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24 de junho de 2024



China, não corras tanto para te

podermos alcançar! Agostinho Lopes

O absurdo do discurso da Secretária de Estado do Tesouro dos

EUA Janet Yellen, para justificar a recente decisão de brutais

medidas proteccionistas contra a China, é de grau superlativo:

“Excesso de utilização de capacidade produtiva”! Como quem diz:

olha lá, não produzas tanto que me sufocas! Absolutamente

notável! Como absolutamente ridícula é toda a outra argumentação

em torno de subsídios “injustos” da mesma senhora, e agora

também da UE. Segundo Renaud Bertrand não só as “taxas de

utilização da sua capacidade têm sido praticamente constantes na

China nos últimos dez anos, estando agora em cerca de 76%, ou

seja no mesmo patamar em que estão as taxas de utilização nos

EUA, cerca de 78%”, como “A competitividade das empresas

chinesas é esmagadora hoje em dezenas de indústrias – como na

energia solar ou nos veículos eléctricos – e simplesmente não há

como as empresas americanas ou europeias competirem com as

chinesas. Esta é a verdadeira questão: Yellen e os líderes

ocidentais têm medo de que, se as coisas continuarem, a China

lhes coma o almoço.” (1) (2)

Mas algo interessante, que vale a pena constatar e registar, é que

a generalidade dos comentadores e articulistas da dita questão, na

sua maioria economistas encartados, têm abordado as decisões

dos EUA prevendo um grande desastre e uma grande desordem

mas sem tirar todas as ilações devidas. (3) Pelo menos algumas

das conclusões políticas que estão ao alcance de todos e que

podem ser esclarecedoras de outras polémicas dos dias que

correm.

A primeira é a de que Trump não é o único “proteccionista”! Não,

não é só Trump mas todos os presidentes dos EUA (e de outras

potências poderosas) sempre que precisam de defender os

interesses dos... EUA. Aqui há cerca de sete anos, no meio de um

grande foguetório no comentário mediático, o “proteccionismo” de

Trump (porque pôs em causa tratados comerciais em negociação,

como foi o o caso do TTIP – Parceria Transatlântica de Comércio e

Investimento e avançou com medidas sobre o comércio com a

China), era a nova ameaça global, depois do terrorismo... Teresa

de Sousa, atlantista de gema e fiel da igreja do livre comércio,

questionava perplexa no Público (21JAN17): “Um governo de CEO

de multinacionais e de financeiros vindos directamente de Wall

Street vai decretar o proteccionismo ao serviço da economia mais

aberta e mais competitiva do mundo?” Ora, antes de Trump foi

proteccionista Obama (4) e todos os anteriores presidentes

americanos, sempre que precisaram. E depois do republicano

Trump aí temos o democrata Biden, na base da excepcional

reflexão da sua Secretária do Tesouro, a decidir o que sabemos!

Mas também, contrariamente ao que Luís Marques “descobriu” um

dia destes (3), esta não é a “primeira guerra comercial do século

XXI, que opõe os Estados Unidos e a China” e também, ao que

parece, a UE é outro dos contendores com a China e não apenas

os EUA!

A segunda é de que as tais “regras” da “ordem internacional

baseada em regras” é para cumprir pelo Ocidente, mas só e

apenas quando dá jeito ao Ocidente, EUA e UE! Ao que parece

não é só a Rússia que na guerra com a Ucrânia não cumpriu as

ditas “regras”. E neste caso o problema tem a gravidade de haver

uma organização internacional sufragada pela generalidade dos

Estados do mundo, a OMC, com as suas regras e métodos de

regulação de conflitos que os EUA, pura e simplesmente fizeram

de conta que não conta… que não existe! Nascida a OMC, após

um longo processo negocial no pós-guerra (5), e confirmando-se o

que já era sabido – a falta de poder absoluto de decisão no seu

seio por parte dos EUA e UE, levou-os a decretarem a sua

irrelevância, o que vêm fazendo há anos – as recentes decisões

dos EUA e da UE na sua guerra comercial visando a China,

poderão ser a pedra final no túmulo da OMC.

