Carlos Branco Major- general e investigador do IPRI Nova
A explicação para os acontecimentos em curso na Ucrânia não se encontra em abordagens maniqueístas dos bons contra os maus, mas sim na geoestratégia, que tem influenciado de modo decisivo a política externa das grandes potências.A compreensão dos acontecimentos presentemente em curso na Ucrânia exige um escrutínio dos factos, que vá para lá dos sound bites estridentes que confundem desinformação com informação, fazendo da verdade a primeira vítima da guerra, como uma vez alguém escreveu. De facto, estamos perante dois assuntos distintos, embora correlacionados: a proteção da população russa da Ucrânia, e a expansão da NATO para Leste, subsumindo-se o primeiro neste último.
A explicação não se encontra em abordagens maniqueístas dos bons contra os maus, mas sim na geoestratégia, que tem influenciado de modo decisivo a política externa das grandes potências.
Isso é bem visível no caso norte-americano. A política da contenção da União Soviética adotada por Washington, nos tempos da Guerra Fria, elaborada e desenvolvida por George Kennan, o arquiteto da estratégia americana para conter a União Soviética, fortemente inspirada nos trabalhos do geoestratega Nicholas Spykman, é um flagrante disso.
Mais recentemente, Zbigniew Brzezinski, conselheiro nacional de segurança do presidente Jimmy Carter, avançou no seu livro “The Grand Chessboard” (1997), com a teoria dos pivôs geopolíticos, considerando a Ucrânia um desses pivôs.
Segundo Brzezinski, a Ucrânia “é um pivô geopolítico porque sua existência como país independente ajuda a transformar a Rússia. Sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império euroasiático… se Moscovo recuperar o controlo da Ucrânia, a Rússia recupera imediatamente a capacidade de se tornar num estado imperial poderoso, abrangendo a Europa e a Ásia.”
Este pensamento ajuda a compreender a tensão que se vive há, pelo menos, quinze anos naquele país. Falamos do confronto entre dois atores geoestratégicos de primeira grandeza: EUA e Rússia.
As mudanças de poder em Kiev
Foi este racional, que prevaleceu quando: (1) no culminar da “revolução laranja” (janeiro 2005), se instalou em Kiev um presidente pró-EUA (Viktor Yushchenko), “revolução” essa revertida pelo voto popular com a eleição de um presidente pró-Rússia (Viktor Yanokovitch), em 2010; (2) a Administração Bush impôs, em 2008, na Cimeira da NATO, em Bucareste, o convite à Ucrânia e à Geórgia para aderirem à Aliança; (3) Viktor Yanokovitch, um presidente democraticamente eleito, foi derrubado em 2014 através de um golpe de estado orquestrado por Washington, perpetrado por grupos paramilitares neonazis, colocando no poder grupos nacionalistas ucranianos anti-russos.
Não bastou ver em Kiev Victoria Nuland, Secretária de Estado Adjunta para os Assuntos Europeus e Eurasiáticos, conjuntamente com Geoffrey Pyatt, embaixador americano na Ucrânia, a distribuírem comida aos “revoltosos”, numa clara ingerência nos assuntos internos da Ucrânia.
Também John McCain, senador e antigo candidato presidencial, esteve em Kiev a apoiar os revoltosos, fazendo-se fotografar ao lado de Oleh Tyahnybok, um dos cabecilhas do golpe, e líder do Svoboda, um partido de inspiração neonazi glorificador de Stefan Bandera e daqueles que combateram do lado de Hitler, que o Parlamento Europeu condenou formalmente por “racismo, antissemitismo e xenofobia”.
O facto de Tyahnybok ter sido impedido de entrar nos EUA, em junho de 2013, por causa do seu antissemitismo público, não impediu que acabasse reciclado uns meses mais tarde em combatente pela liberdade.
As credenciais democráticas do regime instaurado na Ucrânia, em 2014, deixam muito a desejar, ao ponto da insuspeita Freedom House classificar a Ucrânia como um país apenas “parcialmente livre”, a mesma classificação atribuída ao governo filipino chefiado por Rodrigo Duterte. A teoria dos inimigos dos meus inimigos serem meus amigos não tem dado bom resultado, como se verificou no Afeganistão com a Al Qaeda. Os resultados na Ucrânia não são promissores.
