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18 de janeiro de 2023

A lógica estratégica de Marx e Lenin estaria bastante distante da percepção fundamental do atual govern

JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE* 

 “poeta vagando\ noite dentro da escuridão\ alma de luz no peito\ sonhos de imensidão” (Renato Gusmão) Brasil

 

 Os últimos acontecimentos nacionais nos levaram, curiosamente, a reler textos de um autor agora pouco conhecido: Vladimir I. Lenin. Neste breve artigo busco, desde o tempero teórico daquele autor, tratar minha própria versão da atual situação, buscando, também, a exemplo de muitos nesta quadra da luta de classes brasileira, propor uma tática de enfrentamento social.

Claro está, pela pouca significância deste que vos escreve, que o que se propõe é um mero resmungo de alguém que vive o cotidiano e tropeça na história. Faz alguns dias e o antes general e vice-presidente da República, agora senador Hamilton Mourão, tuitou, em tortuosa frase, que o governo Lula teria uma tradição “marxista-leninista”. O referido senhor parece que conhece algo de Marx ou Lênin somente de orelhada em algum manual malfeito das academias estadunidenses, e olhe lá. Diferentemente do incauto militar, algo agora bastante conhecido pelo despreparo desses senhores de espada e quepe, a lógica estratégica de Marx e Lênin estaria bastante distante da percepção fundamental do atual governo, por mais que a quase totalidade da esquerda brasileira o esteja corretamente apoiando. Lênin, em julho de 1905, escreve uma pequena obra intitulada Duas táticas da social-democracia na revolução democrática, um texto que o revolucionário russo escreve ainda em preparo aos acontecimentos que ocorreram e darão ensejo a revolução burguesa na terra dos czares, ainda por conta da “convocação de uma Assembleia constituinte”. O autor resume de forma esplêndida algo que será vital para nossa aprendizagem, a diferença entre períodos de intensa disputa social e os “períodos pacíficos”, para ensinamento político das amplas massas sociais: “a revolução ensina, indubitavelmente, com uma rapidez e uma profundidade que parecem incríveis nos períodos pacíficos de desenvolvimento político”, como amplas parcelas da população devem encarar as instituições burguesas e os limites da democracia sob o capitalismo, assim como a necessidade de defender táticas necessárias a proteção de direitos sociais. Claro está que a leitura de um autor clássico somente nos serve para contemporizar seus ensinamentos, e não para retificá-los e impor às conjunturas e realidades tão diversas quaisquer aproximações. Assim, a leitura dos clássicos nos possibilita a profundidade para tratar a contemporaneidade, porém sem nenhum dogmatismo. A situação brasileira não tem nenhuma conformidade de transformação revolucionária socialista, muito pelo contrário, vivemos uma certa adequação prática aos movimentos contra insurgentes estabelecidos pelas forças reacionárias no país, tanto pela convergência entre segmentos da burguesia vinculada ao agronegócio e ao grande comércio, quanto pelo domínio ideológico neofascista de um conjunto de instituições, especialmente os agrupamentos militares e do judiciário. No referido texto de Lênin, temos uma central definição sobre o significado e sentido da tática enquanto “conduta política ou o caráter, a orientação e os métodos de atuação política”. O autor refere-se a conduta do partido político que orienta a disputa social em certo momento da conjuntura. Uma adaptação propriamente a se fazer refere-se à orientação tática de um amplo agrupamento social ou bloco histórico de intervenção que, no momento brasileiro, refere-se a uma parcela importante da frente que constitui o governo Lula, refiro-me ao grupamento de partidos de esquerda, especificamente PT, PSOL, PCdoB e parcelas do PSB, PDT, REDE, assim como independentes. Assim, temos que pensar a intervenção deste bloco orientando sua linha e métodos de embate social. A disputa social pela democracia, liberdade de organização social e intervenção dos setores populares pela garantia de cidadania expressava naquele momento na realidade russa o fundamental das lutas travadas pela esquerda. Neste momento na realidade brasileira não é muito diferente, o esgarçamento institucional dos últimos seis anos e a presença de uma direita fascista organizada e de enfrentamento com a vantagem de que muitos círculos das instituições de repressão e jurídicas do Estado foram ganhas pela permissiva ideológica da extrema direita, nos leva ao esforço do bloco histórico de esquerda a intensificar a disputa pela democracia e liberdade de organização. Lênin ponderava que as duas táticas da social-democracia russa naquele momento seriam: “(1) luta implacável contra as tentativas contrarrevolucionárias, e (2) defesa dos interesses próprios da classe operária”. Amiúde tantas diferenças