôs uma forte tributação dos ganhos das transações bolsistas, a par de uma política de juros baixos que provocasse a eutanásia dos rendistas.
Defendeu, sobretudo, uma certa coordenação pelo estado do aforro e do investimento de toda a comunidade, porque estas questões “não devem ser deixadas inteiramente à mercê de juízos privados e dos lucros privados.” E defendeu mesmo “uma certa socialização do investimento.”
7. – Mas a verdade é que, a partir da década de 1970, a desregulação do setor financeiro abriu as portas ao capitalismo de casino.
O processo de globalização financeira criou um mercado único de capitais à escala mundial, no seio do qual rege o princípio da liberdade absoluta de circulação de capitais.
O resultado foi uma enorme aceleração da mobilidade geográfica dos capitais, que provocou, à escala mundial; o incremento desenfreado da especulação; a turbulência nas bolsas de valores e nos mercados de câmbios; grande instabilidade e incerteza das taxas de juro e das taxas de câmbio; crises recorrentes nas economias de vários países.
Provocou igualmente uma onda sem precedentes de concentrações, de fusões e de aquisições de empresas financeiras, dando origem ao desenvolvimento de poderosos conglomerados financeiros, cuja ação predadora tem forçado vários países a não tributar os rendimentos do capital.
Este desenvolvimento tornou mais complexas e difíceis a regulação e a supervisão; abriu o caminho à propagação contagiosa dos fatores de risco; promoveu a convergência e a acumulação do risco em um núcleo mais restrito de centros de decisão e facilitou o contágio dos riscos entre os vários componentes do mesmo grupo,

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agravando o risco sistémico, o risco global de desmoronamento do sistema financeiro à escala mundial.
O desenvolvimento dos mercados de produtos financeiros derivados multiplicou o capital fictício e alimentou a especulação com a vida de milhões de pessoas. Acertou em cheio Jacques Chirac quando, em outubro/1995, depois de resolvida “a primeira grande crise dos mercados globalizados”, que teve como protagonista o peso mexicano, veio a público proclamar que os especuladores são “a sida da economia mundial.”
8. – A globalização neoliberal assenta na livre circulação de todo o tipo de bens e serviços, capitais e tecnologia.
Mas esta liberdade não se aplica aos trabalhadores: os grandes centros imperiais fazem tudo para evitar uma nova ‘invasão dos bárbaros’.
Esta última onda de globalização trouxe consigo um elemento novo, que não existia em 1916, quando Lenine publicou o famoso ensaio sobre O Imperialismo.
Refiro-me à mundialização do mercado da força de trabalho, que colocou à disposição dos grandes empregadores um enorme exército de reserva de mão-de-obra, que constitui um estímulo poderoso à deslocalização de empresas, em busca de mão-de- obra mais barata e sem direitos, alterando a correlação de forças, à escala mundial, em sentido contrário aos interesses e aos direitos dos trabalhadores.
“Imaginemos, por um momento – escreve Joseph Stiglitz –, como seria o mundo caso houvesse livre mobilidade da força de trabalho, mas nenhuma mobilidade do capital.” Esta a resposta: “Os países competiriam para atrair trabalhadores. Prometeriam boas escolas e um bom ambiente, assim como impostos altos sobre o capital.”
Mas o mundo globalizado em que vivemos não se apresenta deste jeito. A vitória da “contra-revolução monetarista” abriu o caminho ao reino do deus-mercado, esquecendo deliberadamente que o mercado não é um mecanismo natural, mas um produto histórico, uma instituição social, em último termo, uma instituição política, como o estado.
Os neoliberais de todos os matizes convenceram-se, mais uma vez, de que o capitalismo tinha garantida a eternidade, podendo dispensar o compromisso em que assentam as políticas keynesianas. Milton Friedman condenou como inimigos internos “os homens de boas intenções e de boa vontade que dese¬jam reformar a sociedade (...) e obter grandes transformações sociais.” Abria-se a porta ao fascismo de mercado, de que falava Paul Samuelson, já em 1980, numa conferência proferida no México.