O comportamento revanchista do novo governo (uma das primeiras medidas foi abolir a língua russa) provocou uma reação da população russa ucraniana muito semelhante à da população sérvia da Krajina. A solução política para a questão russa na Ucrânia, segundo os acordos de Minsk, passava por lhe conceder autonomia, no quadro da Ucrânia. Solução com que Kiev se comprometeu, mas nunca implementou. Ao invés, optou pela solução militar e cercou as forças rebeldes colocando unidades militares ao longo da linha de separação.
A situação agudizou-se no final de 2021, com os preparativos das forças ucranianas para atacarem o Donbass, e resolver o conflito pela força. Entre outras medidas, as forças ucranianas deslocaram viaturas de limpeza de minas para a linha de contacto; cancelaram as férias dos militares; os comandantes receberam ordens para permanecerem nas suas posições de combate; etc.
Procurando iludir a vigilância dos observadores da Missão Especial de Monitorização (MEM) da OSCE, instalada ao longo da linha de separação, deslocaram armamento pesado não autorizado para o Donbass. Recorreram à guerra eletrónica para anular a operação dos drones da MEM, de modo a ocultar a instalação de armas proibidas pelos acordos de Minsk, nas proximidades da linha de confrontação.
O objetivo das forças russas dispostas ao longo da fronteira com a Ucrânia é impedir a chacina da população russa ucraniana, caso as forças ucranianas cruzem a linha de confrontação, o que a acontecer provocará uma reação militar russa imediata.
O alargamento da NATO
Sobre o alargamento da NATO confrontam-se duas posições divergentes.
Por um lado, a da Rússia que recorre aos princípios da OSCE argumentando que o reforço da segurança de uma nação não pode ser obtido à custa da segurança de outra nação, uma alusão direta à possível entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO, e ao seu alargamento a Leste, procurando impedir a instalação nesses países de unidades militares e armamento; por outro, a da NATO que defende uma política de porta aberta, argumentando que um Estado não pode impor a outro Estado opções de política externa, neste caso particular vetar a adesão de um país a uma organização regional.
A oposição da Rússia ao alargamento da NATO tem sido erradamente atribuída ao espírito maléfico de Putin. Contudo, trata-se de um problema securitário existencial, vital para a Rússia, que extravasa o poder de quem, num dado momento, se senta no Kremlin.
Convém recordar as posições sobre a matéria, dos liberais russos nos idos anos 90. Andrei Kozyrev, então ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos dirigentes russos mais liberal e pró-ocidental que a Rússia alguma vez teve, alertou para o perigo do Ocidente continuar a atacar os interesses vitais da Rússia e ignorar os seus protestos. Um dia haveria uma reação perigosa.
Dirigentes e analistas políticos russos – incluindo reformistas liberais – têm vindo ao longo dos anos a avisar, que tornar a Ucrânia ou a Geórgia clientes securitários dos EUA ou membros da NATO seria cruzar uma linha vermelha, de que resultaria um perigo de guerra. Essas advertências foram ecoadas por George Kennan, Henry Kissinger e outros estadistas americanos.
Embora os Estados sejam todos iguais, as grandes potências são mais iguais do que os outros Estados. A Rússia não está interessada exatamente numa esfera de influência, mas na criação de uma zona de segurança ao seu redor. O que tem sido dito sobre a intenção russa de refazer o antigo império soviético não passa de desconhecimento. Os temores russos sobre a expansão da NATO até à sua fronteira deviam ser compreensíveis para qualquer americano que tenha ouvido falar da Doutrina Monroe.
As propostas russas
Com o objetivo de encontrar soluções para a crise, a Rússia apresentou dois projetos de tratados, um a Washington e outro à NATO. O primeiro, sobre um Pacto de Paz entre a Rússia e os EUA; e o segundo, sobre um pacto com a NATO.
