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11 de outubro de 2017

Agudização de contradições

A situação internacional está marcada por uma agudização abrupta e generalizada de contradições cada vez mais públicas.
Por Jorge Cadima
Rivalidades, disputas, acusações, sanções e ameaças caracterizam as relações transatlânticas; as relações entre setores diversos do grande capital nos EUA; no seio da União Europeia (UE) – e em numerosos dos seus países-membros; da UE com a Turquia; entre as petro-monarquias do Golfo; nos fóruns que congregam grandes potências, como os G7 ou os G20. Para já não falar nas disputas entre os EUA/UE e a Rússia e entre os EUA e a China, ou nas permanentes operações de guerra, subversão e desestabilização levadas a cabo pelo imperialismo e os seus agentes no Oriente Médio, na Península Coreana, no Mar da China, na Venezuela, em África e noutras paragens. A riqueza é concentrada nas mãos duma cada vez mais restrita minoria parasitária, ao mesmo tempo que se intensifica a exploração, a precaridade e a miséria de largas massas. Perante o crescente isolamento social e político do grande capital, intensificam-se as derivas autoritárias e fascizantes, bem como a corrida ao militarismo, ao rearmamento, à guerra.
O avolumar das contradições é o espelho da profunda crise do capitalismo. O sistema que gerou a crise é incapaz de a ultrapassar, mesmo após uma década de medidas absolutamente excepcionais de apoio ao grande capital financeiro. A profunda crise econômica e social, e o feroz ataque aos trabalhadores e povos pelos governos ao serviço do grande capital, estão a abrir brechas nos mecanismos de controle ideológico sobre os povos. A recusa das tradicionais potências imperialistas em aceitar a nova correlação de forças econômicas, resultante do ascenso de novas potências – com destaque para a China – é cada vez mais evidente. Mas as contradições crescentes tendem a agudizar os problemas e a própria crise. O acumular quantitativo das contradições aponta para uma transformação qualitativa, para um salto qualitativo da crise e das suas expressões, e para desenlaces potencialmente explosivos.

As rivalidades inter-imperialistas
Uma das frentes mais evidentes no avolumar de contradições reside nas relações transatlânticas. O Presidente francês e agente da grande finança, Macron, em conferência de imprensa no final do G-20 de Hamburgo, falou em “divergências crescentes entre grandes potências”, em “reais divisões e incertezas que não existiam há apenas poucos anos” no seio do “mundo ocidental”, em “dúvidas sobre a pertinência do multilateralismo e o questionar do modelo no qual vivemos desde 1945”. Já a imprensa alemã, nas vésperas do G-20 dava conta de disputas intensas no plano econômico, com ameaças mútuas de sanções entre os EUA e a Alemanha/UE (Der Spiegel, 30.6.17). O Der Spiegelafirma: “Parece que o Ocidente, enquanto entidade, se está a desintegrar” (30.6.17).
Exemplo gritante são as sanções econômicas decretadas pelos EUA contra a Rússia, Irão e RPD da Coreia, mas também contra quem coopera com empresas petrolíferas e de gás russas. As sanções dos EUA foram aprovadas por quase unanimidade em todas as votações (98-2 no Senado, por duas vezes, e 419-3 na Câmara de Representantes). Logo após a primeira votação no Senado, em junho, os Ministros de Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Áustria responderam em comunicado: “não podemos aceitar ameaças contra empresas europeias que contribuem para o sistema de abastecimento energético europeu, através de sanções extra-territoriais que violam o Direito Internacional”. Diretamente em causa está o grande projeto Nord Stream II de abastecimento energético da Rússia à Europa Ocidental. Os MNE acrescentam que “a questão tem tudo a que ver com a venda do gás condensado dos EUA […] o verdadeiro objetivo é o de criar emprego para as indústrias do gás e petróleo dos EUA”, atingindo “a posição concorrencial das nossas indústrias de grande intensidade energética e milhares de postos de trabalho” (Russia Today, 15.6.17). É caso para dizer que o feitiço das sanções virou-se contra o feiticeiro. Mas tanta clarividência não impediu que, poucos dias depois, a UE renovasse as suas próprias sanções contra a Rússia (presstv.ir, 28.6.17).