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O Consenso Keynesiano foi substituído pelo chamado Consenso de Washington. O neoliberalismo consolidou-se como ideologia dominante. E o neoliberalismo não é o produto inventado por uns quantos ‘filósofos’ que não têm mais nada em que pensar. O neoliberalismo é o capitalismo na sua essência de civilização das desigualdades; o neoliberalismo é a expressão ideológica da hegemonia do capital financeiro sobre o capital produtivo, hegemonia que alimenta a ditadura do grande capital financeiro que carateriza este nosso tempo.
9. – O discurso dominante diz-nos que a globalização é a consequência necessária e inevitável do desenvolvimento científico e tecnológico, como que um dado incontornável da nossa existência.
Este é, a meu ver, um perigoso discurso ideológico, que esconde a realidade, porque não tem interesse em analisá-la criticamente.
Nos primeiros tempos da revolução industrial os operários viram nas máquinas o seu ‘inimigo’ e por isso as destruíram e sabotaram. Cedo compreenderam, porém, que o seu inimigo de classe nunca poderiam ser as máquinas, mas uma outra classe social.
Seria imperdoável que cometêssemos hoje o mesmo erro. A globalização neoliberal é o resultado de opções políticas, e as políticas neoliberais não podem ser consideradas uma consequência inevitável da revolução científica e tecnológica. Do mesmo modo que o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaqui ou a guerra química praticada pelas forças americanas no Vietnam foram o resultado de opções políticas, não a consequência inevitável do desenvolvimento da Física Nuclear e da Química.
A origem dos nossos males não é o desenvolvimento científico que torna possíveis alguns dos instrumentos da ‘política neoliberal globalizadora’, mas o neoliberalismo que a alimenta, a estrutura dos poderes em que ela se apoia, os interesses que serve, cada vez mais os interesses da pequena elite do grande capital financeiro-especulador. O que aflige o mundo são as políticas de globalização neoliberal, que servem um projeto político concebido e levado a cabo de forma consciente e sistemática por todas as instâncias do poder político, e apoiado, como nunca antes na História, pelo poderoso arsenal dos aparelhos produtores e difusores do pensamento único dominante.
10. – As armas de destruição maciça de que falou Warren Buffet não são o resultado inevitável do desenvolvimento científico e tecnológico. Elas foram inventadas e produzidas pelo capital financeiro, com o apoio ativo dos estados nacionais e das organizações internacionais que detêm o poder político.
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A “globalização assimétrica”, fruto das políticas neoliberais – sublinha Joseph Stiglitz – corresponde aos interesses das grandes empresas que vivem de rendas e que “condicionam a máquina política”, conseguindo que os estados “definam as regras da globalização de forma a aumentar o seu poder negocial com os trabalhadores.”
É a política – insiste o Prémio Nobel americano – que “determina as regras do jogo económico”, porque “os mercados são modelados pela política” e as “regras do jogo político são moldadas pelos 1% do topo.”
“A globalização – conclui Stiglitz –, tal como tem sido defendida, parece frequentemente substituir as antigas ditaduras das elites nacionais por novas ditaduras das finanças internacionais.”
Sociedades como estas não podem considerar-se sociedades democráticas, porque elas configuram – segundo o diagnóstico de Ulrich Beck – uma situação caraterizada pela “assimetria entre poder e legitimidade. Um grande poder e pouca legitimidade do lado do capital e dos estados, um pequeno poder e uma elevada legitimidade do lado daqueles que protestam.”
Estas são as consequências das políticas neoliberais prosseguidas por todos aqueles que, em certo momento histórico, operaram um verdadeiro “golpe de mercado”, ao aceitarem “substituir os princípios democráticos pelas leis do mercado.” Cito Federico Mayor Zaragoza.