Baseando-se no igual direito à segurança para todas as nações, e nos princípios da Carta das Nações Unidas, que proíbem a ameaça ou o uso da força, Moscovo propôs a Washington o abandono da expansão da NATO para Leste, nomeadamente a adesão de Estados que tivessem integrado a extinta União Soviética, e a retirada de tropas da Aliança dos países que pertenceram ao antigo bloco soviético. Os EUA e a Rússia não usariam aviões e navios equipados com armamento nuclear, em regiões de onde se pudessem atacar mutuamente; e informariam sobre os movimentos dos seus sistemas de lançamento de armas nucleares.
De igual modo, a Rússia e os EUA comprometer-se-iam a não utilizar mísseis de curto e médio alcance e armas nucleares, fora dos seus territórios nacionais, nem em áreas dos seus territórios nacionais, a partir dos quais essas armas pudessem atingir o território da outra parte. Isto aplica-se à instalação dos sistemas Aegis na Polónia e na Roménia, colocando Moscovo e São Petersburgo no seu alcance.
Relativamente à NATO, a Rússia propôs um tratado de segurança, no qual as partes não se considerassem adversárias ou inimigas e, como tal, se consultassem regularmente sobre questões de segurança e informassem mutuamente da realização de exercícios e manobras militares. O dispositivo de forças militares devia limitar-se ao que estava em vigor à data de 27 de maio de 1997. As partes comprometer-se-iam a não colocar mísseis de curto e médio alcance em zonas que lhes permitissem atingir o território da outra parte. E a NATO cessaria o seu programa de alargamento para Leste.
Tanto os EUA como a NATO mantiveram-se inflexíveis perante as propostas russas, continuando determinados em prosseguir a política de “porta aberta”, rejeitando a possibilidade de retirar da agenda a adesão da Ucrânia à Aliança. A possibilidade de regressar ao statu quo de 1997 foi considerada não negociável. Provavelmente, esquecendo o que tem sido a política externa de Washington nos últimos 200 anos, o secretário de Estado Antony Blinken afirmou que “um país [leia-se a Rússia] não tem o direito de ditar as políticas de outro país ou de lhe dizer com quem pode associar-se; um país não tem o direito de exercer uma esfera de influência. Essa noção deve ser relegada para o caixote do lixo da história.”
Mas que guerra?
Entre outras medidas, a Administração Biden decidiu colocar 8.500 soldados em alerta e reforçar o dispositivo da NATO no Báltico, um exercício desnecessário por não dissuadir qualquer ação militar na Ucrânia, e por a Rússia não tencionar atacar países da NATO. Por outro lado, tanto os EUA como a NATO deixaram claro que não tencionam envolver-se militarmente caso deflagre a guerra russo-ucraniana. A ajuda a Kiev “limita-se” ao envio de equipamento e conselheiros militares, forças de operações especiais e mercenários da Academi (antiga blackwater). A isto somam-se conselheiros do Reino Unido, Canadá, Lituânia e Polónia.
Uma possível operação militar russa não visa ocupar a Ucrânia. Washington está ciente que uma ação militar de Moscovo na Ucrânia se limitará ao Donbass, e apenas se as forças ucranianas cruzarem a linha que as separa dos rebeldes. Entre outros motivos, porque não tem recursos para tal, nem faz politicamente sentido. A ideia de Moscovo colocar um governo fantoche em Kiev, ou a despropositada e desnecessária retirada de pessoal das embaixadas americanas e inglesas, não passa de uma operação de desinformação semelhante à que antecedeu a invasão do Iraque.
O comportamento da Administração Biden leva-nos a crer que o seu objetivo é criar um pretexto, não para retaliar militarmente mas para impor pesadas sanções económicas à Rússia, uma delas excluí-la do sistema Swift, e assim bani-la da economia global. Esta conduta insere-se numa linha de pensamento, que defende a possibilidade de os EUA travarem uma guerra convencional vitoriosa com a Rússia e a China, sem que esta escale para o patamar nuclear, assumindo que conseguem controlar todas as variáveis do problema.
Em vez de promover uma guerra por procuração para atingir a Rússia, os EUA deveriam procurar reforçar as relações bilaterais entre os dois países, recuperar das cinzas o Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa (CFE), energizar o Documento de Viena, regressar ao Tratado dos Céus Abertos e recuperar o Tratado de Forças Nucleares de alcance intermédio. Jornal Económico
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