Jorge Cordeiro
Do relicário do capitalismo ocupa lugar de relevo a “regulação”. Com as devidas distâncias de épocas, o papel central atribuído às entidades reguladoras na vulgata planetária da reconfiguração neoliberal do Estado (concebido à margem da economia e da sociedade) está, em termos de estratégia de apropriação do alheio, como a que Teodorico – essa figura retratada por Eça de Queirós – usara para se apoderar da fortuna da sua velha, beata e muito rica tia. Com a diferença que, no caso presente, ninguém vai ao engano. Basta designar dentro de portas uns quantos “peritos”, atribuir-lhes os poderes bastantes para zelar pelos interesses dos grupos monopolistas, apor-lhes a chancela de “independente”, elaborar uns pareceres que legitimem a cartelização ou o saque de recursos e património públicos, e está feito. Desculpe-se a omissão que só por mera distracção iria ocorrer, esperar que se “façam de mortas” como mostra toda a história recente do atribulado processo do sistema bancário português com a sua gestão danosa e fraudulenta, e que só a custo de muita denúncia e públicos escândalos dão sinais de vida. Como se vê tudo mais linear, menos rebuscado e fatigante. Em comparação com as andanças de Teodorico, poupa-se a viagem à Terra Santa que o ambicioso sobrinho encetara, evitam-se sobressaltos, previne-se o risco da desastrosa e quase irreparável troca da coroa de espinhos por uma comprometedora peça de roupa interior, evita-se a falsa invocação de Santa Maria Madalena. Basta repetir cem vezes, até se ser levado a acreditar, a “independência” das mesmas.
Outros exemplos não houvesse e as últimas notícias sobre o Novo Banco seriam suficientes para recordar e atestar do papel do “regulador”. Ficou o País a conhecer que o Novo Banco passou a gestão dos imóveis (nove mil segundo consta) e a colecção de obras de arte para a Hudson Advices, empresa detida pela Lone Star. A saga que conduziu à resolução do BES/GES, o processo de aquisição em saldo do Banco pela Lone Star, depois de ver garantida a protecção do Governo para a concretização do negócio, diz quase tudo sobre o papel do Banco de Portugal e a putativa regulação que lhe caberia. Compreender-se-á assim que Donald Quintin, administrador da Lone Star se tenha declarado «entusiasmado com o futuro do Novo Banco». Só não vê quem não quer o que salta à vista. O percurso de intervenção destas Entidades põem a nu a fraude que constituem e quanta mistificação encerra essa construção do Estado “regulador”, e não produtor, concebido para assegurar a captura do interesse público pelo privado. Avalie-se o “falhanço” geral destas entidades e extraiam-se conclusões.
Não se julgue mal a inserção entre aspas na linha que antecede o que agora se lerá. Só por ingenuidade se descortinará na actuação destas Entidades qualquer sinal de “falha”. Assumi-lo seria admitir que elas existiriam para outro objectivo que não o de zelar pelos interesses monopolistas. Haverá quem não regule bem, tenha problemas cognitivos ou dificuldades de percepção. Deste mal não padecem as citadas entidades. Pelo contrário. Regulam, da cabeça aos pés, com a perfeição de um relógio suíço para o que estão destinadas: garantir o poder dominante e cobrir os abusos dos monopólios em presença. Olhe-se para uma ANACOM comprometida com os interesses das empresas que supostamente regularia, veja-se a ERC capturada no jogo de interesses de PS e PSD que ali têm repartido lugares, registe-se a figura de corpo presente que a ERSE exibe perante as “rendas excessivas”, de facto super-lucros, e conclua-se o que de tão óbvio se evidencia como “dois mais dois serem quatro”.
As entidades reguladoras são simultaneamente pretexto e instrumento da estratégia de concentração monopolista: paliativo para disfarçar os danos irreparáveis das privatizações para os interesses e a soberania nacionais e instrumento para assegurar que a entrega ao capital privado cumpre o objectivo de esbulho para a qual foram concebidas. Por detrás destas Entidades escondem-se os governos e os partidos da política de restauração do capitalismo monopolista. Atribuem a terceiros o que competia ao Estado fazer para se desresponsabilizar por aquilo que deviam assumir. Sempre com aquela vantagem argumentativa de, quando questionados sobre favorecimento da actividade monopolista, poderem acalmar inquietudes com a afirmação de que a regulação há-de tratar do problema, espere-se portanto pelos respectivos pareceres. Aguarde-se pois, sentado! Para glória dos lucros e dividendos dos grupos económicos e a impunidade dos seus desmandos. O Natal ainda vem longe para que se seja levado a acreditar que nas entidades reguladoras se decide com critérios técnicos, em função do interesse geral, que são neutras, portanto, do ponto de vista do interesse dos regulados e independentes na sua composição. Tudo para iludir a questão essencial do comando e controlo público de empresas e sectores estratégicos, e para justificar a abdicação pelo Estado dos seus poderes de intervenção e orientação na actividade económica.
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