(Este texto contrapõe-se ao livro de Solienitsine – admirador de Pinochet, crítico do 25 de abril, etc., (Um dia na vida de Ivan Desinovitch) que continua a ser reeditado (!) como símbolo antissoviético. É pena que não se escreva um livro sobre um dia em Guantanamo ou numa prisão clandestina da CIA. Eis como as coisas se passavam na URSS, claro, humanamente longe do ideal.
Naquele dia de 1937 dirigiu-me como habitualmente para o Comissariado do Povo para os Sovkhozes da URSS, onde ocupava um cargo de Direção. No gabinete encontrei uma notificação para me apresentar no NKVD [antecessor do KGB]. Não me provocou especial surpresa ou preocupação, porque era frequente os colaboradores do Comissariado serem chamados a prestar declarações em processos de investigação sobre sabotagem na nossa instituição. Assim fiz.
O investigador, de aspeto inteligente e simpático, cumprimentou-me educadamente e propôs que me sentasse.
- Que tem a dizer sobre os colaboradores Petrov e Grigoriev? - perguntou.
- São ótimos especialistas, comunistas honestos e dedicados à causa do Partido e ao camarada Estaline – respondi sem hesitar.
- Tem a certeza disso? - perguntou o investigador, cuja voz pareceu transparecer uma certa deceção.
- Absoluta, respondo tanto por eles como por mim próprio.
- Então veja estes documentos.
O investigador entregou-me várias folhas de papel. Ao lê-las, fiquei gelado. Tratava-se de uma declaração sobre “A atividade sabotadora de I.A. Benediktov no Comissariado” realizada durante vários anos “ao serviço da espionagem alemã”.
Todos os factos enumerados no documento tinham ocorrido: as aquisições na Alemanha de máquinas agrícolas impróprias para as nossas condições, ordens e diretivas erradas, menosprezo por queixas locais justas e mesmo algumas tiradas feitas na brincadeira, num círculo restrito. Claro que tudo aquilo era resultado da minha ignorância e falta de experiência, nunca tinha havido, nem podia haver da minha parte qualquer má intenção. No entanto, os factos estavam agrupados e interpretados com uma tal habilidade e lógica que, colocando-me no lugar do investigador, de imediato teria acreditado nos “propósitos sabotadores de I. A. Benediktov”.
O golpe mais terrível esperava-me ainda: abalado pela espantosa força da mentira, não reparei logo nas assinaturas de quem tinha forjado o documento. O primeiro apelido não me surpreendeu (tratava-se de um tratante, mais tarde condenado com pena de prisão por calúnia, que fizera denúncias sobre várias pessoas do Comissariado e que, por isso, já ninguém levava a sério). Mas quando vi os apelidos que constavam na segunda e terceira linhas então fiquei siderado: eram as assinaturas de Petrov e Grigoriev, pessoas que eu considerava como dos meus melhores amigos, nos quais confiava inteiramente!
- O que é que tem a dizer sobre esta declaração? - perguntou o investigador quando viu que eu tinha, mais ou menos, voltado a mim.
- Todos os factos aqui expostos tiveram lugar, nem precisa de os verificar. Mas estes erros cometi-os por ignorância e falta de experiência. Arrisquei em nome dos interesses do trabalho, assumi a responsabilidade em momentos em que outros teriam preferido cruzar os braços. As afirmações sobre sabotagem e as ligações com a espionagem alemã são uma mentira absurda.
- Continua a considerar Petrov e Grigoriev como comunistas honestos?
- Sim, continuo, e não consigo compreender o que os fez subscrever esta falsificação...
- Compreendo que não queira afundar os seus amigos - disse o investigador depois de refletir alguns momentos - Mas, infelizmente, o comportamento deles está longe de ser o que diz. É claro que recolhi algumas informações sobre si e não são más: é uma pessoa empenhada, bastante capaz. Mas já em relação aos seus amigos, “comunistas honestos”, são más. Ivan Alekssandrovitch, quero que compreenda a nossa posição: admite que os factos tiveram lugar e diz que não tem qualquer dúvida sobre a honestidade daqueles que o acusam de sabotagem. Concordará que enquanto tchekistas temos que agir em conformidade. Pense novamente se tudo o que nos disse é verdade. Eu compreendo, agora está numa situação complicada, mas não vale a pena desesperar porque ainda não chegámos a nenhuma conclusão.” - disse-me o investigador na despedida, apertando-me a mão.
Ao chegar a casa, eu e minha mulher, telefonámos aos nossos amigos. A minha mulher, cerrando os lábios para não chorar, escreveu cartas e postais aos familiares e pessoas próximas, pois as relações com famílias de “inimigos do povo” poderiam ser-lhes fortemente prejudiciais e tínhamos obrigação de os avisar.
Durante a tarde, no gabinete, quando tentava vencer pressentimentos sombrios, tocou o telefone convidando-me a comparecer no edifício do Comité Central no dia seguinte: “Está decidido, pensei, expulsam-me do Partido, depois, julgamento como sabotador e espião. Estou morto.” (continua)
Segundo entrevista em 1989 de Ivan A. Benediktov, Comissário do Povo, depois Ministro da Agricultura entre 1937 e 1953. Depois embaixador em diversos países. http://www.hist-socialismo.com/docs/Benedictov.pdf
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