As contradições inter-imperialistas são reais. O modelo de desindustrialização acompanhado de financeirização galopante que caracteriza desde há várias décadas o capitalismo (em particular anglo-saxônico) conduziu a maior potência econômica imperialista a uma situação financeira insustentável, agravada pelas aventuras militares e o autêntico esbulho das finanças do Estado praticado pelo grande capital dos EUA – especialista em não pagar impostos, embora receba chorudas prebendas estatais. O protecionismo econômico de Trump é o reconhecimento de que o modelo “neoliberal” parasitário e improdutivo que foi apresentado ao mundo como prova acabada da superioridade do capitalismo atual é, na realidade, um colossal embuste, uma ficção insustentável, mesmo para quem dele se beneficiou acima de todos: o grande capital dos EUA. O rei vai nu. Mas a forma de o tentar vestir divide a própria classe dirigente norte-americana, envolvida numa das mais ferozes disputas públicas internas de que há memória. Em finais de julho, o ex-chefe da CIA Brennan apelou publicamente à recusa de cumprimento de certas ordens do Presidente (CNN, 22.7.17). E no seio da União Europeia, as crises e rivalidades internas não param de aumentar. Destaquem-se o Brexit, as rivalidades entre Bruxelas e Varsóvia ou Budapeste, ou o confronto com a Itália na questão dos refugiados e imigração e na questão bancária.
Não é a primeira vez que estas contradições inter-imperialistas vêm à tona neste século. Já em 2003, em torno da criminosa guerra de Bush, Blair, Aznar e Durão Barroso contra o Iraque, foi evidente a clivagem entre os EUA/Reino Unido e o então eixo franco-alemão de Schröder e Chirac. O que estava em causa não era qualquer preocupação com o Direito Internacional, o papel da ONU, ou a verdade dos fatos, como ficara patente, quatro anos antes, na igualmente criminosa e mentirosa guerra contra a Iugoslávia. O que estava em causa era a forma de enfrentar o esgotamento dos mecanismos de reprodução do capital, a insustentabilidade das bolhas e crises financeiras da chamada fase neoliberal do capitalismo (desde logo, nos EUA) e o declínio das tradicionais potências imperialistas, que já então se evidenciava. Por um lado, setores do grande capital financeiro, politicamente representados pelas “velhas potências” europeias, defendiam uma aliança transatlântica para impor a hegemonia planetária do grande capital euro-americano. Por outro lado, setores representados por Bush defendiam uma afirmação unilateral dos interesses do grande capital dos EUA, alicerçada no seu poderio militar, financeiro, industrial, informático e midiático, acentuando o papel subordinado do grande capital europeu e do resto do planeta.
A resistência do povo iraquiano à aventura militar dos EUA no Iraque e a eclosão da crise de 2007-8, com epicentro nos EUA, vieram alterar a correlação de forças entre os setores do grande capital em disputa. Politicamente, a nova fase de reaproximação e colaboração entre os pólos norte-americano e europeu do imperialismo fora preparada pela chegada ao poder de Merkel (novembro de 2005) e Sarkozy (maio de 2007), bem como pela cooptação de Durão Barroso, fiel serventuário dos EUA desde os seus tempos de jovem ativista do MRPP, para chefiar a Comissão Europeia (novembro de 2004), premiando o seu vergonhoso papel quando da Cimeira das Lajes*. Mas foi a eleição de Obama (novembro de 2008) que assinalou, nos EUA, a ascensão dos setores ligados à visão duma dominação colaborante do grande capital euro-atlântico (sem que a hegemonia dos EUA alguma vez fosse posta em causa). Os crimes imperialistas desta nova fase não foram menores do que na fase anterior: a destruição da Líbia, da Síria, do Iêmen, a escalada do ataque à Rússia, o golpe de Estado na Ucrânia, o prosseguimento das guerras no Iraque e Afeganistão, a contra-ofensiva na América Latina, acompanhados pela escalada brutal na ofensiva contra os trabalhadores e povos dos países do centro imperialista, como ficou patente nas “troikas” FMI-BCE**-Comissão Europeia que fustigaram vários países europeus, entre os quais Portugal. A reacionária natureza de classe da “colaboração liberal” euro-atlântica é indesmentível.
A eleição de Trump à Presidência dos EUA (novembro de 2016) marca uma nova fase nas relações transatlânticas, com o reacender das rivalidades e contradições. O repúdio do TTP e dos Acordos de Paris sobre o Clima ilustram o crescente unilateralismo político e econômico dos EUA. A crise do capitalismo parece entrar na fase do “salve-se quem puder”.
