Como salvar o capitalismo?
Agostinho Lopes
Um quadro negro do mundo e do sistema capitalista
A crise do sistema capitalista, profunda, global, densa, sistémica, com altos e baixos, continua. Os problemas dramáticos causados aos trabalhadores e aos povos decorrem do sistema e são agravados pelas respostas ensaiadas pelo capital à crise. A responsabilidade das forças da social-democracia, da direita e extrema-direita resulta da sua indefectível assumpção e defesa do sistema capitalista.
O sistema rebenta pelas costuras inchado da liquidez despejada pelos Bancos Centrais e a ajuda da especulação financeira (jogos bolsistas, banca sombra, criptomoedas, etc.) que niguém controla. Cultiva com carinho paraísos fiscais que são o inferno dos povos e o céu e a lavandaria do grande capital (e dos traficantes de armas, droga e órgãos). A crise traz permanentemente no bojo a estagnação e a recessão económicas, a agressão e a guerra.
A pandemia, o Covid-19, transformou-se num extraordinário revelador dos problemas do sistema e um potente catalisador/acelerador de tendências e desenvolvimentos que estavam em curso.
A crise faz ruir o edifício «teórico» de justificação e suporte do sistema, os seus pressupostos, axiomas e mitos económicos. Mais uma vez, o que era (parecia) sólido se desfez no ar… ou quase: a auto-regulação dos mercados, a excelência da gestão privada, o lucro como justificação do risco, o livre comércio onde todos ganham. A livre circulação de capitais permite a contaminação instantânea do planeta. Surgem absurdos/abortos económicos» do ponto de vista da economia capitalista, como as «taxas de juro negativas», ou a tese da distribuição de helicóptero de dinheiro aos cidadãos para aumentar a procura solvável. Nos EUA a Bolsa de capitais retira mais dinheiro da economia que injecta. Os que ontem eram pelo livre comércio, hoje são proteccionistas e querem «as cadeias de valor» dentro das fronteiras. Os que ontem eram pela contenção orçamental e as contas certas hoje despejam milhões em cima da economia. E até falam do Rendimento Básico Universal.
As consequências sociais são dramáticas. O crescimento brutal da desigualdade e da pobreza, pondo em causa os mitos da «meritocracia» e do «elevador social» que avariou. Verifica-se uma brutal polarização e concentração da riqueza em 1% de população mundial. Milhões de habitantes do mundo continuam a braços com a fome, a subnutrição, a doença, por carências de alimentos, água e medicamentos. Paradoxalmente, quanto mais crescem qualitativa e quantitativamente as forças produtivas, a capacidade de resposta, mais grave é a situação. Cresce o desemprego, a precariedade, a desintegração social. As sociedades são fracturadas e fragmentadas.
As consequências ambientais agravam-se pela destruição de ecosistemas, perdas da biodiversidade, predação de recursos.
As consequências políticas não são de menor monta. A democracia burguesa é atingida nos seus fundamentos e expressões partidárias. Desfaz-se o chamado centro político com punições eleitorais significativas dos partidos – sociais-democratas, conservadores, liberais e outros da política de direita, do neoliberalismo e do consenso de Washington. A crise da social-democracia aprofunda-se. A representação política fragmenta-se e rearruma-se com o ressurgimento aberto de forças da extrema-direita e partidos fascistas e nazis e o retomar de várias forças arqueológicas, anarquistas. Crescem e impulsionam-se movimentos inorgânicos, que depois evoluem/assumem formas partidárias dominadas pelo radicalismo pequeno-burguês de conteúdo social-democrata.
A principal construção do capitalismo na Europa, a União Europeia, mete água por todos os lados... mesmo se são outros os atingidos pelas acções militares do seu directório, os que se afogam.
E a guerra – sempre uma solução do capitalismo e do imperialismo para as suas crises – fez a sua aparição em força com o seu cortejo de morte e refugiados, destruição dos povos, pilhagem de países, saque de recursos. São muito elevados os riscos no horizonte da multiplicação e generalização de conflitos e agressões militares.
