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4 de julho de 2011

O PEQUENO DICIONÁRIO CRÍTICO – 24.1A REPARTIÇÃO DO RENDIMENTO – I
Uma das questões que sempre se colocou às sociedades desde a formação dos Estados foi a repartição do rendimento obtido. Os conflitos sociais na antiguidade (evidentes no Egipto, Grécia, Roma), os conflitos medievais ou modernos entre o poder real e o poder feudal, as lutas dos camponeses, tinham por origem desequilíbrios e desigualdades na repartição do rendimento. Consta que João II de Portugal, afirmou que seu pai só lhe tinha deixado as estradas para passear – as funções do Estado e o progresso do país estavam dependentes de abater do poder feudal. Situações análogas ocorreram na Inglaterra e em França. As crises e decadência dos Estados e dos Impérios foram agravadas pelas contradições dos sistemas económicos e sociais, que resultavam no acréscimo de desigualdades sociais. Não deixa de ser curioso que srs. professores e srs. comentadores (*) falarem, falarem, dando “bons conselhos” ao “povo” e mostrarem-se preocupados com o “despesismo” sem tocarem numa questão central da existência dos Estados, desde sempre: a da repartição do rendimento. Sim, nós sabemos, remetem isso para o “mercado”, como se o “mercado” não fosse a expressão económica e social dos poderes dominantes em cada época e em cada sociedade.
A má distribuição do rendimento é geradora de crise. Verificou-se na crise iniciada em 1929, tal como na actual. A persistência nas mesmas políticas só a agrava.
O desenvolvimento tecnológico permitiu um rápido aumento da produtividade, em princípio estavam criadas as condições para o aumento do nível de vida e de segurança dos trabalhadores, contudo foi completamente aproveitado em benefício do capital, particularmente o rentista. A repartição entre o capital e o trabalho desceu para níveis históricos. O mito social-democrata de criar riqueza para melhor a distribuir sem atender às relações de produção, simplesmente ruiu. A questão é sempre: quem controla? O que se verificou foram níveis de desigualdade só comparáveis com o de há muitas décadas atrás.
Em Portugal, a percentagem dos salários no Rendimento Nacional caiu para 40,6% em 2006, valor idêntico ao dos anos do salazarismo e mesmo inferior ao verificado em 1973. Portugal está entre os países com maiores níveis de desigualdades. De acordo com o índice GINI proporcionado pela ONU (UNDP), em 2009 era o mais desigual em toda a UE, estando em 5º lugar entre os países considerados desenvolvidos apenas ultrapassado em termos de desigualdade pela região de Hong Kong, Singapura, EUA e Israel. Os 10% mais pobres repartiam 2% do RN, os 10 % mais ricos cerca de 30%.
O exemplo dos EUA e de outros países ajuda-nos a compreender o sentido das políticas que são aplicadas em Portugal para sair da crise e que fracassaram e fracassam em toda a parte. Nos EUA entre 1979 e 2004 os trabalhadores americanos aumentaram a sua produtividade em 64% enquanto o seu salário horário médio apenas aumentou 12%. (Economic Policy Institute – 2007). Os super-ricos tornaram-se mais ricos e os trabalhadores tornaram-se mais pobres. De 1979 a 2007 (nos EUA), a média dos rendimentos após impostos dos 1% mais ricos passou de 7,5% do rendimento nacional para 17%. Em consequência as desigualdades atingiram níveis semelhantes aos anteriores à grande crise de finais dos anos 20.
John K. Galbraith (que fez parte do governo de Kenedy) definiu da seguinte forma as políticas neoliberais: “os ricos nunca são demasiado ricos para investir nem os pobres demasiado pobres para trabalharem mais”. Quaisquer que sejam os votos piedosos é esta a filosofia subjacente às políticas do FMI e da UE. Na UE a aumentam pobreza, a precariedade, o desemprego, mas o sr. Trichet diz que “nem se pense em taxar transacções financeiras (…) há desvantagens económicas, financeiras e técnicas” (euroobserver.com 01.jan.2010). Ou seja, a Europa e os EUA são dirigidos por indivíduos para os quais o conceito de social não entra nos seus raciocínios: apenas a sua economia, a sua finança, a sua técnica.