históricas, sociais e culturais, nossa realidade presente também integra a necessidade de uma dupla tática, de um lado a disputa e a necessidade de vencer as forças “bolsonaristas” em diversos campos, cultural e ideológico, buscando a destruição do campo neofascista que se estabeleceu nos últimos anos; por outro, a luta contra o neoliberalismo e as forças de mercado assentadas na destruição de direitos sociais e na percepção de um Estado financeirizado e sua superação histórica, constitui o segundo ponto central da tática do bloco de esquerda que atua hoje no entorno e na proximidade do governo Lula. Nos últimos dois anos a esquerda brasileira saiu da defensiva e tivemos quatro batalhas centrais ganhas: (i) vencemos uma eleição sem regras e que o poder econômico se impôs cotidianamente, por esses aspectos, uma vitória maiúscula; (ii) vencemos a batalha institucional de regrar, parcialmente, os grupamentos golpistas e chegamos até a diplomação do atual presidente da República; (iii) vencemos as batalhas nas redes sociais em torno das condições sociais, mesmo antes da posse a aprovação da Emenda Constitucional da transição e a garantia do início do governo Lula; (iv) por fim, tivemos a vitória da posse presidencial e de um conjunto de gente comprometida com a reconstrução nacional. Essas quatro vitórias, fundamentais, não nos devem subestimar as contradições e forças de contra insurgência em expansão, de um lado as forças sociais de direita arregimentavam mais e mais pessoas para o quadro da disputa ofensiva e até radical, por outro, os setores militares aprofundaram suas disputas internas, no limite de que agora até as ordens de Washington foram colocadas em suspenso, considerando, inclusive, que os militares são subordinados ao poder imperial estadunidense. Diga-se que as relações de poder, com interação fascista, também estão em disputa nos EUA, não estamos, portanto, em tempos tranquilos ou de instituições burguesas garantidas. O quadro é grave, mas extremamente favorável para que se construa uma intervenção tática favorável a um novo acúmulo de forças democráticas e populares, considerando que em qualquer disputa temos que integrar a dialética do sabor das vitórias, com o sentimento de que a disputa será mais dura nos próximos meses ou anos. Considero, assim, que com base nas duas táticas estabelecidas, deveríamos atuar em sete frentes, os sete são cabalísticos: (i) usar das forças das leis burguesas contra parcela da própria burguesia, os mandantes e organizadores dos atuais atos de terror. Estabelecendo ações penais e tributária. As penais avançando no processo e prisão dos principais agentes políticos neofascistas, e as tributárias no sentido de estabelecer o controle fiscal sobre os financiadores burgueses, tanto através das receitas estaduais, efetivando auditorias sobre as empresas comprometidas com o projeto de golpe neofascista, quanto por meio da Receita Federal; (ii) responsabilização de generais e oficiais de alta patente envolvidos nos acontecimentos recentes. Alteração do atual ministro da defesa e indicação de alguém mais enquadrado aos interesses de desmonte do poder autocrata dos militares e aposentar parcela dos generais, almirantes e brigadeiros, fundamentalmente para estabelecer a ordem de mando sobre os militares; (iii) acordar com os governadores a reorganização das PMs, buscando trabalhar a desmilitarização das mesmas; (iv) a sociedade organizada deveria estabelecer “Conselhos Locais de Democracia”, conformados em torno das Frentes Brasil Popular e Frente Povo sem Medo. Os Conselhos devem firmar políticas de conversação e enfretamento em cada bairro, escola e local de trabalho; (v) organização de redes sociais em torno de algumas legendas principais, duas delas: “soberania popular e democracia”; “melhores condições de vida e liberdade”. As redes devem ser descentralizadas, mas integradas a partir de fundo social e também institucional; (vi) Construção de “Centros Populares”, seja para trabalhar a aproximação da população em grupos de consciência, educação e debate popular; construindo consciência crítica, fundamental para ruptura revolucionária socialista; (vii) por fim, somente ações de massa, com manifestações inicialmente quinzenais, são centrais para o processo social em interação. A disputa social é o limite. Não disputar e ceder, nos levará a tempos muito difíceis. A disputa é agora e permanente. *José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia (Paka-tatu). Referências Vladimir Ilyich Ulianov Lênin. Duas táticas da social-democracia na revolução democrática. Obras escolhidas (I). Lisboa: Edições Progresso, 1984. Vladimir Ilyich Ulianov Lênin. A social-democracia e o governo provisório revolucionário. Obras escolhidas (I). Lisboa: Edições Progresso, 1984. Renato Gusmão. Itinerários. Belém: Mezaninos, 2022

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