As contradições e antagonismos, impasses e estrangulamentos, incongruências e absurdos, taras e irracionalidades do sistema agudizados pela crise, tornam-se mais visíveis pela pandemia – o processo de produção e distribuição das vacinas é um somatório paradigmático. Um pressentimento horroroso assalta a oligarquia financeira e o grande capital: o capitalismo pode acabar. Ou pelo menos corre grandes riscos e o «bom» funcionamento do sistema – o que garante os lucros e a continuidade do capital – é posto em causa. As insuficiências e problemas da «democracia burguesa» (ou dos seus mitos) para conter a catástrofe, isto é garantir a manutenção e reprodução dos sistema, salvar o poder do capital e a exploração, levantam também preocupações. Instala-se um «capitalismo de vigilância»!
Davos, o grande reinício/«The Great Reset»
O capital (os seus titulares e os seus advogados e ideólogos) sente que as respostas avançadas até hoje não bastam. O Covid só veio agravar o quadro negro que, particularmente a partir do pico da crise em 2007/8, envolve a generalidade do mundo, e em particular as economias mais desenvolvidas, com muita contestação dos trabalhadores e povos. Acumulam-se «cargas explosivas» sociais e políticas, que perturbam e desestabilizam o sistema. Nada corre como dantes…
Ensaiam-se assim – a par de medidas económicas e políticas «tradicionais» – enormes campanhas de mistificação e diversão ideológica, com todos os instrumentos e recursos de que dispõem e divulgação sistemática, repetida, através da dúzia e meia de corporações multinacionais que dominam a comunicação global e as redes sociais. É preciso garantir que não há alternativa ao capitalismo, ao sistema capitalista. É preciso garantir, na cabeça das pessoas e dos povos, que não são possíveis outros sistemas económicos e políticos, outra forma de viver!
Um dos principais mecanismos discursivos passa por uma segmentação do sistema entre um «capitalismo bom» e um «capitalismo mau», e o fabrico da sua oposição e incompatibilidade. Infinitas e criativas adjectivações são utilizadas, para distinguir meras facetas, pormenores e características secundárias. Outras vezes apenas propõem um salto na «qualidade» do capitalismo, graduando-o e adjectivando-o em correspondência, apresentando-o como susceptível de responder aos problemas dos trabalhadores e dos povos. Estas operações semânticas, ideológicas, nunca põem em causa, naturalmente, os alicerces do sistema – relações de produção, propriedade dos meios de produção, exploração e maximização dos lucros (taxa e volume), sociedade e hierarquização de classes.
O tiro de partida desta enorme «reconstrução» ideológica – o grande recomeço/reinício/«great reset», assim lhe chamaram – não foi dado em Davos em 2020, mas teve aqui certamente um momento seminal, até pela coincidência temporal com o início da disseminação da pandemia.
O Manifesto de Davos 2020, divulgado pelo principal impulsionador do Fórum Económico Mundial, aparece com uma nitidez absoluta como uma resposta do grande capital internacional ao momento de crise do sistema capitalista, a instabilidade política e geopolítica que se vem generalizando, com fracturas como o Brexit ou a errática estratégia de Trump. Não deixa de ser sintomático que o autor Klaus Schwab (1) lembre que tinha apresentado a mesma receita há 50 anos em 1971, início de uma década também ela marcada por forte instabilidade política e avanços dos trabalhadores e povos.
O Manifesto de Davos começa pela grande interrogação: «Que tipo de capitalismo queremos?». E enuncia os três tipos/modelos de capitalismo possíveis: «o capitalismo dos accionistas», «o capitalismo de Estado» e «o capitalismo das partes interessadas». Davos pronuncia-se por este, o «capitalismo dos stakeholders».
