Em 1970, Henry Kissinger interrogava-se em tom de ironia: «A Europa, que número de telefone?».
Hoje, já não podia repetir a ironia, bastava telefonar para a Senhora Merkel ou para o seu intratável ministro das Finanças, de tal modo a «Europa» se tornou alemã. E para saber os números dos telefones podia dirigir-se à CIA, que os tem registados e vigiados.
Os profissionais do europeísmo podem continuar a falar numa União entre iguais, podem continuar a contar a «sua» história da construção europeia e a repetir o catecismo dos seus mitos que não alteram a realidade de uma Europa cada vez mais comandada por uma só potência e cada vez mais desigual.
Hoje é-lhes mais difícil, sem hipocrisia ou cinismo, repetir as fórmulas vazias: «a Europa é a coesão económica e social; a solidariedade; o nivelamento por cima; a paz; o nosso futuro!»
Os refugiados que ficam no Mediterrâneo, o comportamento da União Europeia em relação à Grécia e aos países do Sul, o dumping social e fiscal, os níveis de desemprego e a pobreza mostram-nos uma Europa do capital financeiro cada vez mais distante dos legítimos anseios e aspirações dos povos.
Vendem a ideia de uma construção europeia democrática, num método original de pequenos passos, quando do que se trata é do bom e velho método Jean Monnet, que sempre quis uma Europa federal, consultando o menos possível os povos. A dissimulação, a opacidade e a imposição têm sido os grandes vectores da construção europeia.
A história dos diversos referendos e a incrível história do Tratado Constitucional rejeitado pelo povo francês e holandês e que dois anos depois foi instituído, sem consulta, no Tratado de Lisboa, o do «conseguimos, pá!», dão-nos o verdadeiro retrato de uma construção antidemocrática feita longe dos povos.
Giscard d'Estaing, que tinha presidido aos trabalhos do projecto de Constituição para a Europa, declarou então: «As propostas institucionais do Tratado Constitucional encontram-se integralmente no Tratado de Lisboa, mas numa ordem diferente. A razão é que o texto não deve lembrar muito o Tratado Constitucional»1.
Alguns meses mais tarde, Nicolas Sarkozy diria a um grupo parlamentar europeu: «Há uma divergência entre os povos e os governos, um referendo neste momento colocaria a Europa em perigo, não teríamos tratado se tivéssemos um referendo em França»2.
«(...) a incrível história do Tratado Constitucional rejeitado pelo povo francês e holandês e que dois anos depois foi instituído, sem consulta, no Tratado de Lisboa, o do «conseguimos, pá!», [dá-nos] o verdadeiro retrato de uma construção antidemocrática feita longe dos povos»
O mesmo método é aplicado na negociação secreta dos tratados internacionais – veja-se o Acordo de Comércio com o Canadá, CETA, no funcionamento do Eurogrupo ou do todo poderoso Banco Central Europeu – órgão não eleito.
Os burocratas de Bruxelas ao serviço dos grandes interesses e do capital financeiro decidem o futuro dos povos, concedendo que existe não na construção, mas no funcionamento da União Europeia aquilo a que chamam candidamente e eufemisticamente «défice democrático».
Do alto da sua arrogância, consideram que o aumento da indignação, da revolta, da rejeição desta Europa e do euro se deve à falta de conhecimento dos cidadãos, que não compreendem o papel dos especialistas, a globalização, a necessidade das reformas. Os burocratas de Bruxelas não querem reconhecer que os povos rejeitam as suas políticas por muitas e boas razões.
Quando as consultas populares não correm bem, como no caso do Brexit, não hesitam em afirmar em tom classista que foram os menos instruídos os que mais votaram negativamente, como se não fossem estes os que mais sofrem na pele as humilhações e as consequências das políticas de concentração da riqueza.
Espantam-se depois pelo crescimento daquilo a que chamam de populismo, como se este não fosse o resultado das promessas não cumpridas, das políticas neoliberais, do aumento das desigualdades, da liquidação de direitos e do Estado Social, das negociatas e corrupção, da falta de credibilidade dos partidos e políticos que em rotativismo têm estado no poder.
Insistem nos mitos de uma Europa que foi concebida para fazer frente aos EUA, quando se sabe o papel desempenhado pelos serviços secretos americanos e a sua ligação a Jean Monnet, o mito dos pais fundadores! Insiste-se na Europa de paz como se fosse a construção europeia que a tem conseguido e como se o vergonhoso bombardeamento e guerra na Jugoslávia tivesse sido no continente africano.