11. – Perante a crise que ‘rebentou’ em 2007/2008, até Sarkozy veio a público proclamar a necessidade de “uma refundação global do capitalismo”, porque “a ideologia da ditadura dos mercados morreu com a crise.” Outros disseram: “o neoliberalismo morreu.”
O que sabemos é que, depois da falência do Lehman Brothers, se decretou, nos EUA e na Europa, que os bancos não podem falir, sobretudo os que são too big to fail.
Inventava-se o capitalismo sem risco e sem falências.
A crise deu novo impulso às políticas de globalização neoliberal, mas estas políticas agravaram a crise para além dos limites toleráveis e instalaram o capitalismo do crime sistémico: na síntese feliz de The Economist, os bancos não são apenas too big to fail, são também too big to jail.
A Europa é um bom exemplo disto mesmo.
Documentos e declarações oficiais da UE não escondem a responsabilidade dos grandes bancos no desencadear da crise e no seu aprofundamento.
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Quando vieram a público os crimes de falsificação das taxas Libor e Euribor (verdadeiros crimes contra o deus-mercado), altos responsáveis da UE falaram de “comportamento escandaloso” e de “atividades criminosas” do setor bancário, falaram de “banksters” e de “dinheiro organizado”, recordando talvez o aviso de Roosevelt, segundo o qual é mais perigoso permitir o domínio da política pelo “dinheiro organizado” do que confiar o governo do mundo ao “crime organizado”.
12. – O neoliberalismo perdeu toda a credibilidade no plano teórico.
No contexto europeu, muitos autores têm mostrado que as políticas neoliberais são contrárias às Constituições de vários-membros e a tratados internacionais a que estes e a UE se encontram vinculados.
E várias instituições internacionais têm criticado com severidade essas políticas: a OIT; o Comité Europeu dos Direitos Sociais e a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa; o TJUE.
Apesar disso, o neoliberalismo continua a ser o guia das políticas europeias.
Em 2012, um jornal inglês escrevia que “a mania da austeridade de Ângela Merkl está a destruir a Europa.”
Em 2014, um ex-assessor do Presidente da Comissão Europeia veio a público dizer que as políticas de austeridade punitiva foram impostas pelo “poder político dos bancos franceses e alemães”, no quadro de “uma relação quase corrupta entre bancos e políticos”, que leva “os Governos a identificar os bancos como campeões nacionais a proteger (...), colocando os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos.”
Paul Krugman não hesitou em defender que as políticas neoliberais “exigem sacrifícios humanos em honra de deuses invisíveis.”
E Ulrich Beck alertou: tais políticas “salvam bancos com quantias de dinheiro inimagináveis, mas desperdiçam o futuro das gerações jovens”. Talvez por isso, “os governantes votam a favor da austeridade, as populações votam contra”.
Nesta ‘Europa’ dividida em países credores e países devedores, estes últimos – sublinha Beck – constituem “a nova classe baixa da UE” e “têm de aceitar as perdas de soberania e as ofensas à sua dignidade nacional”, condenados a este dilema: na melhor das hipóteses, federalismo; na pior das hipóteses, neocolonialismo.
Venha o diabo e escolha, digo eu.
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Em 2015 um grupo de economistas e universitários de todo o mundo caraterizaram esta política como “uma política de ameaça, de ultimato, de obstinação e de chantagem”, que “significa, aos olhos de todos, um fracasso moral, político e económico do projeto europeu.”
Neste mesmo ano, Jean-Claude Juncker confessou publicamente que as políticas de austeridade regeneradora são políticas que “pecam contra a dignidade dos povos.” Infelizmente, continuou a pecar, não extraindo quaisquer consequências da sua confissão, talvez por concordar com Joshcka Fisher: “ninguém pode fazer política contra os mercados”.
É a abdicação da cidadania e da democracia, deixando o campo livre à ditadura do grande capital financeiro.
13. – Em 1953, dirigindo-se a jovens universitários alemães, Thomas Mann deixou-lhes este apelo: façam uma Alemanha europeia, rejeitem a ideia de uma Europa alemã.
