Carpideiras
Jorge Cordeiro
Jorge Cordeiro
Costuma dizer-se que a dor é sempre maior ali onde mais se faz sentir. Aos que, perante a proverbial sabedoria popular, franzem o sobrolho, seja por distanciamento elitista ou dúvida fundada sobre a cientificidade do dito, cá temos a reacção ao Orçamento do Estado agora aprovado a comprovar o que, mais ou menos empiricamente, se foi dando por verdade adquirida. É vê-los a chorar, ainda que com manifesto exagero, e logo se percebe onde a coisa dói.
Não fosse a tradição, antiga de milénios, cair em esquecimento e aí está reavivado o coro de carpideiras. Reconheça-se que nos tempos que correm com assinaláveis diferenças: de profissão feminina ganhou como se vê, à conta da evolução emancipatória, o concurso dos dois sexos; passou a não se circunscrever ao lamento de defunto alheio até porque os de hoje o que choram mesmo são interesses próprios; tendo razões para se lamuriar já não o fazem a troco de ninharias com que há séculos atrás se exercia o pranto, mas sim pela expectativa de mais palpáveis e generosos benefícios. Observe-se entretanto o seguinte – o lamento ao morto e ao moribundo que outrora fez modo de vida, não encontra hoje correspondência directa neste carpir que por aí anda, desde logo porque infelizmente a política de direita não está nem tão morta ou moribunda quanto o tom do pranto levaria a supor.
Habituados a que o rio corra sempre para o mesmo lado não se conformam com o mais leve sinal de inversão daquele curso que, enchendo os bolsos a uns poucos, depauperam a massa imensa dos que trabalham e vivem no País. Será por isso que desde há uns tempos, com picos maiores ou menores de angustiante sobressalto, é o que se vê: um desfilar dos que “ai, Jesus!”, ou que “agora é que é o diabo”, num não se sabe quanto de encomendadas desgraças face àquele documento orçamental.
Saudosos do tempo recente em que o País se resumia a uma feira de pilhagem de rendimentos e direitos, insurgem-se agora com o que alegam de «supermercado orçamental», um balcão de «satisfação de clientelas orçamentais», «um voltar atrás» aos tempos do «viver acima das possibilidades». Esquecidos do que à má fé retiraram o que aos reformados, trabalhadores e povo pertencia esbracejam agora contra esse ignóbil cerceamento do «direito de escolha». Veja-se a «choradeira» do grande patronato e respectivos apêndices sobre a devolução do direito ao subsídio de Natal: os que o anularam, violando o Código do Trabalho, para disfarçar o corte nos salários e reformas na expectativa de assim poderem reduzir a exigência de melhores salários e liquidar, com o passar do tempo, essa conquista dos trabalhadores, esgrimem agora o direito de escolha que sucessivamente negaram e que quando foi a cortar, dele não se lembraram.
Esquecidos do arbítrio fiscal com que ao mesmo tempo que bafejavam o grande capital, protegiam lucros e lavavam dividendos, carregavam os trabalhadores e os reformados com uma sufocante carga fiscal, por aí vagueiam indignados com o aumento da derrama estadual sobre os mega lucros comovidos com a «falta de estabilidade fiscal» que daí decorreria. Fraca e selectiva memória esta que só agora invoca o que antes nunca lhes ocorreu. Indiferentes que são às dificuldades que criaram a milhões de portugueses e à degradação das suas condições de vida invocam agora, ao menor sinal de devolução e reposição de direitos, salários e rendimentos, a “sustentabilidade das contas públicas” essa vaca sagrada sempre pronta a ser ordenhada quando se quer regressar a um passado recente de intensificação da exploração, empobrecimento e insustentabilidade económica e social na vida dos trabalhadores e do povo. Empenhados que estavam em conseguir que com a liquidação de direitos e corte nos salários na Administração Pública alcançassem o nivelamento por baixo dos direitos de todos os outros trabalhadores, derretem-se agora em pranto face à devolução do que foi retirado aos primeiros, temerosos que a todos os outros seja consagrado o que lhes é devido.
Saudosos do “arco de governação” como solução única e condição segura para perpetuarem em toda a sua extensão a política que foi imposta ao País nas quatro últimas décadas lá vão, recheados de ansiedade, chorando pela ausência de “reformas de fundo e acordos de regime” que assegurem a perfeita estabilidade à promoção da política de direita, ao tranquilo trajecto de acumulação monopolista e à transferência para mãos externas dos recursos e poderes de decisão nacionais. Habituados que estavam, com a arrogância e o cinismo que lhes eram reconhecidos, a pendurarem-se na receita da Troika e na rendilhada justificação da alegada “bancarrota” para olearem o assalto aos trabalhadores e ao País aí os vemos indignados com o que chamam de «cardápio da reversão austeritária». Resistamos ao ruído lamuriante que por aí se ouve e contribuamos para que as carpideiras dos interesses dominantes venham mesmo a ter razões ponderosas para se fazerem ouvir.
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