Há
quem tenda e não hesite, facultados os meios e propiciada a ocasião, em tentar
fazer dos outros tolos. Sobretudo se beneficiar de ausência de contraditório e
se puder apresentar aquela auréola de “independência” capaz de dissuadir a
mínima contestação tão ao gosto do comentário político dominante.
Não
se resiste por isso a anotar o esfuziante comentário de Marques Mendes às
proposta de Rui Rio e de um denominado “conselho estratégico” do PSD sobre a
“natalidade”. Sentenciou Mendes: «hoje em coerência só posso elogiá-lo. Rio
fez finalmente o que há muito sugiro e
recomendo, apresentar propostas viradas para o fomento da natalidade». Já
se reconhecia em Mendes capacidade de profetização na intriga política e de
prescrussão nas águas profundas em que os grandes negócios estão submergidos.
Adiciona-se agora o perfil de conselheiro partidário, tipo treinador de
bancada.
Assinalado
que está o que se não quis deixar em branco, passemos aos factos, mais
propriamente à natureza e credibilidade do que por eventual exagero foi
despropositadamente valorizado. Desde logo a constatação de ser difícil levar a
sério as conclusões sobre a matéria, por mais prolixa que se apresente o
esparramar da prosa ou melhor encadernada se apresentem, vindas dos que ao
longo de anos hipotecaram o direito a uma “política para a infância”. Aquilo
que o PSD apresenta como «um desígnio para Portugal» encontra cabal desmentido
no rasto governativo que o acompanha:
desde os tempos de Durão Barroso em 2003 quando eliminaram a
universalidade do abono de família ou, quando em 2011, Passos Coelho retirou a
650 mil crianças o direito ao abono por via da eliminação do 4º e 5º escalões,
a par da redução dos seus montantes e do seu congelamento.
Apresentar-se
como defensor de uma «política para a infância» quem tem um rasto de políticas
traduzidas no corte e congelamento de salários dos pais, de cortes nas pensões
de reforma dos avós, na redução do acesso ao subsídio de desemprego ou no
convite à emigração de uma geração de jovens, só pode constituir exercício
gratuito de hipocrisia.
Bem
pode o conselho estratégico do PSD esmerar-se na escrita para proclamar «a
criação de um relacionamento com as empresas que de forma responsável cooperem
na criação de emprego com garantias» que não há floreados semânticos que
aplainem o rasto deixado pela sua política. Quem roubou feriados, cortou dias
de férias e promoveu o aumento do horário de trabalho só por humor pode vir
falar de conciliação entre a vida familiar e a vida profissional.
Antecipe-se,
entretanto, a resposta àquele testado e conhecido truque de vir Rio dizer
agora, mesmo que para isso tenha de inverter o sentido do adágio popular, que
“a galinha dele é melhor que a da vizinha”. Ainda a procissão vai no adro e já
Rio, acabado de ser chamado a pegar no andor, volta a pisar caminhos de seus
antecessores agora por via de manifesto regozijo com o acordo que une o governo
do PS, o grande patronato e a UGT para consolidar a regressão social
concretizada nos últimos anos, continuar a reduzir direitos aos trabalhadores
e, mesmo que afirmem o contrário, a fomentar a precariedade. Reconheça-se não
se ver grande coerência no proclamado «equilíbrio entre a vida familiar e a actividade profissional»
e a bênção apressada a um novo passo na desregulação de horários e no aumento
do tempo da jornada de trabalho.
Não
se omita, entretanto, a “pérola” que a esforçada elucubração saída da concha
social-democrata nos havia reservado: a “atribuição” de dez mil euros a cada
criança independentemente da situação profissional ou financeira da família.
Proposta que alcançaria o objectivo, há muito ambicionado pela direita, de
eliminar em definitivo o abono de família
(poupando-se às agruras e críticas inerentes quando novos cortes no
acesso a esse direito pudesse vir a decidir). Para lá de, nos agregados
familiares de menores recursos, a
resultante global se poder traduzir numa redução do montante da prestação
devida pelo abono de família. É inegável a necessidade de promover medidas de incentivo
à natalidade. Só que elas são inseparáveis da recuperação de direitos, do
acesso a emprego e à estabilidade, de horários dignos que assegurem tempo para
viver, desde logo no acompanhamento aos filhos, no reforço dos equipamentos à
infância, no alargamento dos direitos de maternidade e paternidade, na
consolidação do papel do sistema público de Segurança Social. Sem medidas
sérias nestes planos o que se anunciar é publicidade enganosa.
Não
se conclua o texto sem registo para o categórico remate de Marques Mendes, ainda sob os
efeitos do deslumbramento que a profundidade propositiva do PSD lhe
suscitou: «É este o ADN do PSD»,
exclamou! O que, olhando para o passado político do PSD, se tem de concluir que
aquele partido ou tem padecido de avaria cromossomática ou de problemas no genoma partidário. Nada que o
sistema imunitário da opinião dominante não sare ou que o metabolismo
demagógico não resolva, como por certo acalentarão os Mendes desta terra.
Texto de Jorge Cordeiro publicado no DN da passada sexta-feira.
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