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29 de março de 2017

Leituras do sítio Abril Abril

. O ideal pan‑europeu não é uma questão recente.1 Há quem fale do mito da Europa. E há quem vá buscar as origens da ideia de Europa à Idade Média. Outros recuam até ao século XVIII. Se ficarmos pelo século XIX, poderemos referenciar a Liga Internacional da Paz e da Liberdade, organização pacifista fundada em 1867, em Berna, por Charles Lemmo­nier. Esta organização publicou em 1869 um Manifesto em que defendia a criação dos Estados Unidos da Europa, projeto que teve a oposição de Karl Marx, porque ele escapava à ação da Associação Internacional dos Trabalhadores e porque o internacionalismo não devia confinar‑se à escala europeia.

Os movimentos revolucionários que marcaram a Europa em 1848 foram também frequentemente animados pelos ideais do pacifismo e de uma federação europeia.
Na Europa contemporânea, o ideal pan‑europeu afirma‑se entre as duas guerras mundiais do século XX, período durante o qual surgiram propostas várias no sentido da organização de cartéis e da celebração de acordos com vista a uma gestão conjunta dos sectores do carvão e do aço.
A partir de 1922 (ano em que publicou um livro intitulado Pan‑Europa) Richard Coudenhove‑Kalergi inspirou e animou um forte movimento com vista à criação dos Estados Unidos da Europa, de que excluía a Rússia (por ser um país euro‑asiático) e o Reino Unido (por ser um império interconti­nental). Pretendia-se evitar o domínio militar soviético e o domínio económico dos EUA e do império britânico.
Deste movimento resultaria a criação em Viena (1923) da União Pan‑Europeia, de que foi primeiro Presidente o Prémio Nobel da Paz Aris­tide Briand. O projeto visava, em última instância, a cooperação pacífica entre estados soberanos, objetivo que justificou a adesão de várias perso­nalidades democráticas da cultura europeia (v.g. Thomas Mann, Einstein, Picasso, Appolinaire, Rilke, Saint‑John Perse).
O objetivo da Paz animou Briand (então Ministro dos Negócios Estran­geiros da França) a conseguir (1925) a assinatura do Tratado de Locarno, entre a França e a Alemanha, tratado que reduziu as indemnizações de guerra a pagar pela Alemanha e permitiu a adesão deste país à Sociedade das Nações.
Em 1929, o mesmo Briand defendeu, perante a Assembleia Geral da Sociedade das Nações, a organização da Europa em moldes federais, com a criação de um mercado comum e a adoção de políticas comuns no domínio das comunicações, do emprego e da cooperação intelectual, que permitissem elevar o nível de bem‑estar humano dos povos da Europa.
Apresentado no contexto da grave crise económica que assolava a Europa e o mundo, este projeto – que teve o apoio de várias entidades patronais – não contou com o apoio dos sindicatos e dos partidos da esquerda (incluindo a SFIO de Léon Blum), receosos de que tal não passasse de uma tentativa de racionalização internacional ao serviço dos interesses do capital.
Ao lado desta ideia federalista, outros projetos com o mesmo objetivo de promoção da Paz preferiam a organização da Europa em moldes confe­derais, respeitando a soberania nacional dos estados europeus.
Em Fevereiro de 1930, Coudenhove‑Kalergi e a União Pan‑Europeia propuseram em Berlim a criação dos Estados Federais da Europa. Embora proclamando a salvaguarda da soberania dos estados europeus, o projeto previa a criação de órgãos federais (Conselho Federal, Tribunal de Justiça Federal, Chancelaria Federal), um sistema financeiro próprio, bem como a consagração da cidadania europeia, a par da cidadania nacional.
2. – Durante a 2.ª Guerra Mundial, o movimento com vista à unidade europeia visando a Paz como objetivo último não abrandou.
Em 1941 Altiero Spinelli e Ernesto Rossi publicaram o Manifesto Por uma Europa Livre e Unida, escrito no exílio na Ilha de Ventonese. A tese central era a de que o estado‑nação estava inevitavelmente associado ao nacionalismo e à guerra, acreditando os autores do Manifesto que o fede­ralismo evitaria a guerra e enfraqueceria as forças reacionárias. Spinelli fundou depois o Movimento Federalista Europeu, que viria a aderir à União Europeia dos Federalistas, criada em 1946.
Em 1942, a ideia federalista aparece no programa do clandestino Par­tido Socialista Belga, conhecendo‑se projecos idênticos na Holanda. Em 1943, já a residir nos EUA, Kalergi publica um projeto de Constituição Federal Europeia. Em 1944, constitui‑se a união aduaneira entre a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo (Benelux).
Com a previsão do final da Guerra, os EUA e o RU decidiram que era necessário redesenhar a Europa, para a transformar em instrumento de con­tenção do comunismo, e chegaram a planear uma União Federal Europeia sob o seu comando.
Em 1946 Churchill fala em Fulton da «cortina de ferro» e, em Setembro desse mesmo ano, fala em Zurique dos Estados Unidos da Europa. Mas o movimento por ele animado, o United Europe Movement (lançado em 1947), apontava para a cooperação entre os estados europeus, rejeitando a solução federalista.
«No final de 1946, na esteira do pensamento proudhoniano, surgiu o projeto da União Europeia de Federalistas, visando a redução da soberania dos estados nacionais e o estabelecimento de um governo federal europeu.»