Estas rivalidades inter-imperialistas não devem surpreender, nem são novidade histórica. No século XX conduziram, por duas vezes, a Humanidade à calamidade de grandes guerras mundiais. Já Lênin salientava como “sob o capitalismo não se concebe outro fundamento para a partilha das esferas de influência, dos interesses, das colônias, etc., além da força de quem participa na divisão, a força econômica geral, financeira, militar, etc. E a força dos que participam na divisão não se modifica de forma idêntica, visto que sob o capitalismo é impossível o desenvolvimento igual das diferentes empresas, trusts, ramos industriais e países. […] Por isso, as alianças ‘inter-imperialistas’ ou ‘ultra-imperialistas’ no mundo real capitalista […] só podem ser, inevitavelmente, ‘tréguas’ entre guerras”. (1) Durante meio século após a II Guerra Mundial, podia parecer que esta realidade se tivesse alterado. A “ameaça” das revoluções socialistas triunfantes e o enorme desequilíbrio de forças econômicas resultante do fato de a guerra se ter combatido longe das costas dos EUA, levara a que o grande capital do resto do planeta aceitasse a sua subalternidade à supremacia do imperialismo norte-americano, sem grandes disputas públicas, embora essa aceitação sempre fosse mais aparente do que real (veja-se De Gaulle, ou Suez em 1956). O desaparecimento do sistema socialista mundial, o enfraquecimento relativo dos EUA e a eclosão da crise sistêmica do capitalismo, vieram de novo incrementar o peso das rivalidades no binômio contradição-concertação.
A ascensão da China e o papel da Rússia
Mas é a enorme alteração da correlação de forças econômica, resultante do ascenso da China à posição de maior economia mundial, o fator de contradição mais agudo. Um ascenso que assentou sobre conquistas históricas da Revolução Chinesa, como a alfabetização e educação de massas, mas também nos investimentos que durante muitos anos foram feitos pelas potências imperialistas para, simultaneamente, beneficiarem duma mão-de-obra e recursos naturais baratos e enfraquecerem, através das “deslocalizações”, a classe operária dos seus países de origem. Hoje a China transformou-se numa grande potência econômica, que soube apropriar-se dos avanços tecnológicos e produtivos para assegurar uma via de desenvolvimento autônoma, elevando o nível de vida do povo chinês mas acentuando desigualdades sociais. No Financial Times (19.7.17), Martin Wolf diz: “estima-se que a quota-parte da China na produção mundial salte de 4% em 1990 para 21% em 2022”, uma percentagem que se aproximará da soma dos EUA e da UE. Grandes iniciativas econômicas (como a Nova Rota da Seda) permitem perspectivar o desenvolvimento de vastas regiões do globo, que a dominação colonial e neo-colonial deixara para trás, de forma autônoma face às velhas potências imperialistas.
Trump parece privilegiar a via do confronto com a China, como é evidenciado por inúmeras provocações militares, incluindo a venda de armas a Taiwan e as ameaças constantes à RPD da Coreia. Outras potências imperialistas parecem privilegiar uma estratégia de coexistência, talvez com esperança num aprofundamento de relações de produção capitalista que crie realidades qualitativamente novas naquele enorme país. A revista alemã Der Spiegel(20.4.17) chega mesmo a perguntar se uma eventual guerra comercial de Trump contra a Alemanha e a China não poderia levar à criação dum “eixo Pequim-Berlim”.
A Rússia, pela sua dimensão, recursos e História, e também pelo arsenal nuclear que herdou da URSS, está em condições de afirmar a sua autonomia face aos velhos centros imperialistas. A Rússia capitalista não é a União Soviética socialista, embora a propaganda anti-russa faça lembrar a histeria anti-soviética de outrora. As velhas potências imperialistas negam à Rússia o estatuto de parceiro a que parte importante da classe dirigente russa ambicionava. Após 1991 foi tratada como colônia a saquear, e não falta quem (como o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Brzezinski) tenha defendido abertamente a desagregação daquele imenso país, abrindo as portas à pilhagem sem entraves dos seus gigantescos recursos naturais e humanos por parte do grande capital imperialista. Sendo clara a marca de classe da política russa, é, objetivamente, em defesa da própria sobrevivência do seu país que os atuais dirigentes russos têm agido.
O primeiro semestre da Presidência Trump mostra a força enorme do “partido da guerra” no seio da classe dirigente dos EUA. Mas a crescente aliança Rússia-China é fator de contenção e um aspecto marcante e positivo da situação internacional.
Os perigos do autoritarismo e da guerra
É este o contexto no qual ressurge com grande força, à semelhança do que aconteceu no século passado, a aposta de vastos setores das classes dominantes no autoritarismo, no fascismo (velho ou novo), na guerra. Macron está a transformar a legislação de exceção, instaurada após os ataques em Paris em novembro de 2015, em legislação corrente, preparando um feroz ataque aos trabalhadores franceses. Um recente relatório do conhecido think tank Brookings Institute tem por título “Mais profissionalismo, menos populismo: como votar nos torna estúpidos e o que fazer em relação a isso”. Afinando pelo mesmo diapasão, um comentarista no Los Angeles Times (9.6.17) acolheu o avanço dos trabalhistas britânicos sob Corbyn escrevendo: “A eleição britânica faz lembrar os perigos de demasiada democracia”, e “pensaríamos que já teriam aprendido na Grã-Bretanha que há coisas que não devem ser submetidas ao voto popular – por exemplo, o pertencimento à União Europeia”.