Hoje – escreveu Ulrich Beck – “a Europa tornou se alemã”. Em novembro/2011, o secretário-geral do partido da Sra Merkel proclamou, num Congresso do seu partido: “Agora na Europa fala-se alemão”. Em 2012 o pautado Jean-Claude Juncker reconhecia que a Alemanha “trata a zona euro como se fosse uma sua filial.”
E são autores alemães os que vêm revelando maior preocupação quanto às ameaças da Europa alemã. Habermas alerta: a Alemanha está a perder “a consciência de uma herança histórico moral comprometedora” que, durante alguns anos, ditou uma atitude de “moderação diplomática e disponibilidade para adotar também as perspetivas dos outros.” Wolfgang Streeck carateriza a Europa alemã como uma “catástrofe política e económica”, uma ‘Europa’ que “viola as condições fundamentais de uma sociedade europeia na qual valha a pena viver.” Mais longe vai Joschka Fischer: “A Alemanha destruiu-se – a si e à ordem europeia – duas vezes no século XX. (...) Seria ao mesmo tempo trágico e irónico que uma Alemanha restaurada (...) trouxesse a ruína da ordem europeia pela terceira vez.”
A Europa de Vichy deveria ter em conta estas advertências, abandonar o colaboracionismo e passar à resistência. A História não se reescreve, mas também não se apaga. Não tenho tanta certeza de que não se repita. E todos sabemos que, quando se repete, é sob a forma de farsa ou sob a forma de tragédia.
Por isso, se queremos evitar a tragédia, é indispensável preservar a memória: a 1a Guerra Mundial não ocorreu porque um nacionalista sérvio matou um arquiduque numa rua de Sarajevo; o nazi-fascismo não se confunde com a personalidade psicopática e com as ideias criminosas de Adolf Hitler. Mas é fundamental também
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perceber que os perigos associados às políticas neoliberais dos nossos dias não se confundem com a “mania da austeridade” da Sra Merkl e que nada se resolve diabolizando a Sra Merkl ou pondo bigodes à Hitler nos seus retratos.
14. – Pouco depois da aprovação do Tratado Orçamental, David Cameron afirmou que ele traduzia o propósito de tornar ilegal o keynesianismo.
Creio, porém, que é necessário ir mais longe. Este Tratado, “um modelo político de marca alemã” (como sublinha Habermas), configura um verdadeiro “golpe de estado europeu”, que pode mesmo ilegalizar a democracia.
Joseph Stiglitz recordava há tempos o que todos já sabíamos: “Durante sessenta anos, nenhum economista respeitável admitiu que uma economia que se encaminha para uma recessão deve ter um um orçamento equilibrado”, certamente porque, “praticamente, não há exemplos de países que tenham recuperado de uma crise através da austeridade.”
Ora o Tratado Orçamental vem transformar em normas jurídicas de tipo constitucional a regra de ouro das finanças sãs e outras regras impostas pelos Tratados estruturantes da UE (que Romano Prodi, enquanto Presidente da Comissão Europeia, classificou de “estúpidas” e “medievais”). Todos sabemos, porém, que estas regras não passam de pontos de vista doutrinários em matéria de política económica: são a síntese das opções políticas que têm servido de base à política de globalização neoliberal; são as regras do jogo ‘codificadas’ no Consenso de Washington e impostas à economia real e aos cidadãos pelo grande capital financeiro e pelo poder político ao seu serviço.
Habermas sublinha, com inteira razão, que as normas deste Tratado “afetam competências fundamentais dos estados membros e dos seus Parlamentos”, deixando a suspeita de “os governos nacionais serem apenas atores no palco europeu” e de os parla-mentos nacionais “se limitarem a aprovar obedientemente (...) as decisões prévias tomadas noutro lugar.”