Vejamos onde nos levou a política destas “vantagens”. Nos EUA. Em 1991 um gestor de topo (CEO) recebia 140 vezes mais que um trabalhador médio; em 2003 esta relação tinha aumentado para 500 vezes. (www.inequality.org). Actualmente, nos EUA, 15,7% da população vive abaixo do nível de pobreza; há 25 milhões de desempregados e subocupados; 20% das crianças e jovens, menores de 18 anos, vivem na pobreza.
Em França, “98 individuos controlam as sociedades do CAC40”. (Jean Marie Langoureau – www.legrandsoir – 06.agosto.2010) “Nos países membros do G7 a parte dos salários no PIB baixou de 5,8% entre 1983 e 2006. Segundo a Comissão Europeia na Europa a parte dos salários caiu 8,6%. Em França 9,3%. Ao mesmo tempo a parte dos dividendos no Valor Acrescentado passava de 3,2% para 8,5%. (…) portanto (em França) cerca de 120 a 170 mil milhões de euros que foram transferidos do trabalho para o capital. (www.legrandsoir - 23.maio.2010)
Na Alemanha os impostos aos mais ricos baixaram 10%, enquanto a imposição fiscal à classe média subiu 13%. Em vinte anos a classe média reduziu-se, passando 65% para 59% da população. Os salários reais reduziram-se 0,9%, enquanto os salários mais elevados e os proveitos por lucros e por património aumentaram 36%. Em 1987 os dirigentes das principais empresas ganhavam em média 14 vezes mais que os seus empregados, hoje ganham 44 vezes mais. O desemprego e emprego a tempo parcial afecta 9,5 milhões de pessoas; além de 22% da população tem emprego precário.
Insuspeito de rejeitar o mercado o prof. Joseph Stiglitz (Prémio Nobel 2001) poderia esclarecer muita gente por cá – caso a economia não se tivesse transformado numa dogmática ao serviço do totalitarismo financeiro - na sua opinião, “o plano actual dos EUA para reduzir o défice é um pacto quase suicida”. Recomendando: “investimentos públicos em infraestruturas, educação e tecnologia”(…) “Reformar o sistema fiscal seria uma maneira equitativa de incrementar os recursos e reduzir o défice”. (www.rebelion .org – 31.março.2011).
 “Nos EUA cerca de 7 500 famílias tinham rendimentos superiores a 20 milhões de dólares ano. Usam o seu poder e riqueza para distorcer as políticas públicas e prioridades económicas (www.inequality.org). Todas as formas de corrigir a redistribuição do rendimento encontram feroz oposição de políticos e comentadores, etc., do “arco” neoliberal. O argumento recorrente é de que é extremamente perigoso intervir no funcionamento do mercado. Mas estes assuntos não podem ser deixados às forças dos “mercados” – isto é de quem os controla. São do campo da política, ou melhor, da “economia política” não da “economia” que na actual versão apenas reflete o interesse do grande capital. Esquecem os milhões de milhões que foram dispendidos para salvar os “banksters” (Paul C. Roberts) – só nos EUA 700 mil milhões de dólares.
Paul Craig Roberts não será alguém da “esquerda radical” – como o classificaria a social-democracia cá da terra - (1), tem simplesmente a lucidez de refletir fora do totalitarismo neoliberal. Num texto sobre a situação nos EUA, “A Wall Street contra os pobres e a classe média”, escreve: “Para as oligarquias dominantes a questão é como salvar o seu poder. A sua resposta é fazer o povo pagar”. De todos os países do mundo, nenhum necessita uma revolução tão urgentemente quanto os Estados Unidos, um país dominado por um punhado de oligarcas egoístas que têm mais rendimento e riqueza do que pode ser gasto durante toda uma vida”. Sim, lá como cá. (2)

* - A quem dedicamos este tema, como se verá no seu final.
1 - Ex-editor do Wall Street Journal e ex-secretário assistente do Tesouro dos EUA com R. Reagan , http://www.counterpunch.org/roberts02182011.html Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
2 - Creio que ao falar em revolução Paul Roberts não estará a pensar em armas pelas ruas, mas em transformações qualitativas do contexto político e social, e não dos habituais paliativos que nada resolvem nem alteram quanto às causas fundamentais.

A seguir: A repartição do rendimento – I I

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