De forma ainda mais brutal, multiplicam-se os episódios de legitimação do velho fascismo do século passado, sempre em nome do anti-comunismo (que foi, aliás, o pretexto das classes dirigentes para apoiar entusiasticamente o fascismo nos anos 20 e 30). A Otan lançou oficialmente em julho um filme glorificando os “Irmãos da Floresta”, que o norte-americano Dovid Katz descreve como “fascistas, incluindo assassinos reciclados da fase genocida do Holocausto Letão, em 1941”, que combatiam nas florestas dos Estados Bálticos para “atrasar o avanço Soviético […] que haveria de libertar os campos da morte, mais a Ocidente” (alternet.org, 20.7.17). Nas palavras de outro historiador, a participação direta nos massacres nazis destes colaboracionistas, glorificados pela Otan como “combatentes pela liberdade”, foi precisamente “uma das razões pelas quais se juntaram à resistência anti-Soviética – para evitar o julgamento pelos soviéticos, devido à sua colaboração com os Nazis” (alternet.org, 20.7.17). Em comunicado, o Partido Comunista da Polônia informa que, ao abrigo das chamadas “leis de descomunistização”, “a 10 de Maio [2017], um dia após o aniversário da Vitória sobre o fascismo, foi tornada pública a lista dos nomes de ruas que irão ser mudados [na cidade polaca de] Wroclaw. Inclui, para já, a rua dedicada às Vítimas de Auschwitz”. A violência fascista para aterrorizar os povos é abertamente protegida na Ucrânia (massacre de Odessa, 2014), ou na Venezuela (onde a “oposição democrática” queima vivas pessoas acusadas de chavistas). Gradualmente, a grosseira falsidade da equiparação do comunismo com o fascismo vai sendo substituída pela relegitimação do fascismo, em nome do anti-comunismo. O filho hooligan do grande capital é acolhido com carinho por quem o deu à luz.
Tal como no século XX, esta promoção do fascismo, do autoritarismo e da violência tem como primeiro objetivo os povos contra os quais se dirige. Não é coincidência que alguns dos países mais sacrificados pela restauração capitalista dos anos 90 (Ucrânia, países Bálticos) sejam dos países onde mais se faz sentir a promoção do fascismo. Segundo um recente relatório do Eurostat*** (citado em journal-neo.org, 25.6.17), na Lituânia 29% da população vive no limiar da pobreza, e a população do país caiu de 3,7 milhões em 1990, para apenas 2,8 milhões em 2016. A Lituânia é o país com mais suicídios na UE. Na vizinha Letônia a população caiu de 2,7 milhões para 1,9 milhões, e um em cada 14 habitantes sofre de depressão.
Mas a promoção do fascismo visa, tal como no passado, um fim mais sinistro: a preparação das condições para a guerra. Também não é coincidência que toda a zona envolvente do mar Báltico, nomeadamente a que circunda o enclave russo de Kaliningrado, seja palco de enormes manobras militares da Otan (e, em resposta, manobras conjuntas russo-chinesas). Para setembro estão previstas manobras conjuntas da Otan com a (teoricamente neutra) Suécia, envolvendo 19 mil soldados. A UE, sem dinheiro para os povos, quer gastar milhões na criação dum Exército Europeu. A recente proibição pelo Pentágono da divulgação dos locais onde se inspecionam armas nucleares dos EUA visa, como escreve o jornalista italiano Manlio Dinucci, esconder a provável instalação de armas nucleares dos EUA na Polônia e países Bálticos (Il Manifesto, 21.7.17). E nunca é demais recordar a louca teorização de que “a arma atômica […] para as grandes potências deixará de ser um obstáculo” (General Loureiro dos Santos, Diário de Notícias, 13.3.00).
O fascismo e a guerra foram a resposta do capitalismo à sua grande crise dos anos 30. É preciso ter consciência do real perigo de que, nesta nova grande crise do capitalismo, volte a ser este o caminho no qual apostem largos setores do grande capital. A luta pela paz, e para derrotar os planos belicistas dos senhores da guerra, é simultaneamente luta contra o imperialismo. MILITANTE
Notas
(1) O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, t. 2, Edições «Avante!», Lisboa, 1984, p. 396.
* Encontro realizado em Portugal, em 2003, que reuniu Bush, Blair e Aznar tendo como anfitrião o então primeiro-ministro português Durão Barroso, e que foi fundamental para “legitimar” a invasão do Iraque que, segunda acusava os EUA, tinha “armas de destruição em massa” o que, depois ficou comprovado, era uma farsa. 

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