Ano
Europeu (da mercantilização) do Transporte Ferroviário
Francisco
Asseiceiro
Membro
da Comissão para os Assuntos Económicos do PCP (CAE)
Com
mais de trinta anos de imposições para mercantilizar os caminhos de ferro,
vinte dos quais de implementação dos quatro pacotes legislativos, a Comissão
Europeia, leia-se as multinacionais do sector, decidiram designar 2021 como o
Ano Europeu do Transporte Ferroviário, uma vez que representa o primeiro ano
completo de aplicação das regras Quarto Pacote Ferroviário (1).
Têm
motivos para a celebração. Nele ficou assegurado o acesso das empresas de
transporte ferroviário estabelecidas na UE a todos os tipos de serviço de
transporte de passageiros na UE a partir de dezembro de 2020... e a
obrigatoriedade de concursos para contratos de serviços públicos ferroviários
(2).
Os
utentes e os trabalhadores do caminho de ferro nada têm para celebrar, apenas
motivos para continuar a lutar por melhor transporte ferroviário e melhores
condições de trabalho.
Muito
do que é de valorizar tem o contributo dessa luta na direcção oposta aos
objectivos dos pacotes ferroviários: a reintegração da EMEF na CP, alguma
contratação de novos trabalhadores, a reabertura das oficinas de Guifões e a
reactivação da actividade formativa, o evidente aumento da capacidade de
manutenção, recuperação e modernização do material circulante, designadamente o
que estava encostado há dezenas de anos e o recentemente adquirido para
reutilização e o aumento da oferta e da fiabilidade de transporte pela CP.
E
é sintomático, na difusão pública dos objectivos do Ano Europeu do Transporte
Ferroviário, serem apresentadas (3) intenções essencialmente de apelo ao uso do
caminho de ferro, de anúncio de investimentos e aquisições de material
circulante, que deslizam no tempo, de aposta do Governo na ferrovia, sempre
evidenciando as enormes vantagens que lhe são reconhecidas, como se tratasse de
descobertas de hoje, deixando na sombra aqueles objectivos de classe que
celebram.
Também
no nosso país a política de direita precisa de assim cavalgar este estilo de
onda de aposta no caminho de ferro que faz esquecer e disfarçar as suas
responsabilidades com o apoio no PE e a execução aqui, por PS/PSD/CDS, da
devastação que assolou o caminho de ferro com o encerramento de 1250 km de
linhas durante 25 anos, o último dos quais em 2013, e com o desmembramento da
CP e a sua asfixia financeira, sem meios para renovação de material circulante,
causa principal da supressão de 18 000 comboios em 2018.
Neste
processo recuou-se mais de 20 anos, nas diversas vertentes da conceptualização
à construção, nos meios e nas capacidades da engenharia de infraestrutura e de
material circulante, a par do desinvestimento, falta de trabalhadores em
diversas áreas, aumento do trabalho externo, da precariedade, do trabalho
temporário e de desvalorização dos salários e das condições de trabalho.
O
Plano Estratégico de Transportes dos tempos do Pacto de Agressão da troika
assumia que o transporte ferroviário de passageiros não era uma prioridade para
o país e que a prioridade era ligar os portos à Europa, passando por cima de
Portugal.
Ainda
bem que se voltou a considerar a ferrovia como uma questão estratégica para o
país e no contexto ibérico. Esta alteração deve-se muito à consciência que vai
crescendo de que o transporte ferroviário electrificado é a solução de futuro
para o transporte massivo de passageiros e mercadorias.
A
contradição entre a degradação a que chegou o sistema ferroviário, e o que dele
é exigido para responder a necessidades estruturais do país, tem-se
recentemente traduzido em alguns avanços que reflectem certo desconforto de
quem aqui, então considerando-se no pelotão da frente da UE, concretizou a
pulverização da CP com vista à sua eliminação.
É
o que aparentemente revelam duas questões colocadas pelo Governo ao Comité
Económico e Social Europeu (CESE): i) que ensinamentos se podem retirar de
três décadas de tentativas de liberalização do sector ferroviário nos países da
UE e se ii) a separação do sistema ferroviário melhorou ou prejudicou o
seu desempenho global.
Das
respostas, inseridas em relatório (4) do CESE, elaborado a propósito do Ano
Europeu do Transporte Ferroviário, destacam-se três afirmações: a) quase
três décadas de esforços para abrir os mercados ferroviários... não produziram
os resultados globais pretendidos; b) muitos dos grandes… países da
Europa optaram por empresas ferroviárias integradas para garantir sinergias e
melhor coordenação; c) não deve ser imposta aos Estados-membros qualquer
separação entre infraestrutura e operação.