Insistiram (já não insistem) nos mitos e nos dogmas de que a União Europeia e o euro nos protegiam das crises, do endividamento, questão que deixava de se colocar, como afirmavam Guterres, Constâncio e Barroso, e de que a desindustrialização era mais que compensada pelos serviços e financeirização do país, o mito da «nova economia» que durou até ao início da crise de 1997.
Os promotores e defensores da adesão de Portugal ao Mercado Comum viram nesta (um seguro de vida) a consolidação da contra-revolução que permitiu o regresso de possidentes, de privilégios e a concentração e centralização de capitais, no quadro de uma democracia cada vez mais limitada e empobrecida.
A adesão à CEE deu-se quando já se preparava a substituição do Mercado Comum pelo Mercado Único.
Para que tal fosse aceite pelos Estados duplicaram-se os fundos estruturais (a ameaça comunista), o que permitiu um importante surto de obras públicas e melhoramentos, criando a ilusão de que a coesão económica e social seria uma realidade.
«Desde que entrámos no euro até hoje, o nosso crescimento médio está praticamente estagnado. Aumentou, sim, a dívida privada e pública»
Com a liberdade de circulação de capitais, com as subvenções e fundos para liquidar o excesso de produções – o que não era o nosso caso –, pescas, agricultura..., com o acabar da preferência comunitária e praticamente a liquidação da pauta exterior comum, o embate entre a panela de ferro com a panela de barro começou a produzir os seus estilhaços, o que foi ainda ampliado com a introdução do euro e com os sucessivos alargamentos, sem reforço do orçamento comunitário3.
Os resultados estão à vista e, então, tal como agora, também nos foi dito que só tínhamos a ganhar em estar no «pelotão da frente», mas, na realidade, no «carro vassoura» e no papel de «sobrinho pobre em casa de tios ricos».
Com o euro, perdemos a soberania monetária e ficámos dependentes dos «mercados», mesmo para os pagamentos internos. Regressámos ao século XIX com as crises financeiras e as falências de bancos, como relata entre outros, Oliveira Martins.
Perdemos a soberania monetária, cambial e na prática orçamental, desindustrializámos o país, liquidaram-se direitos duramente conquistados, enfraqueceu-se o incipiente «estado social» e ficámos com uma moeda sobrevalorizada em relação ao nosso aparelho produtivo e perfil de exportações.
Desde que entrámos no euro até hoje, o nosso crescimento médio está praticamente estagnado. Aumentou, sim, a dívida privada e pública, e as mais importantes empresas básicas e estratégicas, tal como os bancos, ficaram no domínio estrangeiro. O euro/marco serve a Alemanha mas não serve Portugal nem a maioria dos países da UE. Ele foi «vendido» aos trabalhadores e aos povos na base de mentirolas repetidas, embrulhado num pseudo discurso científico e com modelos econométricos manipulados.
A crise da UE é hoje uma evidência reconhecida. As propostas que são agora apresentadas, para «relançar a Europa», com um euro sobrevalorizado para a maioria dos países e subvalorizado para a Alemanha, desde o federalismo à Europa a várias velocidades, como não vão à raiz dos problemas, nem a uma das principais prioridades – o funcionamento da UE em bases democráticas –, mesmo que venham a ter algum reforço de Orçamento Comunitário e aligeiramento da dívida, podem alimentar ilusões, mas só prolongarão a nossa agonia4.
Por isso, a grande tarefa nacional, o grande desafio com que nos confrontamos não é estarmos formalmente com os da frente e em bicos dos pés, mas, sim, o da recuperação da nossa soberania o mais urgentemente possível. Carlos Carvalhas
- 1.
Audição perante a Comissão de Negócios Constitucionais do Parlamento Europeu em 17 de Julho de 2007. - 2.
The Telegraph, 14 de Novembro de 2007. - 3.
São cada vez mais economistas, sindicalistas, empresários, partidos e população em geral que, em vários países da UE, põem em causa o euro. O Parlamento holandês decidiu, em fins de Fevereiro, por unanimidade, elaborar um relatório sobre se o país deve ou não sair do euro, o que revela a extensão das dúvidas. - 4.
O orçamento comunitário para compensar satisfatoriamente os quatro países do Sul da dinâmica do euro (Portugal, Espanha, Itália e Grécia) implicava 8% a 9% do PIB da Alemanha, o que este país não aceitará. A Europa a várias velocidades foi decidida por Merkel, que o afirmou em Malta, e depois foi reafirmado em Versalhes pelos quatro chefes de governo (grande união de iguais!), Hollande, Merkel, Gentiloni e Rajoy. E, como bons democratas, afirmaram que «não excluíram ninguém, mas também não obrigaram ninguém a participar!»
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