No plano político, Felipe González partilha desta mesma preocupação: “Os cidadãos pensam, com razão, que os governantes obe¬decem a interesses diferentes, impostos por poderes estranhos e superiores, a que chamamos mercados financeiros e/ou Europa. É perigoso, pois tem algo de verdade indiscutível.”
Estas regras alemãs são normas travão que visam instaurar uma política de austeridade perpétua, garantindo que os eleitos para cargos políticos não tenham a veleidade de pretender honrar o mandato popular que receberam dos seus eleitores, prosseguindo políticas que não respeitem as regras do jogo.
Este império das regras (que a crise do euro acentuou) “tirou definitivamente a legitimidade à Europa neoliberal.” (Habermas)
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15. – Procura-se fazer passar a ideia de que o neoliberalismo é um sistema libertário, que dispensa o estado. Ora eu penso, como disse há pouco, que o neoliberalismo é o capitalismo na sua essência, e o capitalismo não pode dispensar a atuação do estado capitalista.
O liberalismo económico fun¬cionou nas condições históricas dos séculos XVIII e XIX. Mas o mundo mudou. À medida que os trabalhadores foram conquistando o direito ao sufrágio universal e a generalidade dos direitos civis e políticos, o laissez faire começou a experimentar dificuldades crescentes, que culminaram com a Grande Depressão e o risco de um colapso iminente do pró¬prio capitalismo.
Nos anos 1950, Raúl Prebisch (o primeiro Presidente da CEPAL) compreendeu que, no contexto da América Latina, o liberalismo só poderia ser levado à prática pela força das armas.
Analisando a experiência do thatcherismo, Andrew Gamble conclui que “a doutrina chave da Nova Direita e do projeto político que ela inspirou é a economia livre e o estado forte”, capaz de “restaurar a auto¬ridade a todos os níveis da sociedade” e dar combate aos inimigos externos e aos inimigos internos.
Mais recentemente, Wolfgang Streeck fala de um processo de esvaziamento da democracia, cujo objetivo é conseguir “um primado duradouro do mercado sobre a política” e “uma imunização do mercado a correções democráticas”. O primado duradouro do mercado sobre a política torna “necessário neutralizar a democracia, entendida no sentido da democracia social (...)”, “assim como levar por diante e concluir a liberalização no sentido da liberalização hayekiana, isto é, como imunização do capitalismo contra intervenções da democracia de massas.” A imunização do mercado a correções democráticas” pode ser levada a cabo “através da abolição da democracia segundo o modelo chileno dos anos 1970” [opção que entende não estar disponível atualmente], ou então “através de uma reeducação neoliberal dos cidadãos”.
Conclusão de Wolfgang Streeck: “já ficou várias vezes demonstrado que o neoliberalismo necessita de um estado forte que con¬siga travar as exigências sociais e, em especial, sindicais de interferência no livre jogo das forças do mercado. (...) O neoliberalismo não é compatível com um estado democrático”. [fim de citação]
Estas reflexões de Wolfgang Streeck obrigam-nos a levar a sério um outro ponto: estas soluções ’brandas’ (apesar de ‘musculadas’ e até violentas) só serão prosseguidas se “o modelo chileno dos anos 1970” não ficar disponível para o grande capital financeiro. Se as condições o permitirem (ou o impuserem...), o estado capitalista pode vestir-se e armar-se de novo como estado fascista, sem máscaras.
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A crise que aflige a Europa é também, perigosamente, uma crise da democracia. Está se a construir um novo Leviathan, uma forma de “poder político que já não se separa do poder económico e, sobretudo, do poder financeiro” (Étienne Balibar), reduzindo a política à mera aplicação mecânica de regras iguais para todos, regras que são, por isso mesmo, a negação da política (e da liberdade de decisão que ela pressupõe, com a correspetiva responsabilidade) e a morte da democracia.
