O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO - 22.1 – INICIATIVA - I
O apresentador ouve com um sorriso delicado – por vezes deliciado – um dos habituais entrevistados dizer displicente: “Quem cria riqueza é o empresário” ou assertivo: “Só a iniciativa privada é que cria riqueza”. Veja-se a que é que o neoliberalismo reduziu o que em economia se designa por forças produtivas.
É evidente, que estas, noutras circunstâncias insólitas, afirmações destinam-se a argumentar a favor da retirada do Estado dos sectores básicos e estratégicos da economia e privatizar tudo o que de alguma forma possa dar lucro. A tese é no mínimo indecorosa.
É caso para perguntar, então o que aconteceu na então UE/CEE – para não irmos mais longe – até à década de 80 do século passado? Vejamos: já com as economias há muito recuperadas do pós-guerra, o sector empresarial do Estado era ainda determinante nos principais países. Em 1982, na RFA, o SEE representava 12,5% do VAB de todas as empresas; na Bélgica 15% do total da FBCF; na França 31,7% da FBCF e 16,5% do PIB de todos os sectores de actividade (excluindo o financeiro); no Reino Unido (1985) 12% do PNB e 20% da FBCF; Itália 25% do VAB de toda a economia e 49,7% da FBCF. Como é que se pode dizer que a gestão pública é por definição ineficiente?
Actualmente privatiza-se com os visíveis resultados de destruição global das sociedades mergulhadas em profundas crises económicas e sociais.
Não há em apoio daquelas afirmações, nenhum argumento nem prático nem teórico. Muito pelo contrário, antes do totalitarismo neoliberal dominar as nossas sociedades, prestigiados economistas, de organismos internacionais privilegiavam o investimento público em particular nas economias com maiores atrasos estruturais e problemas de desenvolvimento económico.
E. S. Mason escrevia: «em muitas áreas subdesenvolvidas a empresa privada parece ser uma candidata bastante fraca para assumir as pesadas responsabilidades do desenvolvimento; o mercado livre concebido como organismo central na orientação da utilização dos recursos deixa muito a desejar» (Economic Planning in Underveloped Areas, Fordham University press, New York 1958, pág. 61)
Em Industrial Planning (Nações Unidas, 1969, pág.2) afirma-se: «em vista das tremendas barreiras levantadas ao desenvolvimento económico seria irrealista imaginar que a expansão industrial ocorrerá espontaneamente. A rigidez estrutural e outros obstáculos encarados por muitos países em desenvolvimento não podem ser ultrapassados apenas pelas forças do mercado, a planificação é uma parte essencial do desenvolvimento industrial nesses países».
Pretender corrigir esta situação por meio de incentivos ao lucro não é eficaz, pois «a ajuda trazida às forças do mercado livre, graças a diversas medidas de origem governamental, constitui sem dúvida uma estratégia. O seu efeito é contudo insuficiente, porque ela não garante a realização de objectivos precisos num tempo dado» (I.Sachs e K Lasky, Industrialisation et productivité, Nações Unidas, Junho, 1972, pág. 35).
Os políticos do neoliberalismo proclamam a «função social» do capitalismo e da privatização da economia. Porém, como conciliar este piedoso objectivo com o facto de o sistema só funcionar baseado na taxa de lucro e funcionar «tanto melhor» quanto mais alta for essa taxa?
Quanto ao mito da eficiência privada, aí estão os resgates das dívidas bancárias, das fraudes financeiras, em suma, da usura fomentada por instituições financeiras a seu comando, aceites de forma subserviente pelos governos que se colocam na sua dependência, ao seguirem os seus critérios.
O preceito de privatizar tudo o que possa dar lucro foi levado ao cúmulo de se transformarem serviços de carácter social e colectivo em actividades monopolistas e rentistas de que são exemplo as PPP. As consequências têm sido desastrosas. Parte-se do princípio, dogmático aliás, que o interesse colectivo seria melhor desempenhado pela empresa privada. Sendo uma negação da própria teoria económica e de toda a lógica do funcionamento da empresa capitalista, na realidade o que ocorre nestes casos é o lançamento de impostos de forma directa ou indirecta sobre os cidadãos através dos preços de monopólio e respectivas rendas.
O que é um perfeito disparate em termos económicos e sociais tornou-se um disfarce para manobras de corrupção, favoritismo, desleixo, incompetência.
Esclareça-se que não nos move qualquer preconceito contra a empresa capitalista ou empresa privada – os termos correctos para “iniciativa privada”. Pelo contrário, as empresas privadas devem ser apoiadas pelo Estado, na medida em que contribuam para os objectivos macroeconómicos devidamente definidos e planeados. É justamente desta ausência que se queixam muitos empresários. Devemos também distinguir as diferenças fundamentais e estruturais que existem no sector capitalista entre as MPME e as grandes empresas de cariz mono ou oligopolista e o capital financeiro especulador. O conceito de renda e de mercado monopolista estabelece esta diferenciação. A confusão ideológica que se estabelece procura disfarçar a diferença de interesses entre uns e outros. Os interesses das MPME encontram-se face ao neoliberalismo muito mais próximos dos trabalhadores, que constituem afinal o seu principal mercado, do que do capital rentista e especulador, que estrangula estas empresas no crédito e nos factores de produção.
Poderá dizer-se que o Estado como gestor é ineficiente. Os dados iniciais demonstram o contrário. Na verdade, a eficiência – ou a ineficiência - dos seus serviços e resultados tem que ver em primeiro lugar com a ideologia política dominante. Depois com a competência e honestidade dos seus dirigentes, com os seus objectivos pessoais. São conhecidos os casos de responsáveis de cargos públicos negociarem com entidades privadas vindo posteriormente a ocupar elevados cargos nessas empresas. A alegada ineficiência do Estado é o resultado deste ser entregue a pessoas cujos preconceitos ideológicos e interesses pessoais subordinam a sua acção aos interesses privados do grande capital monopolista e financeiro.
A seguir – Iniciativa II
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