Ler sem preconceitos
Contra a corrente . Jorge Cordeiro
Aqui estamos contra a corrente. Sabendo que nos há-de cair o Carmo e a Trindade em cima. Tendo por certo que entre a acusação de atávico a antidemocrático com que se será brindado há-de caber um rol imenso de impropérios, que por decoro e respeito pelo jornal e pelos leitores não antecipo. Sabendo que ainda a prosa não estará meia lida e já estarão a "mandar-nos para a Sibéria". Antevendo isso, e tudo o mais, ainda assim não se deixará de dizer o que tem de ser dito. Não se sucumbirá à chantagem ou à rasoura da opinião dominante nem se desertará do confronto de ideias. Quando se perdem princípios e valores perde-se a credibilidade e o direito a merecer o respeito de outros, mesmo quando de nós discordam.
E sobretudo não nos deixaremos arrastar para o redil da grelha da leitura e da formatação de opinião que é construída sobre os acontecimentos e a situação internacionais. Vamos a exemplos. Ainda que, tal como na teoria da intersecção de conjuntos, há elementos que simultaneamente pertencem a dois ou mais conjuntos. Cada manobra de desestabilização de países soberanos (seja a Venezuela ou Angola), cada processo de remoção de governos legítimos (seja a Líbia ou o Brasil), cada opção soberana de Estados que não convirja com a submissão aos interesses dos EUA e dos seus aliados (seja o Irão ou Cuba), cada acção intervencionista ou acto de guerra dos EUA e seus aliados (seja na Síria ou no Iraque) é meticulosamente elaborada.
A visão dos acontecimentos que nos impõem é, sistematicamente, não a que corresponde aos factos, mas aquela que a artilharia de condicionamento ideológico dos centros de difusão do imperialismo decretam que seja fabricada. Cada uma das intervenções é suportada na intoxicação da opinião pública, repetindo os argumentos que apesar de falsos hão-de ser de tantas vezes repetidos, tidos como bons, dando como verdade o que sabem ser mentira para justificar os actos a perpetrar. Feita verdade a mais descarada mentira - seja a das armas de destruição massiva de Saddam ou a do genocídio atribuído a Kadhafi em Bengazi - aplanado fica o terreno não só para os verdadeiros criminosos agirem, como para criminalizar os que ousem questionar, duvidar ou demonstrar a falsidade em que assentam. Uma máquina imparável de condicionamento de consciências e de amputação do direito a discordar é posta em marcha. Os que ousem interrogar - seja a catalogação de "regimes" ou "rebeldes", a existência de armas químicas, os critérios que conduzam à arrumação na categoria de "ditadores" ou de "corruptos", seja as proclamadas intenções "libertadoras e humanitárias", a nobreza de "revoluções coloridas" ou a fabricação de "dissidentes" -, ou saem da frente ou arriscam-se a ser trucidados. Para já em palavras, ainda que as palavras de alguns como as que por cá se lêem revelam que pudessem eles e ganhariam a forma do cano de uma espingarda.
Evitando amálgamas, seguramente injustas, distingamos posicionamentos. Um primeiro, que no essencial se remete a repetir e ruminar tudo o que lhes é fornecido para reproduzir. Seja por razões de preguiça, falta de sentido profissional ou temor, fazem-no sem cuidar de apurar factos ou confrontar fontes. Um segundo, que agrupa os engajados no objectivo e sintonizados com os centros ideológicos, reproduz e amplia o que ali é elaborado. Sabem ao que estão, não se coíbem de repetir as mentiras confiantes que a "máxima" de Gobbels comprove que uma mentira tantas vezes repetida há-de ganhar a cor da verdade. Hoje em torno de qualquer cabala como décadas atrás com a provocação do incêndio do Reichstag. Um terceiro, os que tendo como único critério o que lhes pareça render popularidade, aí os vemos alimentando-se do que bordeja a opinião pública, desprezando o apuramento da verdade, chutando para onde estão virados desde que haja quem os aplauda. Sempre com aquele brilhozinho nos olhos de quem, na crista mediática, faz o "dois em um": vazam o preconceito anticomunista que os povoa desde pequeninos ao mesmo tempo que farejam o reconhecimento fácil que valha uns quantos votos e elogios.
Aí os temos, por junto, embevecidos com a farsa plebiscitária na Venezuela mas silenciando o boicote terrorista da votação da Constituinte; aí os temos ciosos da intocabilidade da liberdade de imprensa mas mudos e quedos aquando da destruição pela NATO da estação de televisão jugoslava; aí os temos clamando pelo carácter sagrado dos Parlamentos mas revivendo com gáudio o bombardeamento do Parlamento Russo em 1993; aí os vimos exultando com a Primavera Árabe para justificarem a destruição do Estado Líbio. Todos iludindo os interesses de classe, objectivos socioeconómicos e estratégias de dominação em presença no plano internacional. Por mais que se disfarcem há sempre uma pontinha do rabo que os denuncia. Sem que nunca lhes pese na consciência nem ninguém os responsabilize pelo que, do Chile em 1973 à actual tragédia dos refugiados, é obra directa da conspiração e agressões do imperialismo.
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