Linha de separação


23 de junho de 2011

O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO – 22.2INICIATIVA – II
Fala-se que “só a iniciativa privada é que cria riqueza”. A primeira questão é compreender o que entendemos por riqueza e por iniciativa.
Quando a Espanha inundou a Europa com o ouro trazido das “Índias Ocidentais” conseguiu várias coisas, menos tornar-se mais rica: os preços dos bens mais simples foram multiplicados várias vezes arruinando os que viviam do seu trabalho. Teria criado riqueza? A Espanha atravessou uma enorme crise, económica e social. Os campos despovoaram-se, Castela perdeu mais de metade da população, Toledo encerrou todas as suas fiações de lã. Os 400 tecelões de Sevilha ficam reduzidos a 50. Na serra Mestra, os rebanhos de ovinos passaram para menos de um terço.
O desenvolvimento desastroso das ideias monetaristas/neoliberais conduziu a resultados semelhantes nos países que adoptaram ou foram obrigados a seguir os seus dogmas. O significado de riqueza é a posse de bens, não a posse de dinheiro! Como é possível que isto tenha escapado aos actuais gurus que vão intoxicando a opinião pública? O dinheiro é um mero equivalente, um meio de troca, pode servir de entesouramento, mas o seu valor só se realiza quando se troca por bens, ou serviços equivalentes, isto é, por valor-trabalho. A única riqueza real é a criada pela força de trabalho e – note-se – pela forma como esta é remunerada.
Passemos por agora à questão da iniciativa. O próprio significado da palavra contradiz o “privado”. Iniciativa é o acto pôr em prática um plano ou uma ideia; é a qualidade da pessoa que está disposta a empreender algo. Uma organização é tanto mais dinâmica, com capacidade de progredir e evoluir quanto mais e melhor seja capaz de incentivar e aproveitar as iniciativas dos seus trabalhadores ou colaboradores. O que não há é “iniciativa privada”. Há capital privado e há pessoas com ideias inovadoras, com ou sem capital próprio, que as procuram pôr em prática. A partir do momento em que a ideia passa à prática deixa de ser privada, melhor dizendo, individual, passa a ser esforço colectivo, trata-se do carácter social da produção. Não faz sentido falar em “iniciativa privada”. A produção, a criação de riqueza, é social. A iniciativa pode existir como ideia, a partir deste momento a sua concretização depende de todo um conjunto de contribuições colectivas.
Existe sim um outro elemento: a capacidade de liderança para pôr a organização a funcionar eficaz e eficientemente. Diga-se que o primeiro papel do líder será congregar vontades à volta de objectivos mutuamente assumidos – as iniciativas. A visão do líder, a capacidade de prever e dar solução a dificuldades e alteração de circunstâncias são qualidades fundamentais da liderança, não se trata é de “iniciativa privada”. O empreendorismo, o esforço individual, é socialmente necessário, em capitalismo, em socialismo, em qualquer outro sistema económico e social, porém a competência e o talento só se realizam na organização. O eufemismo “iniciativa privada”, resulta da má consciência das malfeitorias resultantes do capitalismo, crismando-o de “iniciativa privada”, misturando na mesma designação conceitos muito diversos.
Pode-se falar em iniciativa individual no caso da criação artística ou mesmo artesanal. Mas só no acto de criação, pois o livro, a pintura exposta, a escultura, a música tocada, exige outras iniciativas de carácter social, o contributo de organizações de carácter social. “Cada homem é um elo indispensável numa cadeia de efeitos, cujo começo nada mais é que uma ideia” (Marx – Filosofia da Miséria – p.66 – citando o economista Bray)
Sem prejuízo, de considerarmos que numa economia dinâmica tem de haver lugar para várias formações económicas: públicas, privadas, cooperativas – excepto, frisemos mais uma vez, para o capital rentista e a especulação – o sentido do que apontámos na primeira parte mostra que o Estado não só pode ser – como foi - gestor eficiente.
Na realidade, o Estado é a única entidade capaz de definir e contabilizar os custos e benefícios sociais dos investimentos. Se a acção do Estado se guiar por um plano económico coerente e por critérios sociais, o investimento público é mais valioso, pois o lucro da empresa privada vai repartir-se entre reinvestimento e aumento do consumo capitalista. Isto significa que se piora a relação acumulação - consumo e as desigualdades na repartição do rendimento relativamente ao investimento público.
O investimento privado é também valioso e pode substituir-se ao investimento público em muitos casos, devendo ser apoiado na medida em que contribua para os objectivos macroeconómicos definidos pelo plano económico e social. Contudo, na realidade actual apesar do aumento dos lucros dos bancos e das grandes empresas o investimento reduz-se, as diferenças entre o PIB e o RN mostram que é cada vez maior a parcela de riqueza que abandona o país.
O problema da “iniciativa privada” entregue aos princípios neoliberais, dá origem ao feitichismo do dinheiro, expresso no actual poder financeiro incapaz de fazer face às tempestades que desencadeou, na livre circulação de capitais, na isenção de impostos que beneficiam, passando então em vez de serem socialmente controlados a controlar todos os aspectos da existência: quer éticos, quer materiais, impondo a ditadura de uma certa classe de grandes detentores de capital e seus agentes, por mais formalmente correctas que pareçam as instituições democráticas.
O problema das críticas de ineficiência ao sector empresarial do Estado foi que este passou a depender de cúpulas que defendem interesses alheios aos objectivos de toda a sociedade.
As ideias que hoje nos vendem como inquestionáveis têm apenas escassas décadas, que em termos económicos e sociais se revelaram retrocessos civilizacionais - como temos visto.
O futuro, pela acção dos povos, se encarregará tal como no passado de as remeter para o lixo da história. Esperemos para bem de todos que o mais rapidamente possível.
A seguir – Salário de subsistência

Sem comentários: