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26 de junho de 2018

Em busca do ADN perdido


Há quem tenda e não hesite, facultados os meios e propiciada a ocasião, em tentar fazer dos outros tolos. Sobretudo se beneficiar de ausência de contraditório e se puder apresentar aquela auréola de “independência” capaz de dissuadir a mínima contestação tão ao gosto do comentário político dominante. 

Não se resiste por isso a anotar o esfuziante comentário de Marques Mendes às proposta de Rui Rio e de um denominado “conselho estratégico” do PSD sobre a “natalidade”. Sentenciou Mendes: «hoje em coerência só posso elogiá-lo. Rio fez finalmente  o que há muito sugiro e recomendo, apresentar propostas viradas para o fomento da natalidade». Já se reconhecia em Mendes capacidade de profetização na intriga política e de prescrussão nas águas profundas em que os grandes negócios estão submergidos. Adiciona-se agora o perfil de conselheiro partidário, tipo treinador de bancada.

Assinalado que está o que se não quis deixar em branco, passemos aos factos, mais propriamente à natureza e credibilidade do que por eventual exagero foi despropositadamente valorizado. Desde logo a constatação de ser difícil levar a sério as conclusões sobre a matéria, por mais prolixa que se apresente o esparramar da prosa ou melhor encadernada se apresentem, vindas dos que ao longo de anos hipotecaram o direito a uma “política para a infância”. Aquilo que o PSD apresenta como «um desígnio para Portugal» encontra cabal desmentido no rasto governativo que o acompanha:  desde os tempos de Durão Barroso em 2003 quando eliminaram a universalidade do abono de família ou, quando em 2011, Passos Coelho retirou a 650 mil crianças o direito ao abono por via da eliminação do 4º e 5º escalões, a par da redução dos seus montantes e do seu congelamento.

Apresentar-se como defensor de uma «política para a infância» quem tem um rasto de políticas traduzidas no corte e congelamento de salários dos pais, de cortes nas pensões de reforma dos avós, na redução do acesso ao subsídio de desemprego ou no convite à emigração de uma geração de jovens, só pode constituir exercício gratuito de hipocrisia.


Bem pode o conselho estratégico do PSD esmerar-se na escrita para proclamar «a criação de um relacionamento com as empresas que de forma responsável cooperem na criação de emprego com garantias» que não há floreados semânticos que aplainem o rasto deixado pela sua política. Quem roubou feriados, cortou dias de férias e promoveu o aumento do horário de trabalho só por humor pode vir falar de conciliação entre a vida familiar e a vida profissional.


Antecipe-se, entretanto, a resposta àquele testado e conhecido truque de vir Rio dizer agora, mesmo que para isso tenha de inverter o sentido do adágio popular, que “a galinha dele é melhor que a da vizinha”. Ainda a procissão vai no adro e já Rio, acabado de ser chamado a pegar no andor, volta a pisar caminhos de seus antecessores agora por via de manifesto regozijo com o acordo que une o governo do PS, o grande patronato e a UGT para consolidar a regressão social concretizada nos últimos anos, continuar a reduzir direitos aos trabalhadores e, mesmo que afirmem o contrário, a fomentar a precariedade. Reconheça-se não se ver grande coerência no proclamado «equilíbrio entre a  vida familiar e a actividade profissional» e a bênção apressada a um novo passo na desregulação de horários e no aumento do tempo da jornada de trabalho.

Não se omita, entretanto, a “pérola” que a esforçada elucubração saída da concha social-democrata nos havia reservado: a “atribuição” de dez mil euros a cada criança independentemente da situação profissional ou financeira da família. Proposta que alcançaria o objectivo, há muito ambicionado pela direita, de eliminar em definitivo o abono de família  (poupando-se às agruras e críticas inerentes quando novos cortes no acesso a esse direito pudesse vir a decidir). Para lá de, nos agregados familiares   de menores recursos, a resultante global se poder traduzir numa redução do montante da prestação devida pelo abono de família. É inegável a necessidade de promover medidas de incentivo à natalidade. Só que elas são inseparáveis da recuperação de direitos, do acesso a emprego e à estabilidade, de horários dignos que assegurem tempo para viver, desde logo no acompanhamento aos filhos, no reforço dos equipamentos à infância, no alargamento dos direitos de maternidade e paternidade, na consolidação do papel do sistema público de Segurança Social. Sem medidas sérias nestes planos o que se anunciar é publicidade enganosa.

Não se conclua o texto sem registo para o categórico  remate de Marques Mendes, ainda sob os efeitos do deslumbramento que a profundidade propositiva do PSD lhe suscitou:  «É este o ADN do PSD», exclamou! O que, olhando para o passado político do PSD, se tem de concluir que aquele partido ou tem padecido de avaria cromossomática ou de  problemas no genoma partidário. Nada que o sistema imunitário da opinião dominante não sare ou que o metabolismo demagógico não resolva, como por certo acalentarão os Mendes desta terra.

Texto de Jorge Cordeiro publicado no DN da passada sexta-feira.

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