Se
as perguntas e particularmente estas respostas podem sugerir alguma reflexão no
sentido de inverter o caminho de destruição do sistema ferroviário que tem
vindo a ser seguido, o relatório do CESE desenvolve exaustivamente a
argumentação recorrente da UE de que agora é que é com mais e mais
liberalização para alcançar na ferrovia os tais resultados não atingidos em
três décadas.
Sem
romper com os pacotes ferroviários não é credível nenhuma onda de aposta no
sistema ferroviário. Para consumo interno é exibido algum apoio à CP, mas nos
compromissos com a UE não falta o dedicado apoio à liberalização, que conduz à
sua eliminação.
É
assim que o contrato de serviço público da CP para todos os serviços urbanos,
regionais e de longo curso, foi anunciado, para consumo interno, mas o texto
continua sem divulgação pública, embora sabendo-se (5) que o serviço do Alfa
Pendular está excluído.
Ou
seja, as multinacionais querem o serviço mais rentável da CP, e a política de
direita de PS/PSD/CDS obedece. Trata-se do serviço que gera importantes
receitas que podem ser aplicadas para a CP operar em zonas menos rentáveis no
interior do país, pelo que, sem aqueles recursos, estes serviços só poderão ser
efectuados com verbas do Orçamento de Estado, e sendo assim, os lucros das
multinacionais serão verbas extorquidas ao país.
É
à empresa pública DB alemã, que já manifestou interesse em operar o eixo
Braga – Faro, que a política de direita pretende entregar o serviço actualmente
realizado pela empresa pública CP.
A
DB alemã é hoje um conglomerado com 220 mil funcionários em mais de 500
empresas em 130 países, que em Portugal, detém a Arriva, 31,5% da Barraqueiro,
participação na TAP, na Fertágus, Metro Sul do Tejo, TST e opera mais de 3000
autocarros.
O
PCP mantém a sua posição de sempre, de luta contra a mercantilização no sector
ferroviário e pela reconstituição do sistema ferroviário nacional com a
reintegração na CP, da componente ferroviária da Infraestruturas de Portugal
(IP), a ex-Refer, do serviço de mercadorias da ex-CP Carga/Medway, do serviço
de passageiros concessionado à Fertágus e a reconstituição das capacidades de
fabrico de material circulante perdidas com o encerramento da Sorefame no mesmo
processo de liberalização. A urgência da recuperação no país da capacidade
produtiva no fabrico de comboios, pelo qual nos temos batido, revela-se
sobretudo num contexto em que haverá excesso de procura na Europa para o
fabrico de milhares de comboios com financiamento do Programa de Recuperação e
Resiliência (PRR) de cada país da UE e de outros programas.
O
caminho de ferro é um sistema composto por diversas áreas que se complementam
pelo que é fundamental, também na perspectiva de escala, a integração numa
única estrutura, que já foi e defendemos que volte a ser a CP, responsável pela
infraestrutura, pelo material circulante e pela operação.
Na
opção pelo sistema ferroviário integrado o PCP defende também a
complementaridade entre modos de transporte. A articulação complementar do
transporte público rodoviário com rebatimento no transporte público
ferroviário, sempre que justificável, é uma base estrutural de um verdadeiro
sistema de transportes. É mais eficiente, mais económico e ambientalmente mais
sustentável. Pela mesma razão a complementaridade entre o transporte aéreo e o
transporte ferroviário faz desta opção o modo mais eficiente para ligações de
curta distância como as ligações Lisboa-Porto e Lisboa-Faro.
No
apoio à mercantilização, em vez da complementaridade, a política de direita
promove no transporte público o que diz ser a concorrência entre a rodovia
privada e a ferrovia e, como se tal não bastasse, defende na liberalização
ferroviária a concorrência intramodal, portanto a concorrência dentro do
próprio sistema ferroviário.
Com
este caminho de promoção da concorrência, que alimenta e consolida os
monopólios, pretendem as multinacionais substituir nas linhas mais rentáveis o
monopólio público pelo monopólio privado.
Só
a separação da infraestrutura e da operação, primeiro passo do processo de
liberalização, custa anualmente 5.800 milhões de euros na UE28, de acordo com
estimativas de 2019 (6). Os povos pagam a festa!
De
recordar que há quase cem anos o liberalismo conduziu o centro do capitalismo à
crise dos anos trinta, a que se seguiu a Segunda Guerra Mundial. O contributo
decisivo da União Soviética na derrota do fascismo, e o prestígio do Estado
assim evidenciado, conteve o liberalismo, com a correspondente expressão nos
Caminhos de Ferro da Europa do pós-guerra: em 1950 quase todos os Caminhos de
Ferro da Europa tinham sido nacionalizados e «…são explorados directamente
pelo Estado.» (7) As duas únicas excepções eram, não por acaso, os países
europeus mais pobres de então, a Grécia e Portugal.