16. – Vivemos num tempo de profundas contradições, tempo de grande esperança e de grande desespero. O advento do capitalismo provocou um enorme desenvolvimento das forças produtivas, e, acima de tudo, um extraordinário desenvolvimento do próprio homem, enquanto produtor e titular de ciência, de tecnologia, de informação. A Humanidade produz hoje muito mais do que o necessário para satisfazer condignamente as necessidades de todos.
Amartya Sen sustenta que o facto de haver pessoas que passam fome – e que morrem de fome... – só pode explicar-se pela falta de direitos e não pela falta de bens. O problema fundamental que se nos coloca não é, pois, o da escassez (como pretendem os marginalistas), mas o da organização da sociedade.
Comentando este ponto de vista de Sen, pergunta Dahrendorf: “Porque é que os homens, quando está em jogo a sua sobrevivência, não tomam simplesmente para si aquilo em que supostamente não devem tocar, mas que está ao seu alcance? Como é que o direito e a ordem podem ser mais fortes que o ser ou não ser?”
Com Amartya Sen, direi que a resposta está na falta de direitos. Ou na falta de poder. Esta é a questão essencial.
Ao equacionar esta problemática, é natural a pergunta de Dahrendorf: “o que seria preciso para modificar as estruturas de direitos, de modo a que mais ninguém tivesse fome?”
Esta é uma pergunta que a ciência económica dominante não faz, porque não se consente analisar as consequências de uma mudança de ordem social. Mas a própria pergunta contém a resposta: é necessário modificar as estruturas de direitos (i. é, as estruturas do poder). Acontece que também o poder, as relações de poder e as estruturas do poder estão fora da análise da mainstream economics.
A meu ver, a ciência económica não pode continuar a adiar a busca de um outro padrão de racionalidade. Tem de assumir-se de novo como economia política, como um ramo da filosofia social”: a ciência económica “tem mais necessidade de filósofos do que de econometristas.”
17. – Apesar da ‘ditadura global’ que carateriza este tempo de pensamento único, escreveu há tempos The Economist:
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“os que protestam contra a globalização têm razão quando dizem que a questão moral, política e económica mais urgente do nosso tempo é a pobreza do Terceiro Mundo. E têm razão quando dizem que a onda de globalização, por muito potentes que sejam os seus motores, pode ser travada. É o facto de ambas as coisas serem verdadeiras que torna os que protestam contra a globalização tão terrivelmente perigosos.”
Num momento de lucidez, um dos faróis do neoliberalismo veio dizer o que nós já sabíamos: os motores da globalização neoliberal podem ser parados ou mesmo postos a andar em marcha atrás; a inevitabilidade da globalização neoliberal é um mito; a tese de que não há alternativa é um embuste.
Por mim, acredito, com Eric Hobsbawm, que “o futuro não pode ser uma continuação do passado, e [que] há sinais, tanto externamente como internamente, de que chegámos a um ponto de crise histórica. (...) O nosso mundo corre o risco de explosão e de implosão. Tem de mudar.”
E acredito que podemos construir um mundo de cooperação e de solidariedade, um mundo capaz de responder satisfatoriamente às necessidades fundamentais de todos os habitantes do planeta.
Por isso insisto: este é também um tempo de esperança.
Sabemos que as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor: o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o ‘motor da história’.
Mas a consciência disto mesmo não tem que matar o nosso direito à utopia e o nosso direito ao sonho. Porque a utopia ajuda a fazer o caminho e o sonho comanda a vida.
Parafraseando Fernando Pessoa, direi que sonhar é preciso. Mesmo em tempos difíceis. Principalmente em tempos difíceis, como nos diz o poeta, compositor e cantor brasileiro Chico Buarque, que, em tempos de ditadura, sonhava e cantava o seu “sonho impossível”, porque acreditava nele: “Lutar, quando é fácil ceder / (...) Negar, quando a regra é vender / (...) E o mundo vai ver uma flor / Brotar do impossível chão”.
Sobretudo, não esqueçamos nunca a lição de Antonio Machado: caminante, no hay camino; se hace camino al andar..


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