E a terceira é que a “economia política” da ortodoxia liberal e da

dita “ordem liberal internacional”, que defende ou defendia a

“globalização” e o “livre comércio”, está de malas aviadas, porque

contrariamente ao que nos andaram a vender nas últimas décadas

parece que de vez em quando dá maus resultados! Que o digam

americanos e europeus, mesmo tendo sido eles a fixar as “regras”.

Mas para os cultores da dita “ordem liberal internacional” agora é

que vão ser elas. Ficando por dois exemplos. Luís Marques: “O

desmantelamento desta ordem com regras será um dos processos

mais dolorosos alguma vez executados, segundo muitos

especialistas. Aumentará os conflitos económicos entre países e

blocos e, por arrastamento, a crispação política e militar.

Enfraquecerá as instituições multilaterais, já bastante fragilizadas.

As desigualdades vão agravar-se. Os consumidores serão

prejudicados. A produtividade será afectada. A ineficiência será

beneficiada.” (….). Miguel Monjardino: “Nós, por cá, não

imaginamos as consequências do fim desta ordem. Todo (???) o

discurso político nacional assume a sua continuação. Uns fazem-

no por hábito. Outros por não quererem imaginar alternativas. (…)

Até ao dia em que seremos confrontados com as consequências

de toda esta mudança.” (3) Mas esta gente devia começar por

explicar se a dita “ordem” era tão boa e teve tão bons resultados (a

desordem que conhecemos: desigualdades, conflitos, guerras...)

por que razão os que a impuseram, EUA e UE, inclusive quando

necessário à força, agora remam em sentido contrário?! É o que dá

confundir relações económicas entre Estados, incluindo comércio

internacional, sob o signo do multilateralismo, interesse mútuo e

cooperação com relações económicas sob a imposição e comando
unilateral das principais potências imperialistas, moldadas pelos
interesses do capital multinacional!
Acredita-se que o desfazer da feira não será pêra doce. Mas tal
acontecerá porque os que até hoje têm mandado nunca se
conformarão com uma ordem internacional de paz e cooperação,
segundo os princípios da Carta das Nações Unidas, e resistirão
tanto quanto possível ao fim da exploração e eliminação de
relações coloniais e de domínio de uns países sobre os outros. Só
a luta dos povos os poderá travar.
Para esconjurar o “proteccionismo” sempre valeu quase tudo. Com
o regresso do “proteccionismo” agora é a tragédia que se abaterá
sobre o planeta, como se da aplicação da dita “ordem liberal
internacional com regras” não resultassem tragédias suficientes! A
história terá demonstrado, segundo esses liberais de trazer por
casa, que o “livre comércio”, ao contrário do “proteccionismo”
(sempre amarrado por essa gente ao “nacionalismo”), sempre
correspondeu a períodos de crescimento económico, de melhoria
das condições de vida dos povos e nações! O «laissez faire,
laissez passer» dos mercantilistas de Colbert e herdeiros, como
chave da felicidade humana e paz no mundo!
A complexidade e diversidade da evolução económica no mundo,
pelo menos desde a Revolução Industria, não permitem tal
simplismo nem visão ahistórica. Bem pelo contrário.
Paul Bairoch, Professor de História Económica da Universidade de
Genebra (falecido em 1999), no seu importante ensaio “Mitos e
Paradoxos da História Económica” (publicado em Portugal em
2001), põe a nu esse simplismo de abordagem histórica e
desmonta os mitos económicos em torno do “livre comércio” versus
“proteccionismo”.
Mas não é apenas a história. A realidade económica recente e
presente é elucidativa da imensa fraude propalada pelos
defensores do “livre comércio”.
O “livre comércio” foi sempre a expressão da vantajosa relação de