O Manifesto de Davos aparece como uma proposta de harmonização dos interesses das classes e camadas que rodeiam e gravitam a empresa. Uma harmonia a gerir e arbitrar pelos titulares da «companhia», em auto-regulação (self-regulation) e governo. E estirpa a luta de classes, não enxergando antagonismos e contradições, nomeadamente a relação de exploração. A harmonia e a paz são possíveis entre explorados (os trabalhadores) e exploradores (os accionistas, titulares do capital). Entre o capital monopolista e as MPME fornecedoras. Entre os «consumidores» e o domínio monopolista do mercado pelas companhias. Entre a empresa e o território/comunidade/autarquia envolvente. Não se fala do papel do Estado! É a conciliação de classes sob a tutela do capital. Dependendo da boa-vontade, da voluntária decisão de assim proceder dos accionistas ou dos que em seu nome administram a «companhia». É um novo corporativismo, agora sem o Estado a arbitrar a harmonia dos interesses, uma verdadeira «corporacracia»! (2)
«Há um novo capitalismo» (J. Negócios, 25OUT19)
Esta cimeira de Davos foi antecipada pela reunião/conferência de 181 CEO das principais empresas/grupos económicos dos EUA agrupados numa chamada Mesa-Redonda dos Negócios (Business Round Table/BRT), que publicaram a 19AGO19 o manifesto «Declaração sobre a Justificação de uma Grande Empresa». Referindo a continuidade dos seus documentos anteriores (desde 1978) (3), o Manifesto da BRT, numa versão mais ambígua e eufemística do que o de Davos (mesmo assegurando o seu conteúdo e sentido estratégico), considera que a «terminologia» com que justificavam no passado a «existência de uma grande empresa não descreve (hoje) de forma precisa como nós e outros directores executivos, nossos colegas, se esforçam diariamente a fim de criar valor para todos os “stakeholders” (partes interessadas/grupos de interesse) em relação aos quais temos uma identidade de interesses numa (registe-se!) perspectiva de longo prazo.»
Mais do que alguma análise abstracta dos seus compromissos é a sua confrontação com a realidade conhecida do ambiente laboral e social de alguns desses universos empresariais que melhor desvenda a fraude ensaiada. Um exemplo só: a Amazon, uma das cavaleiras da nova Tábula Redonda, é bem conhecida pelas condições laborais esclavagistas que impõe e o seu horror à sindicalização dos seus trabalhadores! «dignidade e respeito» pelos seus colaboradores, dizem eles!!! Uma coisa é certa: tudo isto se passa na nuvem etérea da empresa ética, da boa vontade do Conselho de Administração, dos CEO e accionistas e, naturalmente, numa «identidade de interesses numa perspectiva de longo prazo»! Nada de regulamentações e legislações e menos ainda de fiscalização estatal.
Em Portugal diga-se, apesar da BRT Portugal surgida em Junho último (4), esta conversa ficou por aqui... Como alguém assinalava parece que a morte do velho capitalismo foi muito exagerada. (5)
A social-democracia também quer resgatar o capitalismo
A social-democracia também quer resgatar o capitalismo das profundas do inferno da (assumida) degradação para onde o atirou o neoliberalismo, a financeirização, Thatcher e Reagan… e Blair. É difícil que possam fazer uma abordagem séria da questão. Tal exigiria uma reflexão crítica sobre as causas das políticas que na década de 70 do passado século promoveram a passagem do «paraíso perdido dos 30 gloriosos do pós-guerra» (é como avaliam esse período) para o desastre em que nos encontramos hoje! O que levou partidos sociais-democratas, por vezes denominados trabalhistas e socialistas, a promoverem essas políticas!? A virarem costas aos trabalhadores e aos seus sindicatos, a partidos comunistas e operários, para se aliarem com a direita, nas suas diversas designações (democrata-cristãos, conservadores, republicanos, liberais, centristas, etc.)!? Para assegurar o rotativismo/alternância dos partidos de governo, simulando falsas alternativas, mas garantindo sempre políticas favoráveis ao capital em prejuízo do trabalho!? Sem esquecer a expressão maior dessa estreita colaboração que é a integração capitalista europeia, indissoluvelmente ligada ao neoliberalismo, federalismo e militarismo. Que razões económicas, sociais, políticas e ideológicas explicam essas opções e estratégia? Uma análise a fazer por quem de forma convicta e séria se quer pronunciar contra o capitalismo neoliberal. A social-democracia precisa de um «reset», como diriam os de Davos!
