Arde tudo menos o défice .
Jorge Cordeiro
Ainda crepitava o rasto de destruição deixado pela tragédia florestal e já se ensaiava, sem decoro e a seu pretexto, uma operação política e ideológica cujo fim está para lá dela. Segundo os seus promotores a resposta plena que é necessário dar, desde logo na indispensável mobilização de recursos e meios financeiros, teria de ser encontrada não nas opções orçamentais que soberanamente o País tem de assumir, mas na sua acomodação a partir do colete de forças imposto pela estratégia do défice, da dívida ou do Tratado Orçamental. Ou seja, a opção com que nos depararíamos seria a de responder ao que a tragédia e a política florestal exigem ou ter de regressar à intensificação da exploração e empobrecimento dos trabalhadores e do povo português. Essa mesma política que, década após década, está na origem da dimensão dos acontecimentos sobre os quais alguns derramam lágrimas de crocodilo.
O respeito devido à perda de vidas e de bens, a dor de muitos e o desamparo de tantos outros face ao drama deixado pelo fogo sucumbiu à instrumentalização de alguns para alcançar o que há muito prosseguem. A moção de censura do CDS é, tão só, a corporização de uma operação de maior alcance. Não se questiona o uso de um direito constitucional e parlamentar para expressar um juízo político face a um qualquer governo. Nem se iludem os erros e responsabilidades do governo PS neste processo. Nem tanto o facto de ter sido apresentada em período de luto nacional. O que merece denúncia é o facto de a sua apresentação, à boleia de um legítimo sentimento de comoção nacional, visar, em nome do que não a move, o propósito indisfarçável de ajustar contas com um passado recente com que o CDS não se conforma. Embora destinada ao destino que teve e devolvida ao regaço de quem a concebeu, o pressuposto da iniciativa está longe de ter sucumbido.
Perdura o elemento essencial que lhe estava subjacente. O uso dos fogos florestais para ajustar contas, reverter avanços e reposições de direitos, justificar o regresso ao caminho de assalto a salários e rendimentos. Sem rodeios, ei-los a recolocar todo o argumentário que acompanhou a política nacional na primeira metade da actual década. O “não há dinheiro” que justificou o que se conheceu tem agora na versão “folga orçamental” o seu sucedâneo. Uns, a contrapor as medidas imediatas, necessárias e inadiáveis, às soluções de fundo que dêem resposta estrutural, sem a qual novas tragédias se repetirão. Outros, a contrapor os problemas da floresta ao OE e aos direitos sociais do povo português. Como se a destruição dos serviços públicos como os Florestais não fossem causa da tragédia. Já os conhecemos, os mesmos que justificaram o roubo aos trabalhadores do sector público em nome dos direitos negados a todos ou que defenderam a precariedade e baixos salários porque os desempregados nem isso tinham. Para uns e outros, intocáveis apenas os interesses da banca privada, a trajectória do défice, os encargos de uma dívida insustentável. Pode arder tudo menos o défice!
Portugal tem o dever de cuidar do que é seu e dos seus. O que se exige das instituições nacionais é que assumam as opções que correspondam prioritariamente aos interesses do País e não que os subordinem a regras e imposições externas. Não é preciso semear uma mão cheia de investigadores em busca da “folga orçamental”. Mais expeditamente se esbarrará com ela do que com o armamento de Tancos. Ajuste-se em termos exigíveis o valor do défice projectado para 2018 – fixado por opção do governo do PS nuns injustificados 1,0 – e libertar-se-ão por cada décima que se lhe acresça um fracção de 200 milhões de Euros. Opte-se por não derreter uma parcela do saldo orçamental primário – estimado para 2018 em mais de cinco mil milhões de Euros – em juros da dívida e encontrar-se-ão recursos para acudir à floresta e para financiar serviços públicos e funções sociais como a saúde.
Na edição de há uma semana deste jornal lia-se num artigo de opinião que se estava «confrontado com o fim da ficção que é possível distribuir tudo a todos, sem faltar dinheiro noutros lados, como se este proviesse de uma arca sem fundo». A resposta a esta interpelação acabou dada nas páginas deste mesmo jornal na mesmíssima edição numa peça titulada “Bancos falidos vão custar ao Estado mais de mil milhões em 2018.” Nela se ficou a conhecer que neste Orçamento do Estado a despesa com veículos financeiros saídos dos escombros do BPN, BES e BANIF, e acumulados durante anos, ascendia a esse valor. Fica assim peremptoriamente provado que entre ficção e realidade há toda uma diferença que se teima em não querer ver. Aquela realidade que persiste na sucção de recursos de todos para cobrir os desmandos fraudulentos da banca privada e essa ficção, há décadas por realizar, de uma política que responda plenamente ao direito do povo português de acesso aos direitos sociais e económicos constitucionalmente consagrados.