Bom e útil trabalho de João Ramos de Almeida no Blog Ladrões de Bicicletas
Que credibilidade podem ter os comentadores que escreveram o que escreveram e que continuam sem vergonha a sentenciar inclusive em órgãos de comunicação públicos
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"Há muita vontade de confundir temas e não há qualquer responsabilidade política do Dr. Paulo Núncio em transferências para fora do país que, aliás, são transferências legais."
"No limite, se nós acharmos que ninguém pode ter uma vida profissional antes de ter cargos governativos, então vamos ter um problema muito grande, porque só podem ser governantes professores, académicos – por acaso é o meu caso, mas poderia não ser – professores de liceu e gente que não tem uma vida privada ou funcionários públicos."
A estranha citação é de Assunção Cristas, ex-ministra do anterior governo PSD/CDS e presidente do CDS. Foi um comentário à actividade de Paulo Núncio, enquanto advogado de uma sociedade de advogados que criou dezenas de sociedades offshore que estiveram sob os holofotes da polícia italiana (vidé livro Suite 605).
Olhando o comportamento de Paulo Núncio na questão da publicação das estatísticas sobre as transferências para offshores - as três diferentes explicações em menos de uns dias -, isso deve obrigar-nos a rebobinar as suas declarações quanto à paternidade da lista VIP.
A ser verdade aquilo que o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos denunciou – que se trata de uma lista com políticos (Cavaco, Passos Coelho, Portas e ele próprio Núncio), mas também empresários e responsáveis do sector financeiro, do BES –, então devem suscitar-se outras dúvidas que talvez permitam compreender a rapidez com que Núncio deixou a sua cabeça no cepo.
Quantas pessoas estavam nessa lista VIP? Qual foi o primeiro funcionário da AT que teve conhecimento dessa lista? E através de quem? Quem instalou informaticamente esse filtro?
Ao contrário de Assunção Cristas - que confunde "vida privada" com práticas na fronteira da legalidade - há todo o interesse em misturar os elementos que, diariamente, surgem fragmentados na vida retratada pela comunicação social.
Comecei a fazê-lo para mostrar como o governador do Banco de Portugal juntou - de modo feliz para ele e infeliz para o interesse nacional - a falta de vontade de enfrentar um dos maiores grupos financeiros com a pressão do Governo para adiar tudo no BES.
Mas depois achei que devia juntar os elementos recolhidos sobre os processos envolvendo o BES/GES, sobre Paulo Núncio, os dados sobre as transferências para offshores, a criação da lista VIP que impediu funcionários tributários de ter acesso a dados de uma lista considerável de políticos e empresários - inclusivé do GES - e, finalmente, opiniões de alguns jornalistas. Tudo ordenado cronologicamente.
Nem fiz uma grande "investigação": juntei uns artigos da Cristina Ferreira no jornal Público, mais uns posts do Ladrões de Bicicletas.
A cronologia deve, aliás, ter imensas lacunas. Mas o que sobressai dela é muito mais interessante.
É apenas um exemplo daquela ideia de Karl Marx, no seu prefácio da Contribuição para a Crítica da Economia Política, quando defendeu que, sobre a estrutura económica da sociedade, a base concreta, "se eleva uma superstrutura jurídica e política à qual correspondem determinadas formas de consciência social". Um círculo que Gramsci acharia essencial para conseguir aquela hegemonia na sociedade, que Chomsky defende ser a armadura que viabiliza que uma sociedade assente na exploração se mantenha sem necessidade de ditadura.
Fica a lista de factos para os mais corajosos.
2003
É lançado o concurso público para a compra dos veículos anfíbios pelo Governo Durão Barroso (empossado a 6/4/2002), com Paulo Portas como ministro da Defesa.
2004
15/1/2004: Ricardo Salgado promove um encontro com jornalistas em Megève, nos Alpes franceses. As suas observações aparecem na imprensa do dia seguinte.
O consultor Miguel Horta e Costa da Escom (Grupo Espírito Santo) estuda e alicia o seu parente Luís Horta e Costa, gestor da Escom para o tema das contrapartidas a prestar pelos vendedores de equipamento militar a prestar ao Estado português. Paulo Núncio - advogado fiscalista, dirigente do CDS e conselheiro de Paulo Portas - surge como representante do fabricante austríaco Steyr (firma mais tarde comprada pela norte-americana General Dynamics).
21/4/2004: O ministro da Defesa Paulo Portas despacha a compra de dois submarinos para a Marinha portuguesa à empresa alemã German Submarine Consortium. A Escom assessora o consórcio alemão, tentando cobrar cerca de 3% sobre 769 milhões de dólares do valor total da venda dos submarinos. O Governo assina um contrato de financiamento (para o Estado pagar os submarinos aos alemães) com um consórcio bancário formado pelo Crédit Suisse e pelo BES. Os alemães impõem que o contrato seja certificado por uma entidade europeia. A Escom cria a Escom UK. Esta transacção vai gerar prisões na Alemanha. Em Lisboa, a polémica comissão de inquérito parlamentar (CPI) é encerrada, em Outubro/2004, de forma apressada pelos PSD e CDS.