Muitos das críticas e elementos da abordagem social-democrata da situação actual do capitalismo, estão já presentes nos programas de Davos e da Mesa-Redonda dos CEO dos EUA. Mas têm uma expressão concentrada e sistematizada nas posições, livros, entrevistas e artigos de um conjunto de economistas com visibilidade planetária. Com as suas diferenças, há três bem conhecidos: Stiglitz (6), Piketty (7), Mazzucato (8). As suas soluções passam por um regresso a velhas medidas e instrumentos keynesianos: o papel do Estado, a regulação dos mercados, o fisco como corrector das desigualdades.
Muitos outros vão perorando sobre a salvação do capitalismo. Uma literatura prolixa, muitas vezes contraditória, inspira os líderes e ideólogos da salvação. Teses de economia política, mais ou menos herdeiras de Keynes – que ressuscita dos fundos das bibliotecas universitárias em versões ortodoxas ou recauchutadas, pós-keynesianas – capitalizam o afundamento teórico e prático do neoliberalismo. Programas e discursos políticos afadigam-se em teses que não só expliquem os erros e as culpas dos seus opositores de alternância dentro do sistema, como pretendem oferecer a salvação do mundo. Mesmo que seja apenas o «regresso à pureza original do capitalismo».
Uma referência aos que na social-democracia (pós-keynesianos) localizam o tumor capitalista na «financeirização» do sistema. Uma questão certamente muito importante. Mesmo que a «financeirização» não seja uma «perversão», um «abcesso» de «uma forma mais pura e produtiva do capitalismo» que já existiu, como parecem entender. O problema é depois querer resolver esta questão sem que o Estado assuma a propriedade da banca e o comando efectivo dos bancos centrais (afastada a ilusória teoria da sua independência) e sem eliminar a livre circulação dos capitais, e pôr fim aos paraísos fiscais/sociedades offshores, à emissão especulativa e privada de moeda (bitcoin) e a todo o universo da banca(s) sombra(s). A dita regulação e supervisão financeiras, mesmo com a devida articulação e coordenação internacional, não chega. É impotente como todos os acontecimentos nesta matéria demonstram. Não será assim que se estripará o tumor e as suas metástases e sequelas. (9)
«O exemplo que vem da América»
Depois do temporal Trump, que segundo alguns precipitados ia afundar o capitalismo no mundo com as teses proteccionistas, anti-Globalização, de baixa fiscalidade para o grande capital, de facto apenas uma forte defesa de alguns sectores do capitalismo norte-americano (não estivesse ele subsidiado por alguns dos mais importantes capitalistas da terra), eis que surge o Democrata Biden, para um regresso simplório ao capitalismo primitivo de livre concorrência, o tal que fez a glória da América. De facto nada de novo na frente ocidental... São velhas teorias e velhas soluções para responder à crise do sistema. As leis anti-cartel pretensamente destinadas a destruir, limitar o poder dos monopólios e oligopólios e suas alianças espúrias para dominar mercados e impor/fixar preços já tem algumas décadas de vida. Referimo-nos à Lei Sherman Antitrust de 1890 e ao Clayton Antitrust Act de 1914. Mas é a grande descoberta do sucessor de Trump: «Deixe-me ser claro: o capitalismo sem concorrência não é capitalismo. É exploração.» «O coração do capitalismo americano é uma ideia simples: concorrência aberta e justa», são declarações de Biden a propósito da assinatura de uma decisão para a expansão da concorrência em toda a economia e reprimir práticas monopolistas. (Biden não está só nesta nova cruzada contra os monopólios!) Mas rapidamente vai verificar que não chega, nem sequer para beliscar o poder monopolista das grandes multinacionais EUA.
Uma referência final ainda à intervenção da Igreja Católica no debate. Com o Papa Francisco há uma evolução clara das posições da Igreja na reflexão sobre a economia capitalista, e até na denúncia de alguns artigos de fé da doxa capitalista. Isto sem nunca explicitar qualquer oposição ao sistema capitalista. É o que as encíclicas papais «Sobre o cuidado da casa comum/Laudato si» e «Todos irmãos/Tutti Fratelli» nos dão a conhecer.
