O Zé Tengarrinha morreu há um mês. Na altura nada disse com mais essa perca na minha vida, como é sempre o desaparecimento de um amigo. Não disse porque inevitavelmente, movido pela urgência, iria sobrepor e repetir o que sobre o sucesso se ia escrevendo. Conhecia-o razoavelmente até nos tornarmos amigos. Os nossos caminhos cruzavam-se com frequência nas lutas públicas contra o fascismo, pela democracia e liberdade. Tudo mudou quando ficámos vizinhos, no mesmo prédio, no mesmo andar. Um edifício muito particular na rua Penha de França, recuado em relação ao perfil da rua, uma situação que proporcionava e proporciona uma vista deslumbrante a 360º sobre Lisboa. Ficámos mais próximos, a amizade a adubar-se. O que pressupunha ouvindo as suas intervenções públicas, adquiria outra dimensão. O Zé Tengarrinha na intimidade do nosso convívio sem relógios a controlarem-nos, era ainda mais incisivo e claro, sempre naquele tom sereno que o caracterizava. Não abdicava um milímetro na sua argumentação e não abdicava para melhor ouvir os argumentos contrários e rever ou não as suas teses. O que era difícil era não se acabar numa ampla convergência de opiniões.
Com essa nossa proximidade territorial as artes, as letras, a música eram campos de longas derivas em tarde e noites bem regadas. O Zé Tengarrinha tinha cultura vasta e sofisticada. Muita leitura e muitas revelações literárias dele sou devedor. Algumas de todo inesperadas. Ele tinha uma colecção de uns “lençóis” de papel com poemas de fazer chorar as pedras da calçada que antigamente, na minha infância, os acompanhantes dos cegos que tocavam acordeão cantavam com requebros sentimentais que mais acentuavam as desgraças anunciadas. “Poemas” que o Zé Tengarrinha dissecava com humor finíssimo colocando-os no contexto da alienação da poesia popular.
Semanas antes do 25 de Abril bem reconhecíveis e intrusivos ferrabráses da PIDE vigiavam o prédio onde morávamos. Uma vigilância ostensiva, uma evidente manobra de intimidação com fim imprevisível. Não sabíamos por onde andávamos subterraneamente embora o cálculo fosse fácil. Nem sabíamos, nem nos interessava saber se essa actividade eram de ramos da mesma ramada já que o tronco certamente não seria outro. Conjecturámos se aquele cerco vigilante seria para um, para ou outro ou para os dois. Finalmente aquela gente decidiu-se e o Zé Tengarrinha foi preso. Preso pela sexta vez. A 26 de Abril conheceu a liberdade por que sempre tinha lutado e iria continuar a lutar. Apesar do vendaval que foram os anos seguintes ao 25 de Abril, encontrávamo-nos com regularidade, as vertentes dos convívios centravam-se natural e obviamente sobretudo na área política. Adivinhava-se no Zé Tengarrinha uma inquietação subliminar pelo tempo que a actividade política lhe retirava à investigação científica que era de facto a sua paixão, até por ter voltado a ser professor de história na Universidade de Lisboa de que fora afastado pela ditadura.
Pelas curvas da vida perdemo-nos de vista. Quase simultaneamente abandonámos o prédio da rua Penha de França, onde ainda hoje vivem as nossas ex-mulheres. Por vários acasos fomos para fora de Lisboa. Foi conhecendo muito parcial e imprecisamente o seu percurso político, pressupondo as mágoas que teria mas que nunca publicamente expôs. Muitos anos depois contactei-o para que interviesse numa série de colóquios que estava a organizar. Recusou por indisponibilidade de tempo, não se queria desviar dos trabalhos de investigação em que estava empenhado. Não queria afastar-se do seu local de trabalho e do computador onde registava as conclusões que retirava das leituras de documentação e livros que lhe ocupavam o resto das horas do dia. Mesmo assim foi mais de uma hora de feliz conversa que lhe abriram um buraco nesse dia. Estava a trabalhar na História do Movimento Operário em Portugal, deveria ser esse o nome final da investigação que estava a realizar submetendo-se a uma disciplina operária. Pelo que publicou só se poderiam esperar novas perspectivas, novos olhares a iluminar a história e a revisar teorias estabelecidas como já o tinha feito com Nova História da Imprensa Portuguesa, José Estevão: o Homem e a Legislação do Brasil colonial, O início da Ofensiva Operária em Portugal, para referir três notáveis estudos. Muito trabalho deve existir nos seus arquivos que não devia ser negligenciado. Mesmo inacabada essa História do Movimento Operário em Portugal deve ser fundamental para a compreensão dos períodos que teve tempo de estudar e sementes vitais lhe dar continuidade.
Quando fez oitenta anos, a Helena Pato, organizou uma homenagem. Uma bela jornada de confraternização no que foi o mais que justo reconhecer um homem que marca uma época e é uma das referências intelectuais e políticas do séc. XX em Portugal.
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