Os
anos que se seguiram foram de impressionante crescimento e aperfeiçoamento do
caminho de ferro, desde as redes urbanas de transporte público até ao
desenvolvimento da alta velocidade.
É
assim espantoso que o relatório do CESE refira que «Na verdade, inovações em
ferrovias, como ferrovias de alta velocidade, foram desenvolvidas por
operadoras estatais com apoio público» e defenda insistentemente a
continuação do processo mercantilização, afinal o que as multinacionais
decidiram celebrar neste ano europeu.
Referências
(1)
https://www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/eu-affairs/ 20210107STO95106/2021-ano-europeu-do-transporte-ferroviario
(2) TEN/727 –
EESC-2020-05425-00-00-DT-TRA (EN) 3/4
(3)
https://eurocid.mne.gov.pt/2021-ano-europeu-do-transporte-ferroviario
https://www.infraestruturasdeportugal.pt/pt-pt/centro-de-imprensa/2021-e-o-ano-europeu-do-transporte-ferroviario
https://www.cp.pt/institucional/pt/comunicacao/em-destaque/ano-europeu-ferrovia
https://www.publico.pt/2021/01/04/economia/noticia/ano-europeu-ferrovia-lisboa-capitais-nao-comboios-internacionais-1944913
(4)
https://www.eesc.europa.eu/en/ourwork/opinions-information- reports/opinions/single-european-railway-area-0
(5)
https://www.dn.pt/dinheiro/cp-recebe-90-milhoes-do-estado-para-prestar-servico-publico-11564287.html
(6)
Eduardo Garcia Alvarez – ex-Director Geral de Desenvolvimento e Estratégia da
RENFE – Jornadas Internacionales de Ingeníería para Alta Velocidad, Córdova,
2019.
(7)
Caminhos de Ferro – Instituto Superior Técnico – Segundo as lições do Prof.
Eng.º Francisco Leite Pinto. Edição da Secção de Folhas da A.E.I.S.T. –
1950-1951.
(Caixa)
Jerónimo de Sousa,
Secretário-geral do PCP, na apresentação pública de «Um plano para comprar
comboios, aumentar a oferta de transportes e reconstruir o aparelho produtivo»,
realizada pelo PCP a 6 de Abril de 2021
«…O
PCP apresenta hoje aqui uma proposta ao povo português para que se mobilizem os
recursos e meios necessários para que em Portugal se voltem a produzir comboios
que respondam não apenas às necessidades de renovação de frota que se irão
colocar nos próximos anos, mas também para a sua modernização e expansão. Uma
proposta que permite que se construa em Portugal aquilo que nos estão a obrigar
a comprar lá fora. A nossa proposta assenta, pois, em três eixos fundamentais:
1.
reconstruir um comando único ao sector ferroviário nacional (voltar a ligar a
roda ao carril, como dizem os ferroviários);
2.
apostar de facto no sector ferroviário como um sector estratégico para a
mobilidade de pessoas e mercadorias e para a melhoria do ambiente e da
qualidade de vida;
3.
aproveitar o volume de investimento necessário para reconstruir a produção
nacional de material circulante.
Nós
apontamos que nos próximos quinze anos o volume de investimento necessário em
material circulante ronde os 3,75 mil milhões de euros, cerca de 250 milhões
por ano. Parece e é muito. Podíamos dizer com verdade que é menos do que o país
entregou ao grande capital nos processos do Novo Banco ou do BPN. Podíamos
dizer, igualmente com verdade, que as parcerias público-privadas vão custar
cinco vezes mais no mesmo período. Mas preferimos sublinhar que com esse
investimento, se o Estado não se limitar a ir às compras ao mercado e antes
apostar na reconstrução da capacidade produtiva nacional, contribuirá para que
uma parte importante dele se reproduza economicamente, gerando milhares de
postos de trabalho e riqueza em Portugal, para além de permitir no longo prazo
diminuir os custos desse investimento no nosso país. É um investimento a 15
anos que permitirá dar resposta a três linhas essenciais:
1.
substituir toda a actual frota nacional para o transporte ferroviário pesado de
passageiros, que está envelhecida fruto do desinvestimento dos últimos trinta
anos;
2.
permitir aumentar a oferta de transporte ferroviário de passageiros onde tal se
coloque como necessário;
3.
rentabilizar o conjunto de investimentos na infraestrutura que estão em curso,
que estão planificados ou possam ser planificados.» (...)
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