Com todos os cuidados semânticos a Igreja insiste que há «uma economia que mata», critica o «dogma de fé neoliberal» no mercado, «pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja», repudia a «especulação financeira» guiada por «uma ganância do lucro fácil» e, suprema blasfémia, escreve que o «direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres nem acima do respeito pelo ambiente». E reclama a necessidade de reformar «a arquitectura económica e financeira internacional». Com todas as dúvidas que possamos ter, é uma linguagem bastante mais clara e afirmativa que a dos adeptos do «capitalismo dos stakeholders»!
A ética e a tecnologia salvarão o capitalismo
Na salvação do capitalismo ou nas diversas fórmulas e modelos, agendas e programas para o fazer, desempenham um papel central, glosado em vários tons e cores, duas crenças: a salvação pela ética e a salvação pela tecnologia. A salvação pela ética concretizada numa alteração, por vontade e responsabilidade única dos titulares do capital (CEO, Gestor, Conselho de Administração), do comportamento da empresa desenvolve-se em dois planos: (i) o da responsabilidade social e (ii) o da responsabilidade ambiental. É um comportamento individual que rectifica/corrige comportamentos empresariais, que se quer difundido, disseminado pelo tecido empresarial através do mercado, sob a pressão de um fabricado «consenso social» sobre o funcionamento da empresa. Com sanções a quem não o aceita (desvalorização mercantil da marca) e prémios a quem o cumpre (valorização accionista, facilidade de acesso ao investimento «verde», aumento da procura dos bens produzidos).
A salvação pela tecnologia ou pela revolução ou inovação tecnológica é uma velha crença dos advogados do capitalismo, que sempre em momentos de crise, de fracturas económicas e sociais graves, avançam com as soluções milagrosas que a revolução das forças produtivas pode potenciar na resposta aos males da humanidade causadas pelo capitalismo.
Assumem no quadro da crise/crises do sistema capitalista particular expressão e visibilidade a desigualdade social e os desequilíbrios ambientais/ecológicos (e consequentes alterações climáticas) como os nós das fracturas, os pontos de ruptura sociais e políticos onde é preciso intervir sem pôr em causa o sistema, bem pelo contrário, se possível com um up-grading da sua bondade e aceitação. E até algum lucro...
O elemento estruturante no centro do sistema, das suas principais contradições e disfunções, está uma empresa (um modelo «teórico» longe do universo real das MPME) onde se cruzam aqueles problemas, impondo aos seus titulares a responsabilidade social e ambiental e de inovação tecnológica. Responsabilidades que partem da empresa mas envolvem todo o seu «ecosistema», a sua envolvência económica, ambiental, social, comunidade onde se localiza. É esta empresa que vai ter de mudar comportamentos para salvar o mundo, formalizada na fórmula ESG&D! (Em português ASG&D: A de ambiente, S de social, G de governança e D de protecção de dados).
Vão assim ser resolvidos os problemas das desigualdades sociais e rupturas dos ecosistemas a partir da decisão de cada empresa e à margem da estruturas/sistema de poder que as envolve... Estas visões de utopismo não ingénuo levam a uma conclusão: quando os empresários de todo o mundo, na base da sua livre e espontânea vontade e correspondente decisão, estiverem apostados na responsabilidades social e ambiental, a soma das suas empresas garantirá o capitalismo responsável, de rosto humano, e a felicidade da humanidade...
É claro que o capital tem sempre uma arma de último recurso para assegurar a sobrevivência do sistema. A solução política do fascismo – a Ditadura Terrorista do Capital – nunca deixará de ser utilizada, se necessária. A história assim nos ilumina.
Velhas soluções para responder a velhos problemas
A dimensão da crise estrutural do capitalismo pode ser avaliada pelo retorno das velhas soluções.
A resposta do capital à sua crise intensificou um poderoso movimento de concentração e centralização de capital e traduziu-se na intensificação da exploração, numa crescente agressividade e choques entre os grandes grupos monopolistas na competição por recursos e mercados, na intensificação e desenvolvimento dos mecanismos financeiros, inclusive com a explosão da chamada banca sombra fora de qualquer controlo ou fiscalização, e na procura de soluções políticas autoritárias capazes de assegurar a eternização das relações de produção capitalista, a manutenção dos mecanismos de exploração e de controlo ideológico das massas. Respostas naturalmente suportadas e impulsionadas pela polos da Tríade, EUA, UE e Japão, nomeadamente pela multiplicação de espaços de concertação estratégica e definição ideológica, como o FMI, o Banco Mundial, a OCDE, o G7 e o G20, ou ainda a Trilateral, o Forum de Davos ou Bilderberg.
A ideologia dominante, a ideologia do capital e das camadas dominantes, tem de continuar a dizer que se nem tudo correu bem, há-de correr melhor. Há alguns pequenos problemas e defeitos, e desadequações e desajustes... a corrigir. Vão insistir enfaticamente que não há alternativa que não seja o capitalismo, mesmo baptizado com outros nomes. Vão proclamar que não há salvação fora do capitalismo. Agora, o capitalismo rectificado, renovado, reinventado, socialmente responsável de Davos e das mesas-redondas do capital e abençoado pela cátedras das Business's Schools sustentadas pela filantropia do capital. Com duas linhas vermelhas sempre visíveis: (i) a recusa de ver o capitalismo como causa intransponível dos problemas presentes e prementes dos povos, e assim recusar a única alternativa possível, a superação revolucionária do sistema; (ii) a ocultação e silenciamento de que a crise do sistema pôs em causa as principais bases «teóricas» do capitalismo, socavou e socava a sua sustentação apologética e propagandística, depois de, particularmente após a queda da URSS, terem «naturalizado» o capitalismo com último estádio do desenvolvimento da humanidade, «o fim da história»... e logo a eliminação de qualquer possível alternativa ao capitalismo...
É pedagógico e importante para a luta dos comunistas ver claro na escuridão das explicações da crise e das soluções apresentadas pelo capital, pela direita e social-democracia. Mesmo se elas são impotentes, incapazes de responder, resolver o que quer que seja. Mesmo se temos a consciência clara de que mais não fazem do que cumprir uma função de véu, de ocultação da raiz capitalista da crise, de mistificação e tentativa de manipulação e diversão dos trabalhadores e das massas populares da organização, resistência e luta.
Notas:
(1) Karl Schwab foi membro da direcção do Grupo Bilderberg, que realiza uma conferência anual desde 1954 para reforçar o consenso entre as elites em torno do capitalismo ocidental de livre mercado.
(2) O Presidente do World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), um prolongamento de Davos, esteve recentemente em Portugal (Jun.2021) para apresentar a «Visão 2050: tempo para transformar», a convite da Semapa (Navigator), prosseguindo o programa de Davos e da Mesa-Redonda dos EUA. Uma «Agenda executável para as empresas para acelerar a transição para um mundo mais sustentável.»
(3) A BRT emite desde 1978 os «Princípios de Governação Empresarial», onde afirmava que as grandes empresas existem principalmente para servir os seus accionistas. Na sua nova Declaração mudam a «terminologia» e avançam com cinco compromissos: «Gerar valor para os nossos clientes»; «Investir nos nossos empregados», «uma retribuição justa (…) e «relevantes benefícios complementares», e promover «diversidade e inclusão, dignidade e respeito»; «Negociar de forma justa e ética com os nossos fornecedores»; «Apoiar as comunidades das zonas onde operamos e «protegemos o meio ambiente» e «Gerar rendibilidade a longo prazo para os accionistas».
(4) A Business Roundtable Portugal (BRT/P) foi apresentada na última semana de Junho e reune 42 líderes das maiores empresas privadas a trabalhar no país. Com pouca clareza na indicação dos objectivos enunciam: a qualificação e formação das pessoas; as empresas com foco na revitalização, competitividade, inovação e ganhos de escala e o Estado, enquanto facilitador da actividade económica. Parece que os dinheiros do (Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) estão à porta…
(5) Em Portugal um dos mais lúcidos e entusiasmados divulgadores da Declaração da BRT foi Agostinho Miranda, advogado, membro do Painel de Árbitros do ICSID (Banco Mundial) e da Associação ProPublica. No artigo do J. Negócios (02JAN20) constata que «O capitalismo dos últimos 30 anos falhou na implantação de mercados verdadeiramente livres e na criação de oportunidades reais para a maioria. Os choques financeiros, a desigualdade crescente e a estagnação e desemprego estrutural que se verificam numa boa parte do mundo estão aí para o comprovar». Lembra AM que «Já em 2014 a insuspeita Lady Lynn Rotschild tinha convencido Christine Lagarde e o príncipe de Gales, entre outros, a constituírem o que se veio a designar por «The Coalition for Inclusive Capitalism». «”Se não adotarmos esta solução («capitalismo inclusivo»), (afirma Rotschild), bem podemos contar com a substituição do capitalismo por algo muito pior”» (O que será?).
(6) O prémio Nobel Stiglitz reclama por um «capitalismo progressivo» (contradição nos termos diremos nós!). Há muito que combate as soluções neoliberais, e em particular alguns dos seu mitos, como o dos «mercados livres e auto-regulados». Encara com desconfiança os «arrependimentos» dos CEO de Davos e da Mesa-Redonda, admitindo que se esteja perante um «truque publicitário». Questiona a razão de durante 40 anos não terem percebido o caos para onde empurravam a economia. E sobretudo questiona o facto de não assumirem compromissos concretos para: a redução das «disparidades salariais»; o pagamento de uma «parcela justa de impostos» e não a «evasão fiscal multinacional» e «as reformas para aumentar o poder de negociação dos trabalhadores, através do fortalecimento dos sindicatos e da negociação colectiva».
(7) O volume e a qualidade estatística das obras de Piketty, nomeadamente sobre as desigualdades, não podem absolver sofismas e impotência das suas teses sociais e políticas. Quer se trate das propostas fiscais – que aparentemente tudo resolveriam – das soluções (federais) de reforma institucional da UE e ZE, ou do seu «socialismo participativo», com três elementos: tributação (activos e rendimentos) progressiva, representantes dos trabalhadores com 50% dos lugares do Conselho de Administração das empresas e o direito de todos a um rendimento mínimo garantido de 60% do PIB/capita, além de receberem um património aos 25 anos correspondente ao património médio.
(8) Mariana Mazzucato resume no seu último livro («Mission Economy: a moonshot guide to changing capitalism») a sua proposta para salvar o capitalismo: «A Economia da Missão (Apolo: a ida à Lua) oferece uma via para rejuvenescer o Estado, e desse modo emendar o capitalismo, em vez de lhe pôr fim.». Mas é perfeita ingenuidade acreditar que serão as parcerias público-privadas («parceria entre o Governo, multinacionais e um terceiro sector») (a ferramenta «da economia política de Mazzucato»), mesmo de iniciativa do Estado e corrigindo os erros de anteriores regulamentações e modelos, ou com a dimensão da Missão Apolo, que poderão reformar o capitalismo para «substituir o actual sistema parasitário por um tipo de capitalismo mais sustentável, mais simbiótico – que funcione para todos nós.» Mais uma vez se esquecem as forças poderosas da oligarquia financeira, dos monopólios e imperialismo na defesa dos seus interesses.
(9) Deixando para outras abordagens não se fará referência a todos os desenvolvimentos teóricos e de intervenção política no campo da esquerda, que vão dos adeptos do pós-capitalismo, passando pelos programas de um ambientalismo radical, e de outros, que mesmo quando avançam com soluções e medidas anti-capitalistas se recusam a «pôr os nomes aos bois» e enfrentar a batalha ideológica e política pela derrota e superação do capitalismo. Em geral produzem programas e lançam agendas confusionistas, contraditórias (quando não divisionistas) e incapazes de gerar uma coerente e consistente movimento de trabalhadores e populações para resistir e lutarem contra o sistema capitalista.
Também fica para outro dia desmontar a fraude dos novos liberais que em Portugal (e noutros lados) querem ir ainda além, não da Taprobana, mas do liberalismo do neoliberalismo, na liberalização da economia e do fim da ingerência do Estado na Economia – excepto nos fundos comunitários!. In Militante
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