forças (económica, política, militar) dos países mais poderosos,
impondo os seus interesses aos países mais empobrecidos, mais
frágeis, menos desenvolvidos. Impondo o livre comércio, quase
sempre à força, aos países do chamado Terceiro Mundo (e
especialmente aos que foram colónias), com graves
consequências na sua industrialização e desenvolvimento
económico. O “livre comércio” sempre foi o outro nome do
proteccionismo dos países mais poderosos e potências
imperialistas.
O uso pelas potências capitalista e imperialistas da defesa do
“proteccionismo” ou do “livre comércio” sempre foi de geometria
variável. A tónica, em cada conjuntura histórica, era/é a que lhes
dava/dá jeito…, isto é, a que nesse momento defende os
interesses dos seus capitalistas, das suas classes dominantes, dos
seus Estados nacionais. Os interesses da fracção da classe
dominante que acedeu ao poder. Em momentos de crise, como a
que o capitalismo atravessa nos dias de hoje, sempre oscilaram as
posições do capital e dos seus advogados. Porque, como escreveu
alguém: “Se a opção protecionista contraria a globalização, ela não
contraria a ordem capitalista. Ao colocar em oposição os
produtores voltados para o mercado interno e os que privilegiam as
transações com o exterior, ela não questiona nem as prerrogativas
do capital, nem as relações de força dentro das empresas. No
entanto em períodos de crise, ela divide a classe dirigente e
suscita duros enfrentamentos de interesses”. (6)
(1) As citações de Renaud Bertrand estão referidas em texto do
Blog de Michael Roberts, 10ABR24, O injusto “excesso de
capacidade” da China.
(2) Jeffrey Sachs, numa entrevista, toda muito interessante,
publicada no Público, domingo, 16JUN24, afirma: “E agora a China
pode produzir uma grande parte do que o mundo precisa para
descarbonizar. Os EUA dizem que isso é injusto, que a China tem
excesso de capacidade. Este é um dos conceitos mais lamentáveis
do nosso tempo. A China não tem excesso de capacidade, nós é

que temos subinvestimento. Se os EUA e a Europa quiserem
recuperar o atraso, tudo bem, mas não digam que a China está a
fazer algo de errado. Temos falta de capacidade, é essa a
verdade.” Corroborando tais afirmações, temos os dados referidos
por Óscar Afonso no Dinheiro Vivo, de 15JUN24: “Os dados
permitem ainda destacar que a taxa de investimento da China (o
peso do investimento total, a Formação Bruta de Capital, no PIB)
se mantém na casa dos 42% até 2029, quase o dobro dos EUA e
UE-27 nesse período, ambos em torno de 22%, enquanto Portugal
aparece abaixo, na casa dos 20%.”
(3) Sem qualquer critério especial de selecção são os casos de:
Luís Marques, “A nova guerra comercial”, Expresso 24MAI24:
Miguel Monjardino, “Que está a acontecer à nova ordem liberal
internacional?”, Expresso 31MAI24; Carl Bildt (conservador sueco,
ex-Primeiro Ministro e ex-Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Suécia) “O perigoso retrocesso para o proteccionismo”, 14JUN24;
José Pedro Teixeira Fernandes, “O novo consenso em
Washington: o futuro é o proteccionismo”, Público, 28MAI24.
(4) Obama começou a levantar «muros económicos» com o
Tratado Transpacífico (TPP), excluindo a China de uma zona de
livre comércio, com o confronto militar no mar da China meridional
(uma rota comercial estratégica para a China) e com restrições
crescentes no interior dos EUA a investimentos chineses. O
“protecionismo” de Trump, não caiu em terra virgem. Os EUA
sempre foram muito liberais na imposição a outros das suas
mercadorias e capitais, mas nunca deixaram de proteger feroz e
devidamente as suas fronteiras económicas. O “Buy American Act”
(cláusula “comprar americano nos mercados públicos), o “Small
Business Act” (reserva para as PME americanas das encomendas
públicas), as multas e retaliações mesmo para multinacionais dos
seus aliados da Europa, não são figuras de retórica…
(5) O processo iniciou-se no pós-Guerra, com as negociações do
GATT (1943), à margem das estruturas multilaterais das Nações
Unidas e assim marginalizando o Bloco socialista, a que se seguiram as “Rondas” do Uruguai e de Doha, até à constituição da


OMC em 1993 (em vigor desde Janeiro de 1995), que deveria ser
o motor da liberalização do comércio. A adesão da China e outros
países dos BRICS acabou por travar “o quero, posso e mando” da
Tríade.
(6) Serge Halimi, Monde Diplomatique, Março 2009.

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