Alguns, como a Liga Europeia de Cooperação Económica (em que pontificava Paul Van Zeeland), limitavam‑se à cooperação económica através da abertura dos mercados.
No final de 1946, na esteira do pensamento proudhoniano, surgiu o projeto da União Europeia de Federalistas, visando a redução da soberania dos estados nacionais e o estabelecimento de um governo federal europeu. Em meados deste mesmo ano, surgiu o Movimento para os Estados Unidos Socialistas da Europa.
Percebeu‑se que o projeto europeu estava a ser colocado ao serviço de objetivos estratégicos diferentes do projeto de paz na Europa que animara o movimento pan‑europeu entre as duas guerras e mesmo durante a 2ª Guerra Mundial e que mobilizara personalidades e forças políticas da esquerda europeia.
Washington e Londres chegaram a pensar numa cidadania comum anglo‑americana, como base de um império anglófono. Neste contexto, a Europa seria remetida ao papel de satélite, integrando com o império angló­fono uma zona de livre comércio, impermeável à influência comunista.
Com a guerra fria, as coisas mudaram também neste plano. Os EUA passaram a desempenhar um papel importante na orientação do movimento pan‑europeu. A CIA e os serviços secretos britânicos foram financiando várias iniciativas, algumas das quais chegaram a equacionar a existência de uma moeda única europeia. Em 1947, por iniciativa do Senador Fullbright, a Câmara dos Representantes votou uma moção de apoio aos Estados Unidos da Europa e o Congresso americano chegou a exigir que os candidatos aos benefícios do Plano Marshall participassem desta ‘organização’.
Em Maio/1948, mais de 800 delegados oriundos do movimento associativo, com muitas personalidades da esquerda e ligadas às organi­zações de defesa da Paz, reuniram‑se no Congresso Federalista da Haia, para discutir o futuro da Europa. Mas o ambiente da guerra fria começava a marcar decisivamente a vida política na Europa e no mundo.
A execução do Plano Marshall (1948) obrigou à criação da OECE (Organização Europeia de Cooperação Económica), e trouxe consigo uma visão de conjunto dos problemas económicos dos países europeus que ficaram sob a órbita do capitalismo, a necessidade de ‘planificação’ dos investimentos e do desenvolvimento económico e social, a coordenação dos interesses dos países beneficiários do Plano Marshall nos sectores estraté­gicos que tinham originado duas guerras mundiais no século XX.
Em Janeiro/1949, por sugestão britânica, cria‑se nos EUA o Comité Norte‑Americano para a Europa Unida, com vista a marginalizar as ini­ciativas de Coudenhove‑Kalergi, fiéis ao espírito inicial de Paz. Os seus dirigentes (entre os quais Allen Dulles) eram todos altos funcionários da CIA, antigos e futuros diretores da Agência.
Em Abril de 1949 foi criada a OTAN, sob a liderança americana.
Em Agosto deste ano, porém, a URSS ensaiou com êxito a sua pri­meira bomba atómica. Dividido o mundo entre duas potências nucleares, os EUA decidem secundarizar o papel do RU como ‘sócio privilegiado’ no governo do mundo capitalista. O seu papel ficou reduzido ao de um dos vários países da Europa, em cujas estruturas vem desempenhando, até hoje, na opinião de muitos observadores, o papel de ‘Cavalo de Tróia’ dos interesses norte‑americanos.
Em 8 de Maio de 1950, no 5º aniversário da rendição da Alemanha nazi, foi tornada pública, através do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Robert Schuman, uma Declaração do Governo Francês em que se propunha «colocar o conjunto da produção franco-alemã do carvão e do aço sob uma Alta Autoridade comum, uma organização aberta à participação dos outros países da Europa». Esta iniciativa viria a dar origem à Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), que foi, como Robert Schuman logo anunciou, a “primeira etapa da federação europeia”.
Pouco depois, à margem dos projetos pan‑europeistas surgidos entre as duas guerras, os EUA conseguiram que fosse assinado em Paris (15‑2‑1951) o Tratado que criou a Comunidade Europeia de Defesa. Este projeto falhou porque o voto de gaulistas e comunistas impediu a sua ratificação pela Assembleia Nacional francesa.
